PARTE I
Arrumou os livros, ajeitou o gorro e dirigiu-se à porta.
Um último olhar à sala vazia. As carteiras em fila... a mesa do professor sobre um estrado - o quadro negro, limpinho. Na parede um crucifixo.
Jesus tinha um braço quebrado.
O professor Queiroz sempre se referia a isto, dizendo:
- Como se ao Senhor não lhe bastassem todos os padecimentos... ainda mais este - um braço quebrado! E isto, há quanto tempo! Quase cinco anos! Precisamos dar um jeito!
José lembrava-se bem de quando ali chegara: - delgado, tímido... com o bornal a tiracolo... Fora sentar-se ao fundo.
Mestre Queiroz captou-lhe a timidez:
- Aqui na frente, meu rapaz!
Lá se fora ele sentar-se no primeiro lugar, passando ruborizado entre os meninos, que o observavam. E ali estava, até hoje.
Aplicara-se bastante naqueles anos. Estudava muito. Até já arriscava o Francês.
- “Bonjour Monsieur - Quelle heure est-il, s’il vous plâit? Il est midi. Merci, monsieur. Au revoir. ” (*)
Ficava sempre mais um pouco, após as aulas, para aprontar as lições. Na aldeia, a chama do candeeiro turvava a vista.
Mestre Queiroz dissera ao sair:
- Apague a luz.
Retornara, pouco depois, abrindo a porta, metera cabeça pela fresta e advertira:
- Não te esqueças da luz.
Lá fora, os latidos o sacudiram.
Apagou a luz e saiu.
PARTE II
O pátio estava vazio, as folhas rolavam pelo chão.
Agitando os galhos desnudos a aura noturna fazia soar melodia monótona.
No céu escuro brilhavam, esparsas, algumas estrelas. Montes delineavam-se ao longe.
Sob um carvalho, preso à corrente, Quinteiro latia.
José aproximou-se, repartia sempre o seu farnel com o cão.
- Toma Quinteiro, aqui está o teu bocado.
- Opa!... devagar, malandro! Assim, me levas a mão!
O animal rosnava baixinho.
- Não queres conversa enquanto comes?!
- Ingrato, divido contigo a merenda e nem escutas o que te digo.
O cão, agora, espojava-se na terra.
- Tens razão em estar satisfeito. Já comeste... estás em casa... eu, porém, tenho que andar uma légua para alcançar a minha aldeia, o meu Bizarril (**).
- E se assim é... Já é tarde... vou andando.
O cão lambia-lhe as mãos.
- Até amanhã.
Ao chegar à porteira, virou-se. O prédio da escola destacava-se na escuridão.
Nunca aquele lugar lhe parecera tão amigo e acolhedor.
Pensou em voltar. Não o fez.
Deixou cair a aldrava e pôs-se a caminho.
PARTE III
Noite fria. A vegetação úmida exalava um cheiro forte.
José respirou fundo e abotoou o abrigo. Tinha já caminhado mais de meia légua e uma sensação estranha o acompanhava.
Entretanto, não sabia explicar o que sentia.
Conhecia tão bem aquelas várzeas e, agora, tudo parecia diferente. Olhava para os lados e... nada via, apenas a escuridão soturna.
O cascalho rinchava às suas passadas, único ruído audível naquela imensidão.
De súbito, parou, virando-se num repente.
Quatro pupilas o fitavam com fria agudeza. Tinham o fulgor de duas tochas ladeando a estrada.
Ao firmar a vista, distinguiu corpos fortes e peludos, caudas baixas, orelhas atentas, em riste... bocas enormes, abertas num sorriso lúgubre:
- Lobos !
O primeiro ímpeto - correr ... anulado pelas pernas rígidas e o estômago convulsionado. Continuou a caminhar, enquanto sentia o suor viscoso escorrer- lhe pelo corpo.
Os olhos ardiam, a respiração opressa... José buscava controlar-se.
Seu pensamento correu até a aldeia, onde o avô, àquele tempo, já o estaria a esperar, ao pé do lume crepitante.
Lembrava-se de suas palavras:
- Quando te deparares com algum perigo, reflete e não temas! Controla-te! O medo é o pior dos inimigos!
Tais palavras ajustavam-se perfeitamente àquela situação! E o avô ainda calcara no alerta:
- Reflete! - O que distingue o homem do animal é a sua inteligência.
Por ouvir dizer, pelos homens da aldeia, que os lobos gostavam de conversar, José começou a falar em voz alta:
- Olá amigos. Como estão os camaradas?
Ato contínuo, passou a assobiar, buscando acalmar-se.
Parecia-lhe estranho que aqueles animais se aventurassem por tais lugares, àquela época do ano. Iniciava-se o outono. E ainda havia muita caça nas serras distantes.
Certamente, os lobos não estariam famintos, ou já o teriam acossado.
Olhou para trás... Os lobos continuavam a segui-lo, a guardar sempre a mesma distância.
As faces abertas, pareciam sorrir, sinistramente.
Próximo à entrada do povoado, José apressou o passo.
Já via as primeiras luzes dos lampiões nas janelas das casas de sua pequenina aldeia.
Lembrou que restara um pouco do alimento que levara... Abriu o bornal e lançou as sobras no chão, na esperança de aplacar a voracidade dos lobos.
Em vão. As feras, indiferentes ao seu gesto, mais e mais se aproximavam.
Quase à entrada da aldeia, lembrou-se do grito de socorro lançado pela personagem de uma das muitas histórias, contadas por seu avô.
Acelerou o passo, quase a correr e, já a adentrar a aldeia, pôs-se a gritar, com todas as forças que tinha: - AQUI DEL REY, AQUI DEL REY! (***)
Com alívio, viu os aldeões movendo-se em sua direção. Vinham-lhe em socorro, com tochas acesas, ancinhos e facões, num alarido forte para enfrentar e espantar as feras, quase aos calcanhares de José que, por sua vez, já sem forças, quase a cair, viu-se amparado pelos primeiros conterrâneos.
Os demais arremeteram com suas armas contra os lobos que rapidamente, recuaram fugindo pela várzea escura.
Conduzido à casa do avô, José, ao vê-lo à porta a sorrir, correu a abraçá-lo, demoradamente.
Sentados, agora, ao calor da lareira, no aconchego de uma casa repleta de amor, o neto deixou que as lágrimas lavassem o seu rosto cansado, enquanto ouvia do avô aquelas palavras que jamais haveria de esquecer:
- Teu rogo de ajuda foi ouvido, José. Deus sempre esteve contigo!
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Notas do Blog:
(*) Olá senhor - Que horas são, por favor? É meio dia. Obrigado senhor. Tchau.
(**) Bizarril – fica em Portugal, situado a 9 km de Figueira de Castelo Rodrigo, na freguesia de Colmeal. É um lugar encaixado entre as Serras do Cerejal e da Marofa, do lado direito da estrada que segue para Pinhel.
(***) “Aqui Del Rey!” Antigamente, um pedido para ser acudido pelos homens (soldados) do Rei. Usava-se, unicamente, em casos onde havia reais ou pretensas infrações à lei. Tem o sentido de gritos de pedido de socorro. Equivale a «(venham) aqui (da parte) del-rey»
Fonte:
Conto enviado pelo autor.
3 comentários:
Adorável leitura!
Bornal, aldrava, palavras esquecidas ao vento, o jeito leve e gostoso de escrever nos remete à serena leitura (e releitura) do conto por trilhas das aldeias portuguesas. Adorei, meu mestre de textos. Parabéns. Singelo e saboroso, como a vida.
Parabéns meu caro Felipe, a narrativa excelente prendeu-me a atenção até o último minuto.
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