domingo, 28 de fevereiro de 2010

Cândido Rolim (Ronald Augusto e as Fissuras de Linguagem)


Até que enfim uma poesia me comunica que não quer comunicar. Que sua função é outra: cair fora do “sistema unívoco de linguagem” (Adorno), significar a esmo, jamais atingir uma margem, nem o ambíguo conforto da forma. Enfim uma escritura que, após o front da linguagem, os secretos escrutínios, funda outros desafiadores sentidos.

Topo com a poesia de Ronald Augusto (Rio Grande, RS, 1961), cuja obra, herdeira do concretismo e das conquistas da poesia visual, crítica por excelência, dispensa as falsas visitações da verve e da aura diletante.

O texto de RA roda por aí há cerca de 20 anos (Homem ao Rubro-1983, Puya-1987, Kânhamo-1987 e Vá de Valha-1992) hibernando nos subdiretórios “poesia gaúcha moderna”, “poesia negra” ou “poesia concreta e visual”. Seja como for, uma poesia universal e difícil, desagradável a quem reverencia um certo “modo de dizer sentimentalmente raro”. Com efeito, em seus livros breves e magros não encontramos “páginas de sentimento em que o verso exalte a delicadeza de esteta que se deve sempre encontrar em um poeta”, nem aquela amena sintaxe atrelada a plangências e demais falácias ab imo pectore, e sim um verbo giratório contra poesias e poetas de tardio pastoreio, a água crespa contra a água moribunda.

Noto, sem fechar questão, que a poesia de hoje, contrariando em parte a imagem/idéia de que “a palavra tem canto e plumagem” (G. Rosa) tem sido mais de sintaxe que de palavra, rumo à abstração.

Em RA encontramos palavras sempre em vias de, prestes a, em busca do gaboso trejeito, a ironia, o maldizer. Palavras-arestas cegadas pelas farpas de uma sintaxe cotó roçam a mensagem e de forma elíptica (às vezes em excesso) caem à beira do dito. Revoltada contra a função (e acho aí uma atitude que já qualifica demasiado seus escritos), a poesia de RA é outra que vira o rosto à pertinência abusiva, à subserviência da língua a um propósito (estatal ou estético) demasiado poético-competente ou politicamente correto. Observo em algumas passagens do seu último livro (CONFISSÕES APLICADAS, Ameop, 2004), vários indícios dessa atividade anti-poética, construída desde “aparas de linguagem” (p. 27), “fissuras de linguagem” (p. 62) e “fendas de linguagem” (p. 77). De fato esse comportamento intersticial de sua expressão é bastante recorrente, revelador de um escamoteio verbal tinhoso e de um desatrelamento daquela poesia-boa de poetas recompensados por um consenso suspeito. Ora, quando uma maneira de dizer se revoga (e bem poucos ousam abandonar o barco) no seio desse mesmo código gasto e, melhor, das suas fendas, é possível e até salutar o manuseio de novos sentidos.

Ácido, o artista, além de não estar a fim de nenhuma fidedignidade, põe tudo em xeque, inclusive as vanguardas de que é filho:

diz
trair a tradição
inventar a
(Vá de Valha)

Ou mais enfático:

leitor ulisses
homero (
e) m
pessoa

ninguém
está de posse do
pós
(Vá de Valha)

O texto de Ronald, que opera a fundo o lema work in progress, à medida que nunca se completa, vai quebrando simetrias e sentidos, promovendo um enxame de possibilidades sintáticas e sintéticas ao redor, aptas a receberem a associação latente do leitor. Afinal, questionamos: o poema buscará um fim, uma solidez, um estágio estético de onde não se vislumbre mais o mais?

Alguém dirá, comiserado: e o leitor? E a consideração com o pobre leitor? E a comunicação? Admitamos, portanto, que há o risco de o dileto leitor não entrar no texto, não captar a “mensagem” (cito aqui alguns encontradiços questionamentos acerca de). Ora, mas não reside aí o problema milenar de toda poesia e, afinal, de todo dizer? Se a questão é esta, maior desrespeito com a assistência está em oferecer-lhe um texto edulcorado onde, em nome de falaciosas inerências e votos de pundonor, permaneça indiferente ou, pior, sorria no final, agradecida ao bom poeta por este não ter sugerido nada além do que ela aprendera a apreciar.

Ronald Augusto experimenta quase todas as possibilidades da síntese, através de um surrealismo sincopado, minimal. Dançando esse ritmo truncado, de signos devidamente frustrados de qualquer pretensão de uniformidade, eleva o significante a um ponto onde o significado se rarefaz (logo, multiplica-se), proliferante, polissêmico. Contra o alvo, a revoada. A ver:

regaço pedra o
régua quadril
(Vá de Valha)

O módulo pedra o/quadril projeta no leitor um feixe de imagem, e o o (artigo?) após a pedra sugere um sutil “motivo” hispânico. Pois bem, a função da poesia não é dizer o indizível, quando muito aproximar o incompatível (regaço – quadril = régua – pedra). O quadril torna a pedra dúctil, enquanto o regaço dribla, distrai, compatibiliza, corporifica e nega a fatalidade retilínea da régua. Faça-se, para melhor percepção, uma leitura linear e outra transversa dessa mesma “estrofe”, em quiasmo.

Aquela suspensão de sintaxe e vocábulos de que falávamos antes, a par de permitir sempre um discurso incidental irônico, capcioso, deixa as palavras como que à espera de algo, prestes à bifurcação. Poesia véspera de constelação:

poema a
moenda
arroio
mexendo moedinhas
na algibeira
(Vá de Valha)

Noutro momento, percebe-se a ausência de hierarquia entre os significantes – adjetivo – substantivo – verbo (onde um e outro?). E veja-se que, mesmo de ascendências diversas e até incompatíveis, os signos não se livram de um contágio recíproco entre eles. O poeta coloca tudo ao rés do nome e parece dizer: - palavra, signifique fora de si! Signifique-se! Prolifere!. Exemplifiquemos:

o vindouro
uva o
veio

Ou

músculo ou
crespos
musseque a favela
cestos
(Vá de Valha
)

Enquanto isso, o ritmo corre a favor do rito. É quando o mito do discurso encontra o discurso do mito, palustre e pobre locus da infância:

que
favo mangue
bessanga
o
moleque
(Vá de Valha)

Impossível não associar tais textos com alguns momentos da poesia de matiz africana (vide, por exemplo, Arlindo Barbeitos, em Nzoji), quando as palavras vicejam rente ao chão, no ar seco, de coivaras. Poesia casulo de vivência vária. Sumo de língua nova: por polpa a// arquipenumbra.

Contra a poesia de RA conspira, a meu ver, o que noutro momento a absolve, isto é, a elipcisação excessiva. Escondido atrás de um vácuo significante (estanco um vazio com outro, CA, pág. 35) pensa-se que o poeta se esquiva, não quer correr o risco da respiração completa ou de uma eventual explicitude. Ora, mas não há as mil formas de ver o poema? Afinal, o homem (portanto, o texto) não é poroso ao tempo? À tendência centrífuga/constelante das palavras tem que se dar um instante de perenidade, um provisório vetor rumo à plasticidade, seja para o presente, seja para o não-tempo. Há também a poesia dos conceitos! Quer dizer, o poeta pode até querer “estancar um vazio com outro”, ou pretender um arranjo de abstrações que lhe oculte o rastro. O problema - e isto a poesia de RA mostra a todo instante e os poetas-se-achantes insistem em negar – é que tudo isso se dá inapelavelmente no campo da linguagem. E é essa maldita linguagem que irá denunciar todo o entorno do homem, inclusive suas insuspeitas filiações e encostos.

Em O HOMEM AO RUBRO (Porto Alegre, 1983), porém, esse impasse se supera e o autor nos fornece desde lá uma senha para o seu último livro CONFISSÕES APLICADAS (Ameop, Porto Alegre, 2004). Manejando sem receio sua assumida “oralidade atravessada”, utiliza-a se não para resolver o texto em imagem (e saquei para mim uma felpa // bífida // de onda), também para ex/trair outros módulos de alta voltagem poética, adequando o como se diz com o que se diz. Citemos:

minha capoeira
assopro ela para além de duas
quadras
com imediateza e
antepassadas lâminas
um linguajar
de músculos paisanos
(O Homem ao Rubro)


Coincidência ou não, parece que o poeta hoje se dá conta disso, por exemplo, nos poemas do seu CONFISSÕES APLICADAS (Ameop, Porto Alegre, 2004), onde o artífice assume, com maestria, outra sintaxe, dando uma pausa no mínimo de retórica para um máximo de significação. Uma retomada, a um só tempo, da cantiga de escárnio e dos racontos dantescos, oxidados pela raiva moderna. Dessa obra, transcrevemos a indiscutível qualidade, p. 55:

cera de operárias em orelhas de remeiros
os mesmos mesmo topando com o cu do mundo
porque o mandachuva deles fechará sua
rosácea de rotas
transtornadas feito chama enunciante
nenhum dos seus comerá de outro pão
hera operária nos buracos dos eunucos

Em CONFISSÕES APLICADAS o poeta nos apresenta um livro recheado de périplos odisseicos com os clássicos, não de forma reverente mas dialogante, com ironia e vocábulos sem mofo. A respeito da mudança de ritmo operada na poesia de Ronald Augusto, talvez de maneira inconsciente o poeta nos revelou os passos dessa transposição, dessa mudança de batida, no poema contrafragmento, p. 57, nestes termos:

já agora me parece justo
não dissimular mais coisa nenhuma
dou-lhe conta dos transes que mordo
não com intento de pedir ajuda
nem com a idéia de forçá-lo

Na poesia contemporânea – da qual o texto de RA é um feliz exemplo – a consciência do artista participa da obra como uma anti-escritura. O poema, sob o pastoreio feroz de outro espírito, se escreve desfazendo-se. E aquela consciência ilustrada do artífice, tensionada a n vigílias não o empurra para o silêncio, tampouco para a palavra. Não o coloca em situação de fala ou de diálogo; estimula-o a um não-dizer, fixa-o numa zona plástica entre silêncio e voz. Imerso naquela ramagem de perguntas de que falava René Char, o poeta parece tomado pelo medo moderno de nomear.

Num mundo esvaziado de “guerreiros e celebrantes” e “um presente onde as sereias viraram sirenes” (H. Campos) o poeta adquiriu uma garganta crítica. Também por isso a escritura de RA é incômoda, inconclusa, incôngrua, como se lhe repugnasse ou inquietasse aquele toque edênico do objetivo (Idem). Agarrando-se ao fragmento, aparas da linguagem, transformando o texto em uma instância plástica de urgência e sugestão, revela-nos que o fim de um texto não é centrar o leitor na tirania de suas linhas, mas abrir sua (dele leitor) vontade para outros mundos (verbais ou não). Que a linguagem não nasceu para ser fidedigna, nem para corresponder a um dizer estanque e perpétuo, muito menos para servir às hegemonias sustentadas e retroalimentadas pelo arcano da pertinência.

Bom saber que existe por aí uma poesia in motum, que está na ordem do fazer e não de um estar ou ser, à ilharga da palavra estatal e da sintaxe recrutada para os bons propósitos da in/formação ou do pensamento político (e poético) logicamente correto.

De resto, contra a eternidade distraída que volta e segue, sob o rumor de sempre, efêmera, a poesia, com a linguagem, morre. Mas algumas vezes, felizmente, deixa um grande rastro.
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José George Cândido Rolim nasceu em Várzea Alegre, CE. Morou em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente exerce a advocacia em Fortaleza. Tem publicados os livros Rios de Mim (Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, 1982); Arauto (Sabará: Edições Dubolso, 1988); Exemplos Alados (Fortaleza: Letra & Música, 1997), Pedra Habitada (Porto Alegre: AGE, 2002) e Camisa Qual (Porto Alegre: Editora Éblis, 2008).

Fontes:
http://www.msmidia.com/ameopoema/aut_ronald.htm
Imagem = http://ouirapuru.blogspot.com/

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