domingo, 21 de fevereiro de 2010

Vânia Diniz (A Pequena Órfã)


Quando eu era muito pequena não compreendia nenhuma diferença entre as pessoas. Como pertencia a uma classe privilegiada e tudo era realizado com facilidade à minha volta tinha a ilusão de que todos podiam satisfazer suas necessidades básicas e que “Ter uma casa “ era tão natural como nascer.

Crescendo um pouco comecei a me aperceber o meio privilegiado a que pertencia., porém jamais tinha imaginado a separação que poderia haver entre seres humanos . Aprendera teoricamente que éramos todos iguais, porém notara sempre, desde muito cedo que no colégio que estudava havia uma ala separada, freqüentada por meninas que vestiam um humilde uniforme, o contraste do que era o nosso e que costumavam ajudar nos trabalhos domésticos, embora houvesse uma parte do dia que dedicavam aos estudos.

Essas meninas passavam casualmente por nós, alunas, quando estavam fazendo qualquer tarefa, sem, entretanto nos dirigir a palavra ou iniciar qualquer conversa.

Ocorreu que eu simpatizei com uma daquelas meninas, o que foi recíproco. Senti uma estranha amizade por aquela criança, da minha idade, mas tão acanhada, cujos olhos castanhos profundos era marcados pelo estrabismo que não diminuía a meiguice da expressão. Olhamo-nos como duas boas amigas e sempre que podíamos conversávamos, o que era raro, sem que ninguém nos visse. Isso, porém trazia muito medo à minha secreta amiga que temia que as freiras ou professoras nos vissem juntas. E muitas vezes perguntávamos reciprocamente o que isso poderia haver de mal.

Algumas vezes ela me dizia que era pobre e eu rica e eu lhe perguntava o que isso poderia interferir em alguma coisa.

Tinha uma poderosa atração por aquela ala que ficava na parte de cima do colégio e que sabia ser o pequeno orfanato que as freiras mantinham.

Um dia aproximei-me dela na mesma hora que uma professora ia passando e Soninha advertiu-me da possibilidade de sermos punidas de alguma maneira.

- Cuidado. Preciso ir, ela me disse ,entre triste e revoltada.

- Não fique assim, por favor. Elas não podem fazer nada. Afinal, o que tem de mais conversarmos?

- Você sabe que somos diferentes e que isso não será bom para nós duas. Só que me parece, eu serei a maior prejudicada.

Aquelas palavras me confrangeram e me afastei magoada, sem, entretanto tirar da cabeça a idéia de visitar a ala proibida. Pensativamente afastei-me e por um longo período fiquei sentada no pátio do colégio, onde minhas colegas brincavam na hora do recreio, até que uma freira veio saber o motivo do meu afastamento. Nada disse. Tentava digerir as diferenças que ocorriam e que agora já me preocupavam, pois não conseguia esquecer algo que não podia compreender.

Um mês depois procurei me encontrar com a pequena órfã para lhe dar um livro que havia trazido e quando a encontrei vi no seu sorriso a felicidade pelo fato de não a ter esquecido mesmo depois de sua admoestação. Uma freira veio em minha direção e chamou-me, perguntando o motivo pelo qual eu ainda não havia me juntado às minhas colegas. Receosa de que minha amiga fosse advertida encaminhei-me em direção ao corredor que me levaria às salas, não sem antes ser interrogada pelo fato de estar conversando com Soninha. Disse-lhe que achava isso um absurdo e que me fizesse compreender o mal existente . Ela respondeu-me com evasivas, dizendo que um dia eu compreenderia o valor de aprender a seguir regras preestabelecidas. Não concordei com minha mestra, mas como pretendia realizar o desejo secreto de conhecer o outro lado do enorme colégio , calei-me para não chamar atenção.

Muitas vezes, durante aquele período de minha vida, senti o contraste nas coisas que aprendia e na prática do dia a dia. Não tinha mais do que dez anos e experimentava um estranho amargor ao verificar o que considerava , na época uma injustiça e mais ainda pela sensação de impotência que muitos anos depois viria a sentir em vários acontecimentos tristes e que naquela fase não sabia definir nas minhas reflexões o termo apropriado.

Foi num dia que me parecia igual aos outros que resolvi realizar o sonho de muitos meses. Nunca irei esquecer a sensação de leveza e expectativa que me dominou nos momentos que antecederam a minha exploração pela área desconhecida e, no entanto quanto mais se aproximava o momento da minha indisciplina e um medo latente aflorava, mais eu me sentia empolgada.

Estava acostumada a andar pelo colégio e gostava disso, porém naquele dia não sei como havia conseguido uma desculpa para sair da aula momentos antes do seu término.

Costumava correr por aqueles caminhos conhecidos, mas sempre com a presença de um adulto a alguma distância. Assim foi com uma sensação de liberdade que cheguei ao local de várias dependências que se posicionavam na parte mais alta da enorme escada.

Com o coraçãozinho batendo fortemente, as faces em fogo e os olhos atentos e exploradores deparei-me em primeiro lugar com uma sala de estar decorada com gosto e sobriedade e em seguida uma pequena biblioteca que me fascinou enormemente e que jamais esquecerei. Lembrava da enorme biblioteca do colégio, onde gostava de ficar e aquele simpático e acolhedor ambiente me conquistou imediatamente, exatamente pelo contraste impressionante e pela elegância natural que transparecia.

Quando ia encaminhar-me para outro lugar do singular pavilhão deparei-me com Soninha a olhar-me de maneira insólita no corredor largo e curto. Nesse momento arrependi-me realmente daquele passeio idealizado. Ela me fitava com medo.

E senti que me julgava uma traidora pelo modo como a arriscava.

Não queria acreditar naquele olhar e, no entanto a despeito de tudo eu fazia isso por amizade e carinho. Queria demonstrar que éramos iguais, que todos eram iguais. Ela não compreendera? Lentamente voltei-me aguçada pelo barulho que ouvira e vejo minha mestra aproximando-se lentamente no portal do tranqüilo corredor , agora tão assediado.

A sensação de que tinha perdido uma causa e uma amiga pressionava meus ouvidos e notei que as lágrimas envolviam meus olhos com um inexplicável atordoamento. Não sentia nem um pouco de medo de qualquer punição, apenas não tolerava parecer inconseqüente à pequena órfã indefesa.

Mas ela aproximou-se de mim e com um raro sorriso imensamente doce tocou em meu braço.

- Não chore, não, por favor. Não importa o que aconteça. Sei agora que somos todos iguais e que a única coisa que nos separa é a falta de amor de algumas pessoas. Mas só algumas...

Olhei-a abraçando-a enquanto minha mestra se curvava e segurava nossas cabeças juntas , trazendo-as de encontro a seu peito sem coragem de falar.

Muitas vezes iria me lembrar disso com indizível carinho e mais tarde, muito mais tarde, quando fui visitar meu colégio, deparo com uma jovem irmã, que não estudara tanto quanto as freiras titulares, mas que cuidava da portaria.

Olhando-a, revi debaixo da touca religiosa, os olhos estrábicos, porém imensamente ternos e incrivelmente bonitos da pequena órfã.

Depoimento real omito, porém, nomes verdadeiros para preservar-lhes a privacidade.

Fontes:
http://www.vaniadiniz.pro.br/
Imagem = http://migracao.sisfacil.com.br/

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