domingo, 28 de fevereiro de 2010

Mário Bortolotto (Poesias Escolhidas)


O CAMINHO MAIS CURTO PRO INFERNO

Ah, os dramaturgos
com seus textos suplicantes
que são a extensão doentia de seu criador.
Tem um que sempre participa de concursos de dramaturgia
dia desses ganhou uma menção honrosa
e começou a acreditar que agora sim, vai chegar lá.
Ele me disse exatamente assim:
Marião, agora é a minha vez!!
Confesso que fiquei assustado com tanta determinação.
Tem outro que trabalha em jornal e está pensando em escrever um romance.
Eu dou a mó força.
Tem outro que só está dando um tempo na dramaturgia,
porque sabe que o seu negócio mesmo é cinema.
Tem outro que escreve novela de tv.
E tem aquele que quer escrever novela de tv.
Tem um deles que se acha especial porque escreve minissérie.
Tem aquele que namora a atriz que vai produzir seu texto.
E tem um outro que namora o ator.
Tem um outro que comeu a produtora.
O problema é que ele comeu mal
e a mulher não quis mais saber do texto dele.
Tem outro que só escreve comédias
porque disseram pra ele que é mais comercial.
Tem o dramaturgo maldito
e o darling da mídia.
E tem aquele de grandes aspirações que nunca consegue terminar seu texto.
Tem aquele que está há três anos escrevendo sua grande peça
e tem aquele que só conseguiu escrever uma peça na vida
e vive falando sobre ela, e acha todos os atores burros
por não terem ainda encenado o seu texto.
Tem o que enlouqueceu
e o que ficou parado em alguma curva dos anos 60.
Tem o dramaturgo da moda
e aquele que está sempre por fora.
Tem o muito encenado
e o eterno gênio inédito.
Tem aquele que não suporta outros dramaturgos.
O que acha tudo uma bosta.
E tem aquele que vai a todas as estréias de seus companheiros.
Tem um que faz um bico de ator em comerciais
pra pagar a produção do seu texto de vanguarda.
E tem outro que tirou foto pruma revista gay segundo ele pelas mesmas razões.
Tem um que diz que é performer.
E outro que vive de ministrar workshops de dramaturgia.
Tem outro que é jurado de concursos de dramaturgia.
E tem ainda aquele que escreve peças pra teatro empresa
mas que garante que é por pouco tempo.
Tem o dramaturgo publicitário cheio de tiradas geniais.
E tem o dramaturgo crítico de teatro.
E tem aquele que almoça sempre com o crítico
e diz que tem prazer em almoçar com o crítico.
Tem aquele que implora pro crítico vir assistir a sua peça
e aquele que proíbe a entrada do crítico.
Tem um que não desgruda do telefone
sempre a um passo de uma grande montagem.
E tem o que desistiu.
E tem os que continuam insistindo.
Tem o velho dramaturgo que acha que a dramaturgia morreu
e o novo dramaturgo que quer matar a velha dramaturgia.
Pobres inocentes.
Vocês não fazem idéia da encrenca em que se meteram!
G G G G G G G G G G G G

O FRACASSO COMO RECOMPENSA

prometo e não tomo providências
meu evangelho renegado por todas as manhãs
minha fuga dos restaurantes coreanos e dos suspiros forjados
tenho pensado insistentemente em constrangimentos noturnos
mas ainda acredito no que se convencionou chamar de suplicio
até fracassados tem códigos de ética
minha fé inabalável em possíveis viagens pra bem longe daqui
entre palmeiras e a brisa fria do fim de tarde
eu devo me deitar na solenidade da memória perdida
num quarto de hotel com nome exótico e reverente
a majestade de quem se deu por esquecido
de quem jogou fora todas as fichas
de quem sempre esteve fadado à derrota
mesmo sentado no topo do mundo
mesmo que ela dance semi nua na minha frente
que me ofereça sua nuca em sacrifício
e que derrame vinho em meu peito e deslize sua língua suave
ainda assim vou pensar que é sempre tarde demais
meu orgulho abençoado de perdedor
deixo o testamento de um loser
com duvidosa compaixão pela raça humana
como recompensa, tenho o sol abrasador
e a crença vil num evangelho porcamente escrito
só levo comigo minha inadequação e alguns poemas de Dylan Thomas
não tem mais pra ninguém

Daqui a 20 minutos, vai ser eu e Deus.
G G G G G G G G G G G G

ENQUANTO ELA RANGE OS DENTES
EU ESPERO OS FANTASMAS

Os fantasmas bebem comigo quando a lua vem
Eu abro a minha porta todas as noites
Eles aparecem e se apropriam das poltronas
coçam meus pés e bebem meu vinho
Não falam da vida os fantasmas
nem comentam as fotos que guardei
Eu me sinto bem com os fantasmas
Eles apenas gostam de ficar por ali
assoprando nas orelhas do cachorro
o cachorro se acostumou com os fantasmas
já não tira os chinelos das poltronas
percebeu o quanto os fantasmas são
importantes pra mim e o cachorro também
não quer me ver triste e eu sei que de
uns tempos pra cá o cachorro também ficou
dependente deles pois uiva de dia enquanto
eu leio Frost no telhado
o dia passou a ter 72 horas
o dia passou a ter grossos livros de poesia
o dia passou a ter Whitman, Thoreau e Bashô
o dia agora é um osso esquecido no assoalho
o dia agora é uma longa espera da noite
que é quando os fantasmas aparecem
Eu espero já sem muita paciência
não há nenhuma suavidade ou delicadeza em meus gestos
os fantasmas são a melhor companhia pra
quem descobriu que está realmente sozinho.
G G G G G G G G G G G G

ÓPERA DOS POMBOS SEM DESTINO

Eu moro no sótão onde os pombos morrem
Eu deixo a janela aberta
e deixo que eles venham morrer a meus pés
Eles entram voando e me olham
com seus olhos tristes de pombo
Como eu posso ser feliz com todos esses pombos mortos
abandonados por Deus
Gostava quando eles se chocavam contra o pára-brisa
Pombos desgovernados sempre me fascinaram
Esses pombos com destino certo
eles me deixam com os olhos cheios de lágrimas
vez ou outra um avião passa no céu
e os pombos sonham com lugares nunca visitados
Um dia os pombos desaparecerão
terão voado para algum lugar inatingível
não haverá mais pombos
e alguém irá contar histórias sobre pombos
os seus cadáveres espalhados no chão do meu sótão
receberão visitas apaixonadas
mas pra mim o que vai ficar
será a lembrança dos pombos na minha caixa de correio
pombos que se recusaram saber o caminho
pombos que Deus há de acolher
pombos dos quais sempre vou me lembrar
ouvindo ópera no sótão
meu sótão de pombos sem destino
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Fontes:
Confraria do Vento
Maquina do Mundo. Revista de Poesia.

VIANNA, Christine (organização). Antologia de Poetas Londrinenses v.12. Londrina, PR, 2000.

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