Pintura de Salvador Dali
Segundo me foi dado coletar de uma fonte
infimamente confiável, Sibila,
sacerdotisa de Apolo, a quem o deus concedera
o poder da profecia, pedira-lhe,
a certa altura da vida, o dom da longevidade.
O deus concedeu-lhe o número de anos igual ao
de grãos de areia que pudesse segurar, o que
não impediu que seu corpo não acompanhasse
esta longevidade e perecesse mesmo antes dela.
E mais: antes de sua voz.
infimamente confiável, Sibila,
sacerdotisa de Apolo, a quem o deus concedera
o poder da profecia, pedira-lhe,
a certa altura da vida, o dom da longevidade.
O deus concedeu-lhe o número de anos igual ao
de grãos de areia que pudesse segurar, o que
não impediu que seu corpo não acompanhasse
esta longevidade e perecesse mesmo antes dela.
E mais: antes de sua voz.
I
Extremidades frias do meu corpo: a velhice. Não sei se me vem primeiro a perda de consciência dos movimentos, ou sua incessante repetição. Quando jovem, em cada curva, um dilema vital, em cada questão, uma resposta absoluta. Mas a maturidade antecipa a leveza de todas as coisas. Nada de veraz muda ou a atinge. Pisco os olhos e não sei se encontro o mesmo mundo à minha frente, ou se escorrego cada vez mais rápido colina abaixo. Não sei sequer se lamento.
II
O peso dos anos, a solidão. Porém, mais do que tudo o silêncio. Eras ela silenciou solitária. A princípio falava consigo. Depois, resguardava ao pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos. Até que, afásica, arrastava-se pelo mundo aonde as palavras não chegam. A mesma casa, mas já não mais casa. O mesmo tempo, mas já sem a interpelação ininterrupta de t-e-m-p-o: palavra tempo. O mundo não – mundo – .
III
Cabelos rarefazem-se. Costas se curvam. Quase como se, finalmente, entendesse a vida e agradecesse a ela. Como se caísse o pano e soassem os aplausos. Como se, curvada em reverência, me fosse dado aceitar a fatalidade. Pois bem: a vida nos dobra, nada mais. Pouco a pouco desfaz-nos de armas e palavras de injúria. E cala-nos. Calei-me. E comigo o mundo.
IV
A velhice: o valor dos rituais. A repetição incessante: comida ao gato, água às plantas, sabão às roupas. A total automatização de cada ato: a inconsciência. A mesma vassoura, todo o dia, no mesmo azulejo até que se removesse toda a distância entre azulejo e vassoura. Até que já não mais se fizesse necessária a ótica peculiar de – vassoura – e de – azulejo – . Até que não mais se impusesse, entre a mão e o cabo de madeira, a palavra vassoura. Ou mesmo a palavra mão, ou mesmo madeira.
V
Olho pela janela. A cidade, profusão incessante de nomes. Que verbos me fazem? Me diluem? Viadutos, carros: nomes. Silêncio. Ninguém está em silêncio ou no escuro na cidade. Há! Mesmo na casa, o gato, no campo, batidas de coração. A vida exalta a si mesma com a música e exala seu silêncio em luzes. Sua escuridão em vozes. E sua afasia em nomes.
VI
Até que um dia voltou. Pouco a pouco, as palavras retornaram. Mas não todas. Algumas levaram anos. Para voltar a serem ditas. E ainda certas palavras não voltaram. Não voltaram nunca – inomináveis? Mas mesmo as que retornaram, ressurgidas de abismo quem-sabe-quão-profundo, traziam consigo qualquer coisa de diferente. Um certo frescor de novas.
VII
Me observava. Cada movimento. Como se pronto a reagir. Mas ainda assim mantinha a autonomia e aparentava calma. Levou umas duas linhas no livro da vida para que se tornasse um gato. Sim, algo a que se pudesse chamar gato. Primeiro tinha de decidir-se por patas. Dianteiras. Traseiras. Um tronco, um rosto, orelhas. Entranhas etc. E cor. Pois bem: um gato. Eu mesma o experienciara momentos antes. Não. Não há nada mesmo de engraçado. O braço ainda não braço a transpirar as sílabas bra. Ço. A mão a lembrar-se de que já foi um dia mão. E eu, entre soluços, engasgos. Suando. Tremendo. Eu podendo soar eu outra vez. Imaginar eu, dizer – eu – .
VIII
Algumas palavras não voltaram. Algumas coisas ficaram sem nome. Mas outras que talvez precisassem destes. Como por exemplo o ato de alimentar o gato. Ou virar a água da tina no tanque ao tirar do molho as roupas. O espaço que a pele enrugada, sobrepondo-se, sufoca e obscurece. A marca dos óculos nas laterais do nariz ou a envergadura da alma para suportar o peso dos anos. Ou o ato de voltar. De soar eu outra vez, de transpirar sílabas: sibilar.
IX
O mundo fluir o mundo em palavras. Dar nome a rostos que nunca nascerão. À minha volta dançam palavras sem qualquer significado. Nomes irreferenciáveis, verbos impossíveis. – O que virá e o que passou se encontram no compasso oracular da minha música: no raso verbo da voz só há tempo para dizer o que passa. Coisas mortas. Vivas. Desbravar sem trilhas ou bandeiras: marcar talvez o caminho com pontos parágrafos. E recomeçar.
X
O entorno transpira – parede – . O embaixo soa – chão – . O mundo reivindica de novo seus nomes, como o gato. Mas é pouco. Sibilavam, por exemplo, coisas impossíveis. Não mais o gato, mas – gato – . Não mais a porta, mas – porta – . As palavras tomavam vida própria. É mais: o mundo não voltaria jamais a ter nomes. As coisas não voltam mais a ter nomes. Os nomes voltam.
XI
Sinto-me a boca transbordar mistérios. Desfoquei o mundo, desci às profundezas do pensamento e encontro-me irremediavelmente viva. Sinto em mim pulsar qualquer coisa. E na garganta – garganta qualquer – a vontade de cantar! Não, não virão mais injúrias! A vida também chora quando soa a morte! O derradeiro golpe da foice não é a fatal negação aos mortais, é a vida a dobrar-se aos seus próprios desígnios. É ela que a si mesma impõe limites, que consigo mesmo se concilia. E mesmo assim em nenhum momento o mundo se entristece.
XII
Seu corpo deteriorou. Os anos soaram seus gongos e levaram o gato. As plantas. E tudo mais se esvaía. Algumas coisas já haviam morrido e seus nomes ainda pairavam irreferenciados; enquanto outras viviam, solitários corpos sem nomes. E todas as coisas se faziam ouvir por Sibila. E sua voz viveu para além de seu corpo. Em seus últimos anos ela foi somente voz. E quando o proprietário adentrou o apartamento com a moção de despejo, ainda soava um leve sussurro no ar. Como se as paredes, e o chão, e o tapete, e os quartos, sibilassem. Como se uma voz, uma voz somente, se quisesse fazer ouvir.
Extremidades frias do meu corpo: a velhice. Não sei se me vem primeiro a perda de consciência dos movimentos, ou sua incessante repetição. Quando jovem, em cada curva, um dilema vital, em cada questão, uma resposta absoluta. Mas a maturidade antecipa a leveza de todas as coisas. Nada de veraz muda ou a atinge. Pisco os olhos e não sei se encontro o mesmo mundo à minha frente, ou se escorrego cada vez mais rápido colina abaixo. Não sei sequer se lamento.
II
O peso dos anos, a solidão. Porém, mais do que tudo o silêncio. Eras ela silenciou solitária. A princípio falava consigo. Depois, resguardava ao pensamento a honra dos ainda-não-vocábulos. Até que, afásica, arrastava-se pelo mundo aonde as palavras não chegam. A mesma casa, mas já não mais casa. O mesmo tempo, mas já sem a interpelação ininterrupta de t-e-m-p-o: palavra tempo. O mundo não – mundo – .
III
Cabelos rarefazem-se. Costas se curvam. Quase como se, finalmente, entendesse a vida e agradecesse a ela. Como se caísse o pano e soassem os aplausos. Como se, curvada em reverência, me fosse dado aceitar a fatalidade. Pois bem: a vida nos dobra, nada mais. Pouco a pouco desfaz-nos de armas e palavras de injúria. E cala-nos. Calei-me. E comigo o mundo.
IV
A velhice: o valor dos rituais. A repetição incessante: comida ao gato, água às plantas, sabão às roupas. A total automatização de cada ato: a inconsciência. A mesma vassoura, todo o dia, no mesmo azulejo até que se removesse toda a distância entre azulejo e vassoura. Até que já não mais se fizesse necessária a ótica peculiar de – vassoura – e de – azulejo – . Até que não mais se impusesse, entre a mão e o cabo de madeira, a palavra vassoura. Ou mesmo a palavra mão, ou mesmo madeira.
V
Olho pela janela. A cidade, profusão incessante de nomes. Que verbos me fazem? Me diluem? Viadutos, carros: nomes. Silêncio. Ninguém está em silêncio ou no escuro na cidade. Há! Mesmo na casa, o gato, no campo, batidas de coração. A vida exalta a si mesma com a música e exala seu silêncio em luzes. Sua escuridão em vozes. E sua afasia em nomes.
VI
Até que um dia voltou. Pouco a pouco, as palavras retornaram. Mas não todas. Algumas levaram anos. Para voltar a serem ditas. E ainda certas palavras não voltaram. Não voltaram nunca – inomináveis? Mas mesmo as que retornaram, ressurgidas de abismo quem-sabe-quão-profundo, traziam consigo qualquer coisa de diferente. Um certo frescor de novas.
VII
Me observava. Cada movimento. Como se pronto a reagir. Mas ainda assim mantinha a autonomia e aparentava calma. Levou umas duas linhas no livro da vida para que se tornasse um gato. Sim, algo a que se pudesse chamar gato. Primeiro tinha de decidir-se por patas. Dianteiras. Traseiras. Um tronco, um rosto, orelhas. Entranhas etc. E cor. Pois bem: um gato. Eu mesma o experienciara momentos antes. Não. Não há nada mesmo de engraçado. O braço ainda não braço a transpirar as sílabas bra. Ço. A mão a lembrar-se de que já foi um dia mão. E eu, entre soluços, engasgos. Suando. Tremendo. Eu podendo soar eu outra vez. Imaginar eu, dizer – eu – .
VIII
Algumas palavras não voltaram. Algumas coisas ficaram sem nome. Mas outras que talvez precisassem destes. Como por exemplo o ato de alimentar o gato. Ou virar a água da tina no tanque ao tirar do molho as roupas. O espaço que a pele enrugada, sobrepondo-se, sufoca e obscurece. A marca dos óculos nas laterais do nariz ou a envergadura da alma para suportar o peso dos anos. Ou o ato de voltar. De soar eu outra vez, de transpirar sílabas: sibilar.
IX
O mundo fluir o mundo em palavras. Dar nome a rostos que nunca nascerão. À minha volta dançam palavras sem qualquer significado. Nomes irreferenciáveis, verbos impossíveis. – O que virá e o que passou se encontram no compasso oracular da minha música: no raso verbo da voz só há tempo para dizer o que passa. Coisas mortas. Vivas. Desbravar sem trilhas ou bandeiras: marcar talvez o caminho com pontos parágrafos. E recomeçar.
X
O entorno transpira – parede – . O embaixo soa – chão – . O mundo reivindica de novo seus nomes, como o gato. Mas é pouco. Sibilavam, por exemplo, coisas impossíveis. Não mais o gato, mas – gato – . Não mais a porta, mas – porta – . As palavras tomavam vida própria. É mais: o mundo não voltaria jamais a ter nomes. As coisas não voltam mais a ter nomes. Os nomes voltam.
XI
Sinto-me a boca transbordar mistérios. Desfoquei o mundo, desci às profundezas do pensamento e encontro-me irremediavelmente viva. Sinto em mim pulsar qualquer coisa. E na garganta – garganta qualquer – a vontade de cantar! Não, não virão mais injúrias! A vida também chora quando soa a morte! O derradeiro golpe da foice não é a fatal negação aos mortais, é a vida a dobrar-se aos seus próprios desígnios. É ela que a si mesma impõe limites, que consigo mesmo se concilia. E mesmo assim em nenhum momento o mundo se entristece.
XII
Seu corpo deteriorou. Os anos soaram seus gongos e levaram o gato. As plantas. E tudo mais se esvaía. Algumas coisas já haviam morrido e seus nomes ainda pairavam irreferenciados; enquanto outras viviam, solitários corpos sem nomes. E todas as coisas se faziam ouvir por Sibila. E sua voz viveu para além de seu corpo. Em seus últimos anos ela foi somente voz. E quando o proprietário adentrou o apartamento com a moção de despejo, ainda soava um leve sussurro no ar. Como se as paredes, e o chão, e o tapete, e os quartos, sibilassem. Como se uma voz, uma voz somente, se quisesse fazer ouvir.
À minha bisavó Angelina
e seu silêncio que tanto me custa ouvir.
Fontes:
Confraria do Vento. http://www.confrariadovento.com/revista/numero6/conto02.htm
e seu silêncio que tanto me custa ouvir.
Fontes:
Confraria do Vento. http://www.confrariadovento.com/revista/numero6/conto02.htm
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