domingo, 28 de fevereiro de 2010

Aprendendo sobre Poesia (Parte III – final)

Pintura Studying, de Iman Maleki


GÊNEROS LITERÁRIOS

A conceituação dos gêneros literários tem levantado problemas até o momento insolúveis, tendo também dado azo a que aparecessem várias teorias, havendo inclusive aqueles que negam sua existência.

Dá-se o nome de gênero literário a "famílias de obras dotadas de atributos iguais ou semelhantes" (Massaud Moisés). Note-se que a palavra "gênero" vem do latim generu -, e significa família, raça, ou seja, agrupamento de indivíduos ou seres que têm características comuns.

O primeiro autor a se preocupar com os gêneros literários foi Platão que, em sua República, classifica as obras literárias em três gêneros, a saber:

- a tragédia e a comédia, ou seja, o teatro;
- o ditirambo, ou poesia lírica;
- a poesia épica

Na antigüidade clássica greco-romana e no Renascimento - época em que se revalorizou a produção de Grécia e Roma antigas - adotava-se o pensamento de Platão, e acreditava-se que os gêneros preexistiam aos autores, tendo cada um deles regras fixas que deviam ser obedecidas rigorosamente, sendo ainda cada gênero considerado como um compartimento estanque, absolutamente impermeável às influências dos outros, não podendo haver, por isso, mistura entre eles nem entre as espécies.

Muitas das normas que regiam a criação literária só deixarão de ser aceitas com o Romantismo, no século XIX, que adotou a idéia dos gêneros comunicantes, o que deu origem inclusive a gêneros novos, como o drama, desaparecendo também a idéia clássica de que o número de gêneros literários seria limitado e imutável.

Tradicionalmente, e segundo o pensamento de Platão, consideram-se três gêneros literários fundamentais: o lírico, o épico e o dramático.

A cada gênero correspondem, geralmente, determinadas espécies materiais de forma, determinadas "formas" literárias, em prosa ou em verso, adequadas àquilo que se deseja exprimir. Assim, o gênero épico, narrativo e grandioso, requer forma adequada, ou seja, um poema mais longo, com versos maiores e mais solenes. Do mesmo modo, o lírico, às vezes tranqüilo, às vezes intempestivo, procura a forma (ou "forma" ) adequada ao que se deseja exprimir, aparecendo ora sob a forma de poemas maiores e mais densos, como a ode, ora sob a forma de poemas pequenos e graciosos, como o madrigal. A essas "formas" literárias costuma-se dar o nome de espécies.

Esquematizando, são os seguintes os gêneros literários:

Gênero
Espécie
Lírico (geralmente em verso)
soneto, ode, elegia, madrigal, etc.

Épico
(em verso)
epopéia
poema
poemeto

(em prosa)

Dramático (em prosa ou em verso)
tragédia
comédia
drama

1. Gênero Lírico

A palavra lírico vem do latim lira, instrumento musical. Na antigüidade grega, os poetas cantavam suas composições ao som de liras. Na Idade Média, durante o período provençal a poesia voltou a ser contada, depois de ter sido declamada na Roma antiga.

Pode-se dizer que o gênero lírico é aquele que expressa um sentimento pessoal. Seu conteúdo "é a maneira como a alma, com seus juízos subjetivos, alegrias e admirações, dores e sensações, toma consciência de si mesma no âmago deste conteúdo" (Hegel). De fato, ao poeta lírico interassam apenas suas sensações, seus estados de alma, seus sentimentos, É, a bem dizer, um ser isolado, um indivíduo voltado para dentro de si mesmo, embebido em eterna autocontemplação. A paisagem exterior, a Natureza ou os homens só lhe interessam na medida em que se projetam nele, ou na medida em que o exterior é passível de ser interiorizado. Veja-se, como excelente exemplo, o poema de Fernando Pessoa, Contemplo o Lago Mudo, já focalizado no capítulo referente à distinção entre poesia e prosa.

Normalmente o gênero lírico se apresenta sob a forma de verso, o que não impede que apareça também em prosa, muito embora alguns autores prefiram chamar "lirismo" ao transbordamento da alma do autor em obras em prosa, como, por exemplo, os dois primeiros parágrafos de texto de Jorge Amado, também focalizado no capítulo referente à distinção entre poesia e prosa.

Poesia lírica seria, por exemplo, o trecho abaixo. de Gonçalves Dias:

"Enfim te vejo! - enfim posso,
Curvado a teus pés, dizer-te
Que não cessei de querer-te,
Pesar de quanto sofri.
Muito penei. Cruas âncias,
Dos teus olhos afastado,
Houveram-me acabrunhado
A não lembrar-me de ti!

Dum mundo a outro impelido,
Derramei os meus lamentos
Nas surdas asas dos ventos
Do mar na crespa cerviz!
Baldão, ludíbrio da sorte
Em terra estranha, entre gente
Que alheios males não sente,
Nem se condói do infeliz!

Louco, aflito, a saciar-me
D'agravar minha ferida,
Tomou-me tédio da vida,
Passos da morte senti;
Mas quase no passo extremo,
No último arcar da espr'ança,
Tu me vieste à lembrança,
Quis viver mais e vivi!
(Gonçalves Dias, Ainda uma vez - Adeus! In "Poesias", Agir, pág. 61)

2.Gênero Épico

A palavra épico vem do grego épos, narrativa, recitação. A poesia épica nasceu, no Ocidente, com Homero, poeta grego que viveu entre os séculos IX e VIII a.C. e escreveu dois poemas que constituíram os primeiros modelos épicos: a Ilíada e a Odisséia.

Depois de Homero, a poesia épica, seguindo certas normas tradicionais que se baseavam na obra do poeta grego, foi cultivada até o Romantismo.

Na antiguidade romana, a epopéia mais conhecida é a Eneida, de Virgílio. Na Idade Média, aparecem vários poemas narrativos, especialmente nos séculos XII, XIII e XIV, que se afastam dos padrões clássicos (Homero e Virgílio) pelos assuntos abordados e pela técnica narrativa. São inspirados, geralmente, em façanhas guerreiras da época da cavalaria andante. São mais conhecidos: a Canção de Rolando, o Romance de Alexandre, os romances da Távola Redonda, o Cantar de Mio Cid.

No Renascimento, com a revalorização da antiguidade greco-romana e a conseqüente imitação de sua literatura, aparecem novos poemas épicos que tomam como modelo as grandes epopéias dos gregos e romanos, especialmente a dos dois poetas já citados. Datam desse período o Orlando Furioso, de Ariosto, Jerusalém Libertada, de Tasso, ambos na Itália; em Portugal, Camões escreve Os Lusíadas, o maior poema da língua.

Ainda no Romantismo - século XIX - cultivou-se a poesia épica, embora dentro de nova visão, diferente da dos clássicos e renascentistas.

Na antiguidade clássica e no Renascimento, o gênero épico deveria obedecer a certas regras, a certas normas que o caracterizavam:

1. O poema épico deveria ser dividido em cinco partes, a saber:

a- Preposição: em que o autor resumiria o assunto da obra.
b- Invocação: na qual o autor pedia a uma divindade que o inspirasse em sua criação.
c- Oferecimento: parte em que o autor dedicava seu poema a alguém. (O oferecimento não era obrigatório.)
d- Narrativa: o corpo do poema propriamente dito.
e- Epílogo: fecho do poema. (Também não obrigatório.)

2. A narrativa não deveria obedecer à ordem cronológica dos fatos. Ao contrário, deveria iniciar-se o mais próximo possível do fim do acontecimento que deu origem ao poema, retornando aos fatos anteriores através de narrações dos personagens, de sonhos e visões fantásticas.

3. A poesia épica deveria conter o chamado "maravilhoso", isto é, a intervenção direta de seres sobrenaturais, quase sempre deuses da mitologia greco-romana, na vida humana. Ao lado desse maravilhoso pagão, no cristianismo surge também o maravilhoso cristão, ou seja, a intervenção de personagens bíblicos (do Antigo ao Novo Testamento).

O gênero épico em verso apresenta três espécies:

1. Epopéia: obra épica de largo fôlego, envolvendo a história de um povo ou de uma nação, ou ainda passagens históricas de importância universal. Por exemplo, Os Lusíadas, de Camões.

2. Poema Épico: trata, também de episódio histórico, mas menos importante e que não ultrapassa os limites do nacional ou mesmo do regional, embora o poema épico seja tão extenso quanto a epopéia. Exemplo: Caramuru, de Santa Rita Durão.

3. Poemeto: mais curto que as duas espécies anteriores, trata de assunto de importância ainda menor que o do poema épico. Exemplo: O Uruguai, de Basílio da Gama.

Note-se bem que as diferenças apontadas entre as três espécies da épica clássica tradicional subordinam-se à importância do assunto tratado e às dimensões da obra, e não à valoração ou valor literário dela. Se, normalmente, a epopéia é superior em qualidade ao poema e ao poemeto, pode haver exemplos destas duas últimas espécies com valor literário superior à primeira. Entre os exemplos dados, cumpre observar que o poemeto de Basílio da Gama, O Uruguai, é muito superior, literalmente, ao poema épico de Santa Rita Durão, Caramuru.

Foi dito que desapareceram, com o Romantismo, as espécies épicas conhecidas como epopéia, poema e poemeto. É claro, entretanto, que o espírito épico não desapareceu, nem desaparecerá, podendo ser identificado, nos nossos dias, naqueles poemas em que a preocupação do autor não se volta exclusivamente para si mesmo, como na poesia lírica, nos poemas em que o autor não aparece apenas como indivíduo, como um ser isolado, preocupado apenas consigo mesmo, mas como um representante do gênero humano integrado no todo da humanidade. Nesse caso, conta para o autor não mais o "eu" - ou apenas o "eu" - mas o "nós", já que ele se identifica com todos o homens, identifica-se com sua angústia, com sua dor, com seu sofrimento, situando-se entre os que sofrem e se angustiam, integrado que está ao conjunto, à humanidade.

Da primitiva epopéia clássica, o poema épico moderno conserva não apenas o que foi dito acima, ou seja, a identificação do autor com a humanidade, mas também a mesma grandiosidade do verso, o mesmo tom solene, mas próprio à importância e solenidade do assunto.

Massaud Moisés (A Criação Literária) aponta-nos como exemplo de poema épico moderno a Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, de que transcrevemos o trecho abaixo:

" E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregoso,
e no fecho da tarde um sino rouco.

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

pausadamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensando se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

palas pupilas gastas na inspecção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em clama pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas

assim me disse, embora em voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo".

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimentos da morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.


Fonte:
Colégio Terra Nova.

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