Conceituação de Literatura :
Deve-se aos filósofos gregos, conhecidos como sofistas, a primeira tentativa de conceituar literatura. Tomaram eles a palavra "literatura" em seu sentido mais amplo, já que consideravam obra literária qualquer obra escrita que obedecesse a certos preceitos:
– os da invenção: verdade e originalidade;
– os da disposição: variedade dentro da perfeita unidade de exposição;
– os da elocução: pureza da língua, correção gramatical, clareza e harmonia.
Para os sofistas, então, A Arte Literária consiste na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução.
O primeiro a estabelecer uma distinção entre literatura, em sentido restrito (obra estética) e literatura, em sentido amplo (qualquer obra escrita) foi Platão e depois Aristóteles. Para o último: Literatura é a imitação (mimese) da realidade.
Para o filósofo grego, só é obra literária a que imita ou "recria" a realidade. Não se trata, evidentemente, apenas de reprodução servil ou simples cópia da realidade. Trata-se, antes, de imitação, de representação construída pelo autor, de apresentação da realidade segundo a maneira de ver do autor. "O poeta imita, representa uma ação conforme à realidade ou à verdade, mas uma ação construída e arranjada por ele." Essa imitação não se estende, porém, à realidade ou à natureza exterior: ela tem por objeto a vida humana, o homem, seus costumes, seus estados de alma, suas paixões, suas ações. Além disso, realidade aqui tem sentido muito amplo: não apenas aquilo que é, mas também o que normalmente ou moralmente deveria ou poderia ser.
Assim sendo, um tratado de Anatomia, considerado pelos sofistas como obra literária, desde que obedecesse aos princípios já mencionados, não o seria para Aristóteles, pois num tratado dessa espécie não haveria "recriação" da realidade, isto é, a realidade não seria apresentada da maneira pela qual é vista pelo autor; haveria, antes, descrição da realidade tal qual é.
No século XIX, volta a predominar o conceito de literatura em sentido ainda mais amplo que o dos sofistas:
Literatura é um conjunto de produção escrita de um povo, de um indivíduo.
Atualmente podemos encontrar vários conceitos de literatura, em sentido restrito como, por exemplo, o de Fidelino de Figueiredo:
Arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista.
Ou o de Massaud Moisés:
Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.
Observe-se que ambos os conceitos têm, em comum, o fato de considerarem como literatura apenas a ficção ou supra-realidade.
Partindo do pressuposto de que a Literatura - como a Filosofia e as Ciências - é forma de conhecimento, esclarecem-se os conceitos acima determinando-se o tipo de conhecimento usado na elaboração da obra literária, o que, inclusive, vai distinguir a literatura das outras formas de conhecimento.
Há dois tipos de conhecimento:
a- conhecimento conceptual: adquirido através do estudo, da reflexão, da lógica;
b- conhecimento intuitivo: "elaboração espontânea das impressão recebidas".
Para escrever uma obra científica ou filosófica, lançamos mão da realidade existente, do conhecimento conceptual ou adquirido e, às vezes, do conhecimento intuitivo (mas sempre em menor grau).
Evidentemente, não podemos descrever cientificamente uma árvore sem conhecimento de Botânica, conhecimento conceptual, adquirido através do estudo, da observação, da reflexão. Aplicado o conhecimento conceptual à realidade a ser descrita, tratar-se-á, é claro, da classificação da árvore, do tipo de suas folhas e raízes, de sua utilidade, etc. O que houver de intuitivo ou pessoal numa obra desse tipo não se relacionará com a matéria exposta, mas à preferência por determinada disposição da obra, pela escolha de determinada forma ou por certo torneio frasal. A matéria, a essência da obra, será tratada da maneira mais impessoal e científica possível.
Por outro lado, o conhecimento intuitivo permite-nos escrever sobre árvore sem que tenhamos noção alguma de Botânica. Nesse caso, não nos referimos a determinada classe ou a determinado tipo de árvore, mas à árvore em geral. A obra resultante será, então obra literária e não obra científica. Entrará em jogo a visão pessoal que o autor tem da realidade "árvore", visão essa que não necessita do conhecimento conceptual para existir. Este tipo de conhecimento entrará obra em grau muito menor, através, por exemplo, do conhecimento da língua, na capacidade de escolher palavras e coordená-las de modo a tornar inteligível a visão do autor.
Parece evidente também que, usando o conhecimento intuitivo, a realidade "árvore" não será a mesma para todos, pois cada um de nós tem uma visão pessoal, única, da realidade. Se essa realidade é descrita, ela será deformada, não em sua essência, mas na projeção dessa essência. Essa realidade deformada, ou seja, com outra forma, que varia de acordo coma maneira de ser de cada um, de acordo com a educação, com a vivência, com a sensibilidade, essa realidade deformada é a ficção ou supra-realidade.
Nos exemplos abaixo, tomou-se a definição de "rio", segundo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete e a visão que alguns autores têm da realidade "rio". No primeiro caso, teremos a definição, baseada no conhecimento conceptual; no segundo, a visão de rio, segundo o conhecimento intuitivo de cada um e que variará de autor para autor:
1- "Rio, s.m. curso considerável de água, que tem geralmente origem nas montanhas e vem recebendo pelo caminho a água dos regatos e ribeiras até lançar-se, por uma ou mais embocaduras, no mar ou noutro rio; grande curso de água em geral".
2- "Aqui e ali fugiam roscas do rio, que carregava águas barrentas. À sua margem multiplicara a vazante espraiados tranqüilos, que cintilavam ao sol. Já audível, o rumorejar da cachoeira encorpava-se a cada passo avante; era uma cortina de sons que se erguia numa nesga do horizonte e que, em pouco, alastrando, ganhava todo o circuito da paisagem, estrondejando compactamente.
Meto-me por um trilho que se desgarra da estrada, em direitura da cachoeira. Cruzo pedestres, já de volta, com sacos e jacás atestados de peixe. Conversam gritando com surdos, para fazerem-se ouvir. Avisto, por fim, constringidos entre paredões de rocha, os rolos de água, despenhando-se. São os degraus em que a torrente rabeia, fustigando o leito, como serpente assanhada a encrespar a cauda nervosa...
A torrente despeja-se aos fluxos e refluxos. Quando a ondada passa, pulam os peixes em cada poço, inumeráveis, projetando-se para o ar, a despedir chispas de prata dos corpos retorsos, nervosamente enovelados e vibráteis. Abaixo da cachoeira, onde a caudal se rebalsa e retoma a majestade de seu curso lento, a água é torva, quase negra; e, ao olhar que lhe escruta a profundeza, essa negura revela-se feita de cardumes de dorsos escuros, que esfervilham, evolucionando processionalmente no bojo dos remansos, esperando o seu turno de lançar o salto. Lateralmente derivam fios escassos, delgadas fitas que traçam sinuosidades no lajedo, fazendo escala em caldeirões escavados na rocha." (Godofredo Rangel, Vida Ociosa, S. Paulo, Comp. Ed. Nacional, 2ª ed., s.d. pág.234).
3- OS RIOS
Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente.
Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.
Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,
Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...
(Olavo Bilac, Tarde, In "Poesias", Rio, Francisco Alves, 13ª ed., 1928, pág. 300)
4- ÁGUA CORRENTE
Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.
Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...
Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...
Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...
(Olegário Mariano, Água Corrente, In "Poesia". Agir, Rio, 1968, pág. 55)
5- O RIO
Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu a terra;
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.
Um rio nasceu
(Vinícius de Moraes, Antologia Poética, Rio, Editora do Autor, 2ª ed., 1960, pág. 234)
Como se observa, cada um dos autores teve uma visão pessoal e particular da realidade rio, e a projeção da essência dessa realidade é feita diferentemente por eles.
A Godofredo Rangel o rio transmite a impressão de atividade animal, como a lembrar-lhe que a sua majestade não se deve ao aspecto inanimado e ao mesmo tempo grandioso que a Natureza lhe conferiu. Ele é um ser sensível que se enfurece e se acalma ao sabor dos cometimentos.
Para Olavo Bilac o rio é a projeção do seu próprio estado de espírito. É com uma conotação de amarguras, de desejos contrariados e insatisfeitos que a realidade rio se apresenta para ele. Sente-se aí a alma do poeta oprimida pelo inexorável, deixando-se levar pela força incontrolável do desenrolar da vida humana, enxergando a esperança no futuro e a saudade no passado.
Para Olegário Mariano, longe de ser tão-somente a água corrente, o rio é o sonho do lavrador, a evocação protetora de um teto, aquele sangue da terra que plasma o misticismo transcendental da religião. E nesse plano atemporal, o rio, movendo graciosamente o engenho, poupando o braço do homem, transfigura-se na bondade, como a lembrar ao homem a grandiosidade da obra divina, já agora movendo não a roda do engenho, mas o sentimento humano, tocando-o enternecendo-o pelo dom maravilhoso do sublime e da generosidade.
Finalmente, Vinícius de Moraes, mesmo explicando o nascimento, o desenvolvimento e a majestade do rio feito, foi buscar no universo poético a constelação de imagens com que pessoaliza a realidade rio. O poeta parte da causa para o efeito, mostrando que a simples gota de chuva que se projeta de encontro ao solo, seja na flacidez da terra que lhe abre o ventre (atente-se para a singularidade da imagem), seja na dureza das rochas, do ouro, do carvão, do ferro ou do mármore, vai esta gota sequiosa de espaço, em busca da luz, do horizonte largo.
Depois desses exemplos, é fácil concluir que, sendo eles deformações da realidade através de palavras de sentido múltiplo e pessoal, todos se caracterizam como obras literárias.
Do ponto de vista da linguagem, cumpre ainda notar que o signo usado pelas ciências e filosofias é o mais preciso possível, além de tender para o universal. Assim, se se diz que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos", enunciamos um princípio em que o sentido de cada uma das palavras será imutável a universal, podendo, inclusive, ser representado por signos que não são palavras.
O mesmo não se dá com a obra literária: nela, as palavras não são univalentes; ao contrário, são polivalentes, isto é, têm mais de um valor, mais de um significado, podendo variar de autor para autor ou de leitor para leitor. E, exatamente nessa possibilidade de escolha, nessa polivalência dos signos, está uma da maneiras de distinguir obra científica ou filosófica de obra literária.
Note-se que nenhum dos conceitos mencionados envolve qualquer idéia de valoração. Preocupou-se, tão somente, em conceituar obra literária e distingui-la de obra não literária. Assim sendo, qualquer obra escrita que ser enquadre nos dois últimos conceitos mencionados pode ser considerada obra literária, sendo seu valor como tal, objeto de outro tipo de estudo.
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Deve-se aos filósofos gregos, conhecidos como sofistas, a primeira tentativa de conceituar literatura. Tomaram eles a palavra "literatura" em seu sentido mais amplo, já que consideravam obra literária qualquer obra escrita que obedecesse a certos preceitos:
– os da invenção: verdade e originalidade;
– os da disposição: variedade dentro da perfeita unidade de exposição;
– os da elocução: pureza da língua, correção gramatical, clareza e harmonia.
Para os sofistas, então, A Arte Literária consiste na realização dos preceitos estéticos da invenção, da disposição e da elocução.
O primeiro a estabelecer uma distinção entre literatura, em sentido restrito (obra estética) e literatura, em sentido amplo (qualquer obra escrita) foi Platão e depois Aristóteles. Para o último: Literatura é a imitação (mimese) da realidade.
Para o filósofo grego, só é obra literária a que imita ou "recria" a realidade. Não se trata, evidentemente, apenas de reprodução servil ou simples cópia da realidade. Trata-se, antes, de imitação, de representação construída pelo autor, de apresentação da realidade segundo a maneira de ver do autor. "O poeta imita, representa uma ação conforme à realidade ou à verdade, mas uma ação construída e arranjada por ele." Essa imitação não se estende, porém, à realidade ou à natureza exterior: ela tem por objeto a vida humana, o homem, seus costumes, seus estados de alma, suas paixões, suas ações. Além disso, realidade aqui tem sentido muito amplo: não apenas aquilo que é, mas também o que normalmente ou moralmente deveria ou poderia ser.
Assim sendo, um tratado de Anatomia, considerado pelos sofistas como obra literária, desde que obedecesse aos princípios já mencionados, não o seria para Aristóteles, pois num tratado dessa espécie não haveria "recriação" da realidade, isto é, a realidade não seria apresentada da maneira pela qual é vista pelo autor; haveria, antes, descrição da realidade tal qual é.
No século XIX, volta a predominar o conceito de literatura em sentido ainda mais amplo que o dos sofistas:
Literatura é um conjunto de produção escrita de um povo, de um indivíduo.
Atualmente podemos encontrar vários conceitos de literatura, em sentido restrito como, por exemplo, o de Fidelino de Figueiredo:
Arte literária é, verdadeiramente, a ficção, a criação duma supra-realidade, com os dados profundos, singulares e pessoais da intuição do artista.
Ou o de Massaud Moisés:
Literatura é a expressão dos conteúdos da ficção, ou da imaginação, por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal.
Observe-se que ambos os conceitos têm, em comum, o fato de considerarem como literatura apenas a ficção ou supra-realidade.
Partindo do pressuposto de que a Literatura - como a Filosofia e as Ciências - é forma de conhecimento, esclarecem-se os conceitos acima determinando-se o tipo de conhecimento usado na elaboração da obra literária, o que, inclusive, vai distinguir a literatura das outras formas de conhecimento.
Há dois tipos de conhecimento:
a- conhecimento conceptual: adquirido através do estudo, da reflexão, da lógica;
b- conhecimento intuitivo: "elaboração espontânea das impressão recebidas".
Para escrever uma obra científica ou filosófica, lançamos mão da realidade existente, do conhecimento conceptual ou adquirido e, às vezes, do conhecimento intuitivo (mas sempre em menor grau).
Evidentemente, não podemos descrever cientificamente uma árvore sem conhecimento de Botânica, conhecimento conceptual, adquirido através do estudo, da observação, da reflexão. Aplicado o conhecimento conceptual à realidade a ser descrita, tratar-se-á, é claro, da classificação da árvore, do tipo de suas folhas e raízes, de sua utilidade, etc. O que houver de intuitivo ou pessoal numa obra desse tipo não se relacionará com a matéria exposta, mas à preferência por determinada disposição da obra, pela escolha de determinada forma ou por certo torneio frasal. A matéria, a essência da obra, será tratada da maneira mais impessoal e científica possível.
Por outro lado, o conhecimento intuitivo permite-nos escrever sobre árvore sem que tenhamos noção alguma de Botânica. Nesse caso, não nos referimos a determinada classe ou a determinado tipo de árvore, mas à árvore em geral. A obra resultante será, então obra literária e não obra científica. Entrará em jogo a visão pessoal que o autor tem da realidade "árvore", visão essa que não necessita do conhecimento conceptual para existir. Este tipo de conhecimento entrará obra em grau muito menor, através, por exemplo, do conhecimento da língua, na capacidade de escolher palavras e coordená-las de modo a tornar inteligível a visão do autor.
Parece evidente também que, usando o conhecimento intuitivo, a realidade "árvore" não será a mesma para todos, pois cada um de nós tem uma visão pessoal, única, da realidade. Se essa realidade é descrita, ela será deformada, não em sua essência, mas na projeção dessa essência. Essa realidade deformada, ou seja, com outra forma, que varia de acordo coma maneira de ser de cada um, de acordo com a educação, com a vivência, com a sensibilidade, essa realidade deformada é a ficção ou supra-realidade.
Nos exemplos abaixo, tomou-se a definição de "rio", segundo o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete e a visão que alguns autores têm da realidade "rio". No primeiro caso, teremos a definição, baseada no conhecimento conceptual; no segundo, a visão de rio, segundo o conhecimento intuitivo de cada um e que variará de autor para autor:
1- "Rio, s.m. curso considerável de água, que tem geralmente origem nas montanhas e vem recebendo pelo caminho a água dos regatos e ribeiras até lançar-se, por uma ou mais embocaduras, no mar ou noutro rio; grande curso de água em geral".
2- "Aqui e ali fugiam roscas do rio, que carregava águas barrentas. À sua margem multiplicara a vazante espraiados tranqüilos, que cintilavam ao sol. Já audível, o rumorejar da cachoeira encorpava-se a cada passo avante; era uma cortina de sons que se erguia numa nesga do horizonte e que, em pouco, alastrando, ganhava todo o circuito da paisagem, estrondejando compactamente.
Meto-me por um trilho que se desgarra da estrada, em direitura da cachoeira. Cruzo pedestres, já de volta, com sacos e jacás atestados de peixe. Conversam gritando com surdos, para fazerem-se ouvir. Avisto, por fim, constringidos entre paredões de rocha, os rolos de água, despenhando-se. São os degraus em que a torrente rabeia, fustigando o leito, como serpente assanhada a encrespar a cauda nervosa...
A torrente despeja-se aos fluxos e refluxos. Quando a ondada passa, pulam os peixes em cada poço, inumeráveis, projetando-se para o ar, a despedir chispas de prata dos corpos retorsos, nervosamente enovelados e vibráteis. Abaixo da cachoeira, onde a caudal se rebalsa e retoma a majestade de seu curso lento, a água é torva, quase negra; e, ao olhar que lhe escruta a profundeza, essa negura revela-se feita de cardumes de dorsos escuros, que esfervilham, evolucionando processionalmente no bojo dos remansos, esperando o seu turno de lançar o salto. Lateralmente derivam fios escassos, delgadas fitas que traçam sinuosidades no lajedo, fazendo escala em caldeirões escavados na rocha." (Godofredo Rangel, Vida Ociosa, S. Paulo, Comp. Ed. Nacional, 2ª ed., s.d. pág.234).
3- OS RIOS
Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente.
Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.
Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança...
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,
Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...
(Olavo Bilac, Tarde, In "Poesias", Rio, Francisco Alves, 13ª ed., 1928, pág. 300)
4- ÁGUA CORRENTE
Água corrente! Água de um rio quieto
Cortando a alma ignorada do sertão!
Levas à tona, aspecto por aspecto,
Os aspectos da vida em refração.
Água que passa... Sonho predileto
Do lavrador que lavra o duro chão.
Trazes-me sempre a evocação de um teto...
Água! Sangue da terra! Religião...
Há na tua bondade humana e leal,
Quando a roda maior moves do Engenho,
Qualquer bafejo sobrenatural...
Ouvindo, ao longe, o teu magoado som,
Água corrente! eu me enterneço e tenho
Uma imensa vontade de ser bom...
(Olegário Mariano, Água Corrente, In "Poesia". Agir, Rio, 1968, pág. 55)
5- O RIO
Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu a terra;
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.
Um rio nasceu
(Vinícius de Moraes, Antologia Poética, Rio, Editora do Autor, 2ª ed., 1960, pág. 234)
Como se observa, cada um dos autores teve uma visão pessoal e particular da realidade rio, e a projeção da essência dessa realidade é feita diferentemente por eles.
A Godofredo Rangel o rio transmite a impressão de atividade animal, como a lembrar-lhe que a sua majestade não se deve ao aspecto inanimado e ao mesmo tempo grandioso que a Natureza lhe conferiu. Ele é um ser sensível que se enfurece e se acalma ao sabor dos cometimentos.
Para Olavo Bilac o rio é a projeção do seu próprio estado de espírito. É com uma conotação de amarguras, de desejos contrariados e insatisfeitos que a realidade rio se apresenta para ele. Sente-se aí a alma do poeta oprimida pelo inexorável, deixando-se levar pela força incontrolável do desenrolar da vida humana, enxergando a esperança no futuro e a saudade no passado.
Para Olegário Mariano, longe de ser tão-somente a água corrente, o rio é o sonho do lavrador, a evocação protetora de um teto, aquele sangue da terra que plasma o misticismo transcendental da religião. E nesse plano atemporal, o rio, movendo graciosamente o engenho, poupando o braço do homem, transfigura-se na bondade, como a lembrar ao homem a grandiosidade da obra divina, já agora movendo não a roda do engenho, mas o sentimento humano, tocando-o enternecendo-o pelo dom maravilhoso do sublime e da generosidade.
Finalmente, Vinícius de Moraes, mesmo explicando o nascimento, o desenvolvimento e a majestade do rio feito, foi buscar no universo poético a constelação de imagens com que pessoaliza a realidade rio. O poeta parte da causa para o efeito, mostrando que a simples gota de chuva que se projeta de encontro ao solo, seja na flacidez da terra que lhe abre o ventre (atente-se para a singularidade da imagem), seja na dureza das rochas, do ouro, do carvão, do ferro ou do mármore, vai esta gota sequiosa de espaço, em busca da luz, do horizonte largo.
Depois desses exemplos, é fácil concluir que, sendo eles deformações da realidade através de palavras de sentido múltiplo e pessoal, todos se caracterizam como obras literárias.
Do ponto de vista da linguagem, cumpre ainda notar que o signo usado pelas ciências e filosofias é o mais preciso possível, além de tender para o universal. Assim, se se diz que "o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos", enunciamos um princípio em que o sentido de cada uma das palavras será imutável a universal, podendo, inclusive, ser representado por signos que não são palavras.
O mesmo não se dá com a obra literária: nela, as palavras não são univalentes; ao contrário, são polivalentes, isto é, têm mais de um valor, mais de um significado, podendo variar de autor para autor ou de leitor para leitor. E, exatamente nessa possibilidade de escolha, nessa polivalência dos signos, está uma da maneiras de distinguir obra científica ou filosófica de obra literária.
Note-se que nenhum dos conceitos mencionados envolve qualquer idéia de valoração. Preocupou-se, tão somente, em conceituar obra literária e distingui-la de obra não literária. Assim sendo, qualquer obra escrita que ser enquadre nos dois últimos conceitos mencionados pode ser considerada obra literária, sendo seu valor como tal, objeto de outro tipo de estudo.
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Fonte:
Colégio Terra Nova.
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Colégio Terra Nova.
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