domingo, 14 de fevereiro de 2010

Cassiana Lima Cardoso (Cultura e Sociedade pelo viés Poético de Mário de Andrade)

Mario de Andrade (Caricatura de Di Cavalcanti)

Uma análise de poesia que busca através de sua leitura esboçar o panorama político e social de um tempo é, sem dúvida, uma iniciativa pretensiosa. No caso de Mário de Andrade, poeta complexo, profundo e extremamente pessoal, em que a procura da identidade não se faz sem tensões com o real, tal propósito deve se organizar de forma extremamente cuidadosa a partir de um atento olhar ao desenvolvimento de sua atividade poética, na qual a preocupação em ligar o texto a uma genealogia sempre mediou o modo com o qual Mário de Andrade construiu seu projeto estético e ideológico. Sem desvincular-se da aventura do homem Mário de Andrade, o seu fazer poético busca matizar sua concepção de mundo, do homem e do objeto próprio da poesia:

Por isso, a obra de Mário é simultaneamente uma procura da identidade do individuo e procura da identidade do grupo (que ele esforçou-se para identificar toda cultura brasileira); e por isso Manuel Bandeira, em “Variações sobre Mário de Andrade”, pode aproxima-los assim: “Brasil/Como será o Brasil/MÁRIO DE ANDRADE. (LAFETÁ ,1986, p.311)

Seguindo o esquema elaborado por João Luis Lafetá que procura delinear a poesia de Mário de Andrade a partir das várias máscaras que incorpora, veremos o modo como se realizam as contradições e as fraturas da classe burguesa no conjunto das Poesias Completas; perfeito espelho do desenvolvimento das grandes linhas-de-força do Modernismo e, portanto, da história da cultura brasileira no período compreendido entre 1922 e 1945.

A primeira máscara corresponde à fase vanguardista ,a do trovador arlequinal, do poeta sentimental e zombeteiro que encarna o espírito da modernidade e de suas contradições. A preocupação com o conhecimento exato do país e suas potencialidades é a pesquisa de identidade do poeta e de sua Paulicéia cosmopolita. É a partir da vivência de suas ruas e multidões que surgem os poemas de Paulicéia Desvairada:

“Sentimentos em mim do asperamente”.
dos homens das primeiras eras...
intermitentemente no meu coração arlequinal...
Intermitentemente...
(...)
Sou tupi tangendo um alaúde!”“.
(ANDRADE, 1979, p.33).

O eu-lírico é aquele que olha, observa, mistura-se á paisagem e entrega-se continuamente ás suas modificações, sem abandonar, porém, sua veia poética que o induz a cantar seu tempo na descrição da cidade moderna, lugar de movimento e agitação. Os “sentimentos” se entranham “asperamente”, isto é, o poeta não se submete prontamente ás emoções que lhe vem de fora; ou apenas na medida em que sua humildade diante das coisas representa uma fase preparatória, necessária para identificação do objeto-mas á qual sucede outra atividade definitiva – a ação consciente sobre o material poético, sobretudo a consciência da multiplicidade de feições que os contornos da cidade adquirem ante o eu-lírico provocando em a sua alma arlequinal profunda angústia quando este se enxerga como um “estranho” em um jogo de espelhos e contrastes que o confunde á própria paisagem:

Tristura

Profundo.Imundo meu coração...
Olho o edifício: Matadouros da Continental.
Os s vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a Avenida São João...

E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu não em guizos nos meus interiores arlequinais...
(ANDRADE,1979,p.39)

A versatilidade arlequinal o faz, ao confundir-se com o ambiente sentir-se constituído e constituinte da crueza e da rudeza do ambiente caótico que se apresenta na formação da nova cidade de São Paulo. No novo mundo que se anuncia, sente ao afundar-se em sua superfície, “imundo”.Ao mesmo tempo em que nega a realidade que o cerca, constata-se personagem imerso á frieza e á corrupção do jogo de aparências que corrói o ambiente e as relações sociais. Como observa Lafetá:

A impressão que se tem ao ler esses versos é contraditória: ao cheiro do novo, que eles ainda têm junta-se o sentimento de coisa desarrumada, caótica, quase informe. As reticências, as grandes exclamações, os neologismos e os preciosos (retórica e amaneiramento que o poeta nunca abandonou de todo) são responsáveis por sensação penosa de artificialismo e falsidade(LAFETÁ, 1986, p.316).

Não é só a poesia que parece ruim, mas ainda sua matéria nutridora, a cidade que a inspira e mesmo o eu-lírico ressente-se consigo ao perceber “imundo o coração”; “vícios que viciaram-no na bajulação sem sacrifícios”. É a inadaptação ao mundo e a si mesmo que faz com que Mário de Andrade resista em reconhecer-se no ser que aponta na sua poética.

Há um labirinto na grande São Paulo em que vários “eus” se perdem e se encontram em uma perigosa Odisséia:

Os Cortejos
(...)
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia – a grande boca de mil dentes;
(...)
Estes homens de São Paulo
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
parecem-me uns macacos,uns macacos. (ANDRADE ,1979,p.33)

As imagens apontam sentimentos ambíguos: tecem duplamente um fio de horror que corresponde ao reconhecimento de formas degeneradas e decadentes – expressas pela ausência de singularidade na reificação humana, ao incorporar os desígnios da moda como “uns macacos” – e pelo fio do encantamento tecido pelos olhos “ricos” do poeta, que fazem um apelo ao retorno da poesia, da compreensão, da identidade.

Entretanto, a postura de terror e estranhamento irá se amenizar em Losango Cáqui, pois apesar de manter-se a máscara arlequinal, a pesquisa do “eu” avança e encontra algo que se enquadra melhor ao corpo rítmico do poema.A cidade de pedra e concreto renasce, ao ver-se integrada a um elemento natural, o Sol, que atua como um catalisador para que o eu-lírico marioandradiano volte a atribuir sentindo á sua morada, São Paulo. A linguagem se harmoniza, ao sentir-se de novo o poeta solidarizado com seu mundo, seu eu e seus concidadãos:

XVII
[...]
A vista renasce na manhã bonita
Paulicéia lá em baixo epiderme áspera
Ambarizada pelo sol vigoroso,
Com o sangue do trabalho correndo
[nas veias das ruas]...

Fumaça bandeirinha
Torres
Cheiros
Barulhos
E fábricas...

Naquela casa mora,
Mora, ponhamos : Guaraciaba...
A dos cabelos fogaréu!....
Os bondes meus amigos íntimos
Que diariamente me acompanham pro trabalho...

Minha casa...
Tudo caiado de novo!
É tão grande a manhã!
E tão bom respirar!
E tão gostoso gostar da vida!
A própria dor é uma felicidade!

(ANDRADE ,1979,p.82)

O Sol revigora a paisagem, reacendendo o ânimo do poeta. Ele se enternece ao pensar em todos aqueles que impulsionam a engrenagem da cidade de São Paulo, e o movimento de seu olhar inverte a ordem do clichê futurista: ao louvar as fábricas, retrocede e volta á casa da trabalhadora que veio do interior. Personifica os bondes e bendiz a manhã (procedimento análogo ao do poema Louvação Matinal, de Remate dos Males). Celebra o momento no qual se movimenta e possibilidade que o trabalho lhe traz de, mesmo que dolorosamente, constituir uma de suas facetas, uma de suas máscaras:

Com certeza a mudança de tom perde alguma coisa, o impulso da violência da cidade grande, que é como cicatriz doída nos poemas da Paulicéia e agora aparece muito pouco.Mas na correção de rumos, do “cosmopolitismo” ao “localismo”, Losango Cáqui sai ganhando,pois não abandona as técnicas da vanguarda e mesmo assim aproxima-se melhor da realidade que deseja cantar. Um pequeno ajuste que é a grande vitória da forma:a conquista definitiva da poesia para a linguagem coloquial. (Lafetá, 1986, p.322)

No entanto, o sentimento “pau –brasil” mencionado por Mário de Andrade na “Advertência”, de Losango Cáqui irá se manifestar somente um pouco mais tarde, em Clã do Jaboti. A máscara de trovador arlequinal será substituída pela figura do poeta aplicado, o estudioso que pesquisa, em manifestações culturais do país todo, o descobrimento e a interpretação da realidade brasileira.Os poemas dessa época propõem-se a incorporar o folclore, as manifestações da cultura popular á nossa prática poética erudita. Na Paulicéia Desvairada e no Losango Cáqui, Mário enfrenta a questão da autêntica expressão do “eu”.Em Clã do Jaboti, depois de feita a crítica do individualismo de vanguarda, o mesmo problema é enfrentado de maneira diversa:

A revelação do “eu” passa pela socialização que no caso, significa abrasileiramento, maneira de enfrentar a alienação devoradora dos padrões culturais europeus (Idem, 328).

Porém Clã do Jaboti, ao bordejar os perigos do caráter nacional, consegue ao final demonstrar que o que busca Mário de Andrade a partir do estudo do folclore e da cultura popular é novamente a sua própria imagem, a figura do letrado brasileiro, quer dizer, daquele que está entre a realidade na qual vive e toda a cultura estrangeira que é a base de sua formação:

Brasil que eu amo porque o ritmo do meu braço aventuroso,
O gosto dos meus descansos,
O balanço das minhas cantigas, amores e danças.
Brasil que eu sou porque é minha expressão muita engraçada,
Porque é meu sentimento pachorrento,
Porque é meu jeito de ganhar dinheiro,
De comer e de dormir.
(ANDRADE,1979, p.109)

Mas também a euforia desses versos de Clã do Jaboti irá se reconfigurar.(Remate dos Males, publicado em 1930, prefere a fluidez variada de uma transmutação incessante: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta”) são os versos que abrem “Remate dos Males”, e sua estrofe central contrasta com as afirmativas finais de “o poeta come amendoim”:

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
(Idem ,157)

Não há mesmo uma correlação automática entre o ser e sua expressão, é o que constata o poeta. A “cultura brasileira”, que antes servira como ponto de referencia para dar unidade ás diferentes facetas do “eu”, mostra-se agora insuficiente. Remate dos Males, publicado em 1930, dá o balanço e liquida a primeira fase do modernismo . Talvez seja o livro mais variado de Mário , uma exibição extraordinária e depurada de todas as conquistas técnicas dos anos 20. Tem “Danças”, de 1924, no melhor estilo de combate de vanguarda, fragmentário e destruidor; tem o “Tempo de Maria” (1926), construtivo, pitoresco, saboroso e brasileiro como os textos impregnados pelo sentimento “possivelmente pau-brasil”; e tem as experiências finais da década, quando o modernismo abandona as contingências e a estética do choque, em um refluxo meditativo mais interiorizado: os “Poemas da Negra” (1929), e os “Poemas da Amiga” (1929-1930), que prenunciam a produção modernista madura e equilibrada dos anos 1930:

Publicado no mesmo ano da revolução que abre um novo período na história republicana, o Remate dos Males é sintomático: a liquidação geral a que ele procede guarda uma notável simetria com o ímpeto de mudança de rumos que gera a revolução (LAFETÁ, 1986, p.330).

Após Remate dos Males, em que a variedade do “eu” é apresentada em bloco ao leitor, como problema, Mário passou onze anos sem publicar um volume novo de poesias. Só em 1941, com este título justamente, Poesias, é que será editada uma antologia, constituída de poemas anteriores e apresentando dois livros inéditos: “A Costela do Grão Cão e o Livro Azul. Nesse livro aparece a quarta máscara a que se refere Lafetá, que a chamou de espelho sem reflexo. Há aqui uma radical descida do poeta em si mesmo, uma procura do “eu” que é ao mesmo tempo a procura do “outro”. E o curioso é que nesse mergulho na subjetividade acaba por se revelar uma dimensão social inesgotável: a “longa viagem na noite” que o poeta realiza aí, figura, simultaneamente, a intimidade atormentada e as inquietações de um grupo social que perdera a euforia e a confiança que, antes, permitiram-lhe realizações cheias de vitalidade.

Eu me aproximo de mim mesmo
No espanto ignaro com que a gente se chega pra morte
(...)
Tudo me choca, me fere, uma angústia me lava
Estou vivendo idéias que por si já são destinos
E não escolho mais minhas visões
(...)
Será que nem uma arrebentação
(Idem, 333)

E com um passo já esta-se diante de uma nova atitude de pesquisa, que descobre aspectos insuspeitados do país e conforma uma outra máscara: a do poeta político, de o Carro da Miséria, Lira Paulistana e Café. Essas obras trazem consigo vários pontos convergentes, tais como a denúncia da exploração social, a revisão amarga daquilo que foi cantado de modo eufórico na juventude, a esperança de transformação, a resistência e a expressão de uma angustia muito pessoal diante dos desmandos do mundo. Vê-se outra vez que o empenho interessado do poeta em desvelar o interior da luta de classes constitui-se de um prolongamento de suas inquietações intimas:

O passado atrapalha os meus caminhos
Não sou daqui venho de outros destinos
Não sou mais eu nunca fui decerto
Aos pedaços me vim – eu caio- aos pedaços disperço.
(...)
Rompe a consciência nítida :EUTUDOAMO
(...)

Destino pulha alma que bem cantaste
Maxixa agora samba o coco
E te lambuza na miséria nacionar
(Idem, 335)

Em Mário de Andrade o sentimento do mundo e o sentimento individual estão amalgamados: observa-se nas várias máscaras que constituem o eu-lírico do poeta, uma complexidade crescente. Entre o arlequim, o poeta aplicado, o poeta sem espelhos e o político, há acima de tudo aquele que toma a decisão de procurar a si mesmo, que transita entre o alto e o baixo, vai do eu aos outros, convivendo heróica e angustiadamente com o risco que envolve essa busca tanto no que diz respeito a aventura do fazer poético, quanto a da procura da própria identidade.

Para terminar, gostaria de, ao invés de tecer os comentários já desgastados no que diz respeito á importância de Mario de Andrade no que tange sua conduta e compromisso intelectual com seu tempo e nossa cultura, citar um trecho de Donald Schüler que talvez condense o propósito e a validade da mutabilidade das várias máscaras de sua poesia:

Ethos entrou no vocabulário do teatro com o sentido de personagem. Mascarados, os atores fazem-se personagens. Máscara é morada. Também morada o rosto que a reveste. Se derivarmos anthropos (homem) de anti (diante de) e ops, rosto, o próprio homem se apresenta como alguém que anda de rosto velado. A cadeia de máscaras não termina. O que se esconde atrás da ultima máscara? (SCHULER, 2001, p.179)

As máscaras renovam-se continuamente, pois o que elas dizem jamais cessará de vigorar: isto é, a cada nova leitura que fazemos de Mário, renova-se a sua poesia, o homem e a sociedade em sua complexidade de horror, fascínio, desencanto e deslumbramento.

Fonte:
Psicanálise & Barroco – Revista de Psicanálise. v.5, n.1: p.22-32, jun. 2007.

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