quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Batista de Lima (Navegando num Mar de Poesias)


Pródigo

Sempre retorno para casa
não para a casa
para onde sempre retorno

Retorno para uma outra casa
que carrego aos ombros
para outra casa
que me carrega aos ombros

Sempre carrego essa casa do retorno
que cabe em qualquer casa
e não cabe em casa alguma

Não adiante a casa onde nasci
nem a casa onde todo dia nasço

A casa que carrego
não tem portas nem paredes
nem ocupa terreno algum

A casa que carrego
é apenas uma casa
uma profunda e vasta casa

A Casa de meu Avô

A casa de meu avô
tem histórias que o vento
esqueceu nas cumeeiras

Traços traçam
amarelo de tempo
nas pessoas dos retratos
No chapéu de meu avô
o peso do esperar
pendurou-se nas abas

O último cachorro
deixou seu jeito no canto da porta
seu grito no longe da serra
e no susto dos bichos

Nos varais as marcas dos panos
se envergonham de nudez
Nos baús o cheiro dos lençóis
espera a vida
que se esvaiu pelas frechas

A casa de meu avô
é uma dor sem jeito



O que faz mais dura a solidão
é tirar de mim o que me falta

O que faz doer a solidão
é sua sede
é ter que arrancar
destas entranhas
um oceano de podridade
de quem freqüentou a escola das facas
onde o que corta não é o gume
mas a falta da lâmina

O que fere não é a dor
é sua ausência assassina
pendurada nos cabides da alma

O que dói na solidão
é ter que amar
e amar é perder uma banda
é extrair um bonde de um homem
é extrair um bosque de uma mulher

O que mais fere na solidão
é sua inscrição cravada em brasa
no braço inútil do verso
uma família em torno da mesa
comendo pratos de silêncio

O que mais dói na solidão
é perder de mim
os outros que carrego
o segundo contra o primeiro
o terceiro que instiga
o quarto que dorme
o quinto que inicia
uma infinidade de outros

O que dói na solidão
é essa batalha que não acaba mais
entre guerreiros invisíveis
enquanto um boi passeia nas nuvens
e uma bicicleta muge
já que os verdes anos foram nulos
para quem nasceu maduro
para quem perdeu o ciso
na primeira dentição
e o cordão umbilical
nos bicos de um galo cego
Ia prás bandas da Cipaúba

Quanto dói
ver a velha mangueira se desfazendo
velha velha mangueira
por quanto tempo roerei
teus nós
por quanto tempo aguardarei
a manga que os passarinhos
bicam
no último dos galhos

O que dói na solidão
é o vira-lata sozinho
revirando o deserto
da cidade esquecida nas ruas
é ter um pai com muitas capas
todas com seus mistérios
se desfazendo em barro
por um caminho que m’espera

O que mais dói na solidão
é ter na mão uma chave
que nada abre
que nada abre
O que mais dói na solidão
é não se poderem conter
os fantasmas que teimam
em saltar das sombras
de cada canto
São essas cobras
passeando em nossa cabeça
serpentário infindável

Difícil conviver
com a inesgotável solidão
mais difícil mesmo
é compor o verso
sem a vaca no divã
triste luna
rodonoite
áspera/mente

Só mesmo a roda grande
s’escondendo em menor roda
Só mesmo a bicicleta
pendurada no trem noturno
Só mesmo a melancia
no rio em cheia
boiando
E os carneiros na mesa grande boiando
os teus olhos boiando na bandeja
os teus seios boiando no cuscus
os teus sais boiando nas iguarias
os teus ais boiando na rememória

O que mais dói
não é tua ausência
mas tua presença
estando longe
Lembra-te pois do açude
onde as águas ainda nos guardam
e os peixes nos carpem
em lágrimas de cumplicidade

Lembra-te da porta marcada
pelos mistérios de estar fechada
da casa retendo a mesa onde
saboreávamos os silêncios familiares
e escrevíamos a história da solidão
no livro branco do cotidiano

A solidão mora lá e é manca
e usa bengala preta
e óculos no nariz
e se veste de uma veste que nunca muda
e tem na mão fechada a chave da
nossa libertação

Solidão solidão
meu coração é uma cidade
entre muralhas
esperando tuas chaves

Solidão solidão
certa vez em Mombaça
pedia esmolas p'ra São Sebastião
e desenhei teu corpo num surrão de mangas
e em bandas de coité de brejo
Desenhei teu corpo
num portão de vidro
éramos dois
que não eram dois
Éramos dois e só um sol
a claridade e seu dorso
a clara idade e sua dor

Solidão solidão
estamos em pleno mar e não
há mar nenhum
Estamos em pleno sono
e não há qualquer sonho
só minha mão como um rosto
cortando em muitos
o luar de agosto

O que dói na solidão é ter
Ter é estar preso
pesar pesadamente fixo
Não ter
é poder voar
Leve
levo-me às alturas
lavo-me candura
com o vôo esculpido
no azul azul
o azul está no prato
servido e sorvido
seres vivos
estamos nele
e ele em nós
pasto de pasto
repasto
solitariamente circular
rodando em torno da roda
A solidão eixa e deseixa
em roda
quanto mais vemos
menos vivemos
coração coração

Tenho ossos e mais ossos
a rodear
Que tenho feito senão rodear
nunca quebrei o fêmur do que está posto
nem a tíbia das situações sem jeito
Rodear é fugir
Solidade
quando chegamos ao trem
não havia trilho
No açude não havia água
só a dor do pescador
dois meninos
engolindo uma duna
e uma duna engolindo um astro
uma foto de uma foto partida
onde o instante enterrou-se
A solidão é uma foto em que
se retorce
um inconformado instante

Solidão é desencontrar-se nos próprios passos
nos próprios ossos
perder o azul do firmamento
deixar de extrair gerânios
das pedras e de suas raízes
deixar de pentear os raios do sol
desarredondar a lua em luares
atravessados

Uma casa é uma caixa
de apenas portas
e abertas todas
uma casa é um avesso
um delírio espesso
vasto berro de barro
vagido e gozo
vôo espargido
de sonho e suspiro

Minha solidão é nódoa grudada
no ombro esquerdo do corpo
onde jaz a mala
das minhas desventuras

Minha mãe é a terra
e cumpro seu estatuto
em retomar ao seu ventre
meus filhos todos me seguirão
vastíssimos sonhos
de/verão

Tarde tarde
a solidão me salga as horas
a mulher que retém o homem
suas asas e águas
rio seco
areia de leito
íngua cortada
ferida tratada a urina
caborge
no meu pescoço levo teu pescoço
teus passos laçados
teu poder de vôo
teu grito guardado

Solidão é Laura de costas
Laura láurea loura
minha querida Laura
chorarei lágrimas douradas
quando tua nudez
se esculpir no relâmpago

Querida Laura
recupera aquele instante
em que nossos dedos se
tocaram
e nos perdemos

Recupera o instante anterior ao toque
quando a correnteza era mais forte em mim
o despencar mais vertical
retendo aqui esse abismo
que me engole

Recupera teu pai
e a cuia
que enchamos de esperanças
antes do leite

Recupera tua mãe
e a chuva fina
no telhado

Recupera as águas
que nos levaram
e lavaram
nossos sais
o céu azul
o curto mundo
onde só o coração era vasto

Recupera as curvas
dos caminhos

Recupera o fogo de
monturo em nós

Se não me queimo
não posso iluminar
se não te firo
não extraio de ti o coração
"rosa vermelha
do meu bem querer"

Na noite tarde
o que resta é meu corpo lá
e eu daqui
olhando sua/minha posição fetal
e essa angústia de perdê-lo de vista
Não sei quando perderei
essa dor
de perder a casca
a casa do ser não importa tanto
se tantas se erguem
Só o ser é uno
solitariamente nu
e eu molusco
a vida inteira tenho construído essa casca
que me expele e me retém
escravo da construção
construir é viver
terminar a casa é terminar-me
é expulsar-me da casca construída

Foi fácil colocar a flor
atrás da flor
e ficar de uma só flor
reinventando pomares

Foi fácil reverter a manhã
colocando alvoreceres
de sol a pino
Foi fácil engatinhar
pelas galáxias
semeando brancas nuvens

Houve no entanto
um difícil momento
mudar o destino da tarde

Solidão solidade
quando procurarei no bolso
o poema
encontrei aberta uma artéria
e teu rosto de fada
tua avó morrente
uma floresta escura

Quando procurei no bolso
o poema
encontrei um mistério esculpido
algumas lavadeiras
oito bicicletas
e uma tia puxando um terço
solitária

Quando procurei no bolso
o poema
te vi mais uma vez
prima/vera/ndo
Vi também uma dor sangrando
solitária

Nos nossos bolsos pulsam
os meninos que enxotam o demônio
escondido num cupim
e uma mulher de tarrafa
tentando pescar o mar
nas entranhas de um peixe

Nos nossos bolsos
pulsa o destino do poetar o
revirar cada coisa para
desvendar seus mistérios
enquanto meus mistérios
para trás vão ficando
cada vez mais distantes
cada vez mais distantes
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Fonte:
Soares Feitosa. Jornal de Poesia.

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