quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

André Giusti (O Imenso Mundo das Pequenas Coisas sem Importância)


Assim que cheguei, procurei um lugar em que pudesse descansar, muito mais a cabeça do que o corpo.

Escolhi a beirada da cama de onde ele havia saído minutos antes, para sempre. Enxerguei o par de chinelos desgastado tanto pelo tempo quanto por seus pés inquietos, atrás sempre de novidades e problemas para resolver dentro de casa. De tão velho, o couro da palmilha abria-se em rachaduras esbranquiçadas pelo polvilho antisséptico, usado religiosamente todos os dias após o banho.

Mesmo com os ruídos da rua e de outros vindos do fundo da casa, o que prevalecia em todo o quarto era aquele silêncio pungente na minha cabeça; e no silêncio, em sua inércia, o par de chinelos explicava-me que em um momento como aquele o que mais doía não era propriamente a ocasião em si, mas as lembranças pequenas que viriam em seu rastro nas próximas horas, quando eu precisaria começar a me convencer de sua ausência definitiva. Eu que me investisse de coragem e enfrentasse a carga sentimental das manchas de polvilho, dos métodos de combate às frieiras, e dele mesmo, par de chinelos, que esquecido no canto, agora aguardava apenas que se cumprisse o destino de ser doado a algum asilo pobre.

As grandes lembranças e exemplos deixados estariam dormindo no quarto resignado da memória. Se deles precisasse a qualquer tempo, bastaria acordá-los e verificar seus ensinamentos, que logo depois tornariam a adormecer, conformados. Às lembranças intrincadas nas pequenas coisas, no entanto, era mais difícil pegar no sono da aceitação. Remexidas, padeceriam de insônia, perambulando e acendendo luzes pelos corredores da minha cabeça, recusando-se a ficarem quietas aguardando que o sono viesse.

O que eu temia, então, era aquele mundo imenso de pequenas coisas desabando sobre mim, povoado por objetos que de tão tolos passaram pelas minhas mãos durante anos sem que eu lhes atribuísse qualquer significado, apenas porque antes não representavam a ausência.

Seria o caso do facão de cozinha, com que ele punha em prática sua maestria em cortar finas fatias de carne assada a pedido ou mando da esposa, conforme o humor do dia. “Tem mais de 50 anos”, e ele erguia as mãos engorduradas mostrando a curvatura no metal adquirida após décadas de afiação diária. Ao lado, estaria também a colher de pau, escura de tantos mergulhos na panela de feijão e ligada ao facão não só pelo convívio, mas também pela origem: foram comprados logo após o casamento, em algum bazar que existia no centro da cidade em 1947 ou 48.

Mesmo a poltrona da sala, lembrança emblemática, talvez não me doesse tanto quando desse com ela vazia, sabendo eu que ele não fora simplesmente à cozinha tomar um copo d’água. Quem sabe nem mesmo as fotos, com suas imagens de passado feliz, seriam capazes de guardar com elas os principais motivos de saudade. Exatamente por causa da intimidade com a rotina, doeria mais o que fosse mais insignificante, incrivelmente mais estúpido e sem qualquer
valor de estimação, como vidros de remédios inacabados, um frasco de leite de rosas pela metade, a lâmina quase cega do aparelho de barbear descartável e esta camisa de tecido xadrez já puída na gola, com a qual enxuguei as primeiras lágrimas depois de chegar.

Fonte:
GIUSTI, André. A Liberdade é amarela e conversível. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

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