terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Jamil Snege (O Ciclista)


Difícil foi esconder a bicicleta. Acabou achando um espaço no porão, atrás do tampo de uma mesa desmontada. Seus filhos já não entravam mais ali, a mulher tampouco – despejo de cacarias, lustres e móveis quebrados, garrafas, jornais velhos. Reluzente, coberta por um pano, a bicicleta prometia-lhe aventuras inusitadas no seu poeirento esconderijo.

Nunca aprendera a andar. A mulher sempre zombou – jamais conhecera alguém que não soubesse andar de bicicleta. Escarnecia-o diante dos filhos e chegou mesmo a humilhá-lo quando ele se propôs a ensinar o mais velho, então com cinco anos, a pilotar a máquina que ganhara da avó. “Vai ensinar a ele o que você não sabe? Ridículo!”

Vingou-se da humilhação exibindo o novo ciclista com um perfeito domínio da máquina. A mulher negou-se a reconhecer-lhe o mérito. Quando o filho mais novo, através de sua mão paciente e segura, adquiriu também ele a mágica noção do equilíbrio sobre duas rodas, a mulher foi mais rude: “Por que não deixou que ele aprendesse sozinho? Teria sido mais fácil”.

Engoliu a ofensa em silêncio. Passaram-se os anos e ele pareceu esquecer. Os filhos cresceram, trocaram suas bicicletas por namoradas e carros, seguiram suas vidas. Restando-lhe a mulher e uma confusa sensação de inutilidade. Foi então que teve um sonho premonitório. Sonhou que pilotava uma bela bicicleta azul, velozmente, pelas ruas do bairro. Reviu o portão da casa do cônsul, os muros de ardósia, o grande cipreste na esquina. O telhado de sua própria casa, de um verde já desbotado, e a negra faixa de asfalto ao fundo.

Sentia o vento lamber seu peito e a gloriosa sensação de liberdade – o passado, a idade, tudo ia ficando pelas esquinas, para trás. Acordou deliciado, um leve torpor nas pernas de tanto pedalar. Dissimulou tão bem sua felicidade que a mulher, na mesa do café, achou-o meio triste e mais calado que de costume. Talvez por essa razão não reclamou quando ele avisou que precisava ir até a cidade resolver alguns negócios.

Convenceu o vendedor que precisava da bicicleta logo de manhãzinha. Não fazemos entrega tão cedo, tentou ponderar o rapaz. Fale com seu gerente, insistiu ele. A bicicleta acabou sendo entregue às sete da manhã seguinte – ele esperava no portão, no nicho previamente preparado. Cobriu-a com um pano, colocou de volta o tampo e subiu para o café. Pôs a água para ferver e foi fazer a barba. Suas mãos tremiam. A mulher ainda não acordara.

No dia seguinte, despertou às seis em ponto. Escolheu uma roupa leve e uns sapatos esportivos. Serviu-se de um copo de leite na cozinha e foi tomá-lo à porta do quarto. Na penumbra, a mulher dormia de boca aberta. Ficou ali um minuto ou dois, dando pequenos goles, retendo o líquido gelado na boca antes de engolir. fechou a porta e saiu.

Professor e aluno a uma vez só, encostou a bicicleta no meio-fio e, antes de montar, certificou-se de que não havia nenhum vizinho à espreita. Apoiando o pé direito na guia da calçada, deu um pequeno impulso para frente, mas não chegou a colocar o outro pé no pedal. Seu coração acelerou-se e tentou novamente.

Na terceira tentativa conseguiu meia pedalada e só por sorte não foi ao chão; susteve a bicicleta inclinada entre as pernas abertas, chocando o pedal contra a panturrilha. Foi descendo a rua aos trancos e quando percebeu que se afastara uns duzentos metros do portão de casa decidiu que era hora de voltar. Calculou que a última tentativa lhe rendera uma pedalada completa e uns quinze metros percorridos sem apoio.

Voltou na manhã seguinte e nas outras manhãs. Sua primeira queda ocorreu no terceiro dia: feriu o joelho esquerdo e ambos os cotovelos. Quando sentou-se para o café, descobriu um corte ardido junto ao pulso. A bicicleta nada sofrera na sua bela cor azul. A mulher achou-o corado e bem disposto. Depois reclamaria das manchas de mercurocromo no piso do banheiro.

O fim de semana amanheceu chuvoso e ele resolveu não se arriscar. Antes do almoço de domingo, insinuou-se no porão e foi dar uma olhada na companheira. Retirou o pano que a ocultava e fitou-a ternamente. Amanhã passa essa chuva, sussurrou e voltou a cobri-la. À tarde, afastou-se das tias que visitavam a mulher e subiu para o quarto. Há muito que se sentia invisível na casa, principalmente depois da saída dos filhos. Limitava-se a sorrir para as visitas, quase sempre visitas da mulher, enquanto sua cabeça viajava para longe. E elas nunca lhe exigiam mais que isso – um sorriso tolo e apagado. Tinha agora um motivo adicional para se furtar às conversas sobre doenças e parentes remotos. Clandestina no porão, amante amantíssima, a bicicleta azul – seu pacto secreto com a vida. Abriu o guarda-roupa, subiu nos pés da cama e procurou no fundo do maleiro pela velha mochila. Separou uma toalha de banho, algumas roupas, um abrigo de chuva. Guardou tudo na mochila e voltou a descer. As velhas tias estranharam sua amabilidade ao se despedirem. A mulher ligou o televisor e só abriu a boca para se queixar do tempo na hora de dormir.

Ainda caía uma garoa fina quando a segunda-feira clareou. Ele desceu o porão, retirou o pano e pela primeira vez observou o efeito das gotinhas d‘água sobre o azul reluzente. Desta vez não se apoiou no meio-fio. Pedalou com determinação e percebeu, maravilhado, que os dois dias de abstinência tinham eliminado todas as dificuldades entre ele e sua máquina. Flutuava sobre as duas rodas – e a bicicleta lhe respondia com entusiasmo a cada giro vigoroso do pedal. Lamentando não encontrar nenhum vizinho, contornou o quarteirão. Quando passava diante de casa, reduziu a velocidade na esperança de que sua mulher surgisse à janela. repetiu o mesmo trajeto algumas vezes, até que finalmente dobrou à direita e mergulhou em direção à estrada que se abria logo adiante.

Fonte:
Jornal Guata. – Cultura em Movimento

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