sábado, 27 de fevereiro de 2010

Ronald Augusto em Xeque



Miscelânea de entrevistas realizadas pelo Jornalista Douglas Resende do diário O Tempo, de Belo Horizonte e entrevista para a Revista Algaravaria

Porque poeta?

Lá pelos meus 12 ou 13 anos, minha mãe me escolheu como o ouvinte primeiro de seus poemas. Aquilo para mim foi uma tortura. Ela lia entusiasmada os seus versos. Meu jeito quieto e reflexivo ou minha condição de filho mais velho, talvez tenham lhe sugerido a idéia de que eu seria o leitor adequado. Fiquei sem palavras. Era tudo muito chato. Uns três anos depois, escrevi meus primeiros versos. Que lição tiro disso? Nenhuma.

Qual sua trajetória literária até o primeiro livro? E do primeiro para o último?

Duas perguntas que suscitam respostas intermináveis. Mas, não vou dar essa alegria ao divino internauta. Escrevi muito e li, durante algum tempo, só Manuel Bandeira. Depois dos poemas motivados pelas paixões da adolescência, resolvi sondar a real qualidade do que eu vinha escrevendo. Entrei em concursos literários. Em 1979, um poema meu mereceu menção de "destaque" num certame que envolvia várias etapas ao longo de um ano. Fiquei feliz porque o júri era composto, aos meus olhos, pelos melhores poetas da época: Mário Quintana, Heitor Saldanha e Carlos Nejar. Ao final do concurso uma antologia foi publicada e lá estava o meu poema. Minha estréia em livro. Meu primeiro livro não foi o primeiro, é que antes dele (1980, 1981), "pirado" com a poesia marginal, editei livrinhos em xerox bem vagabundos e participei de intervenções-bomba de autores independentes na Feira do Livro. O leão de chácara da Feira aparecia para expulsar a patota. Numa dessas, o Heitor Saldanha foi visitar os poetas marginais para prestar sua solidariedade, e folheando os precários livretos, abriu o meu e elogiou com entusiasmo as imagens e metáforas que encontrara. Isto para mim serviu como o empurrão definitivo: pronto, eu era um poeta, meio hippie, mas poeta. Mas, Homem ao Rubro, de 1983, é que foi, de fato, o meu livro inaugural. Eu tinha 22 anos. De lá até agora, é como diz Borges, a cada novo livro, acho que tento reescrevê-lo.

Quais livros fizeram parte de sua formação? Há uma obra com a qual tenha descoberto a poesia de um modo mais contundente?

A obra capital para a minha formação é a de Manuel Bandeira. Sua poesia é tanto mallarmeana, quanto antropofágica, isto é, Bandeira consegue dosar anti-poesia e poesia pura em seu percurso textual; suas traduções, que vão desde o barroco da poeta mexicana Sor Juana Ines de la Cruz (séc. 17), passando pelo poeta e ativista negro Langston Hughes (1902-1967) e chegando até os "poemas à maneira de...", que gosto de interpretar como exemplos de traduções heterodoxas, onde o velho Manu (como o chamava Mário de Andrade) inventa, por exemplo, um poema afivelando a máscara de E. E. cummings. Também adoro sua prosa voltada às questões da poesia, isto é, sua metalinguagem. Itinerário de Pasárgada é um livro incomparável. Outros livros: A Commedia de Dante, Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, Museu de Tudo de João Cabral de Melo Neto, etc. Nada de especial.

Teve algum incentivador?

Que eu saiba, não. Sempre associei a imagem do chato à do incentivador. Hoje em dia há a figura do motivador, pior ainda. O incentivador esconde um moralista. Prefiro os opostos e complementares: o admirador e o crítico.

Recebeu ou recebe conselhos importantes de escritores? Como foi e é o diálogo com outros escritores?

Escritor que dá conselhos não merece crédito. O diálogo com os outros escritores não difere muito daquilo que acontece com qualquer pessoa que vive em sociedade, é preciso que haja afinidades eletivas. A expressão parece pernóstica, mas é isso. E é comum acontecer que o seu melhor amigo seja um torcedor obtuso do time adversário. E tem aquele para quem a gente dá "bom dia" não se sabe porquê, o sujeito não fede nem cheira. Vá de retro.

Tentou vários gêneros literários? Ainda os pratica em segredo?

Quando fiz curso de interpretação teatral (fiz e, por enquanto, não nego), escrevi textos dramáticos. Passou. Na mesma época, década de 80, também escrevi alguns contos. Passou também.

Com que se inspira para escrever? O que é matéria para a poesia? Com quantas metáforas se faz um poema? Quando escreve, qual o efeito estético visado?

Geralmente aquilo que me "inspira" é alguma solução de linguagem que hesita, como diz Valéry, entre som e sentido, uma paronomásia, para usar um conceito de Roman Jakobson. Qualquer coisa pode se tornar matéria para um poema. Do contrário, eu estaria jogando as minhas fichas no anacronismo da "poesia pura". Um poema se faz com metáforas boas. Dependendo da situação, nenhuma metáfora é a melhor saída. Aliás, na minha opinião, a metáfora representa o kitsch da função poética. Qualquer resposta criativa no trato com a linguagem que ponha em cheque a sua naturalização (da metáfora) e os medianeiros da metaforização indecorosa, seráválida. Eu viso um poema que suscite muitas e contraditórias leituras.

Tem obsessão em reescrever o mesmo texto? Ou a emenda é pior do que o soneto? E mais: guarda tudo o que escreve? Ou elimina sumariamente?

Homem ao Rubro foi um livro escrito a partir desta perspectiva, da reescritura em abismo. Hoje em dia, sou mais atraído pelos poemas "errados e estropiados", como diz o poeta Mauro Faccioni, da Ilha do Desterro. Não guardo, não. Também não tenho livros engavetados. Minha produção é mirrada. Atualmente, considero que tenho dois livros in progress, só. Livro pronto, na gaveta, nenhum.

Para escrever, precisa conhecer muitas cidades e ler todos os livros?

Algumas cidades e alguns livros. Passei minha infância no Rio de Janeiro, mais exatamente em Niterói. Depois, durante a crise dos meus 30 anos, morei em Salvador/BA. Ambas são cidades fundamentais para mim. Mas, éclaro que tudo depende da leitura, do nosso ponto de vista de forasteiro. E as cidades estão na base das mitologias da modernidade. Baudelaire, T. S. Eliot, Oswald de Andrade, etc., todos os grandes poetas do cânone ocidental leram o livro das cidades.

Há idéias ou imagens que lhe perseguem no fio dos anos e das obras?

Não, acho que não. Talvez porque me assuste um pouco a questão da repetição ou da auto-imitação, estou sempre tentando experimentar lances novos. Não chega a ser uma idéia, mas a minha divisa é: experimentação.

Como define a sua poesia? Como caracterizaria suas ambições estéticas principais?

Isso é trabalho para os críticos interessados. Mas, para não deixar o divino internauta sem resposta, indico o texto do poeta Cândido Rolim a respeito da minha poesia, que apareceu recentemente em www.cronópios.com.br . Este mesmo texto foi re-trabalhado e ampliado e será publicado oportunamente por Edimilson de Almeida Pereira (MG), que organiza um livro de ensaios onde diversos autores escrevem sobre questões poéticas.

Qual a relação entre seu trabalho e sua escrita?

Nenhuma.

Qual a relação entre sua poesia e as artes plásticas?

Quanto a esta questão, ainda sou poundiano, "a poesia está mais perto da música e das artes plásticas ou visuais do que da literatura", cito de memória. Hoje em dia poderíamos ampliar o parentesco incluindo o cinema. Muita gente se opõe a esta proposição de Pound. Com efeito, ela causa algum desconforto, principalmente para quem vê na literatura este arco generoso a abrigar todas as manifestações verbais marcadas por uma desenvoltura de imaginação. Mas, para Ezra Pound, literatura não é senão a forma refinada desta instituição pernóstica conhecida como sistema literário. Acho que esta proximidade, intuída por ele, entre a poesia e tudo o que não fosse "lixeratura", só confirma a sua devoção a esta arte que é, toda, apenas "cernes e medulas". E há um esforço violento por detrás deste apenasque, agora sim, a literatura é incapaz de experimentar.

Qual a relação entre sua poesia e a música?

Pode parecer estranho, já que também sou músico, mas acho que não há nenhuma relação notável. Gosto muito de música, de fazer e de ouvir. Assim como gosto de cinema. A música na minha poesia representa um estímulo como qualquer outro. Quando faço um poema, deixo o músico no banco de reservas.

Em que geração literária você se concebe? Ela tem um projeto definido?

Minha formação se deu durante a década de 80 e meus primeiros livros também foram publicados neste momento. Os teóricos de estética acomodam este trecho histórico dentro do período pós-moderno. Um traço desta geração parece ser o de uma construção poética que se espoja num pastiche tanto do passado como de um futuro algo cínico.

Como vê a pontuação na (sua) poesia?

Não vejo, porque não a utilizo. Exceto quando busco algum efeito icônico, por exemplo: um parêntese aberto sugerindo um "crescente", uma "vírgulágrima", etc.

Como percebe suas principais qualidades como escritor? Há algum defeito de que não abra mão?

Não sei se é uma qualidade, mas só começo a escrever quando acho que esbarrei em alguma coisa que escapa à convenção. Um defeito de que não abro mão: os parênteses.

Muitos poetas hoje apresentam uma versatilidade acadêmica. Eles falam várias línguas, traduzem, fazem ensaios, críticas, resenhas, estudam várias disciplinas. O poeta precisa ser um erudito? Poesia só se faz com muito estudo?

Os poetas contemporâneos não se envergonham de um certo virtuosismo técnico a que se submetem ludicamente. Transitam com leveza pelo círculo vicioso da competência. Sua erudição é um banquete após uma expedição de conquista. O refinamento é tudo. Numa espécie de réplica soft ao politicamente correto, re-instauram o poeticamente correto.

O que mais lhe agrada em um poema, dado o variegado múltiplo da poesia atual?

A beleza do difícil que ele possa conter. E a coragem da anti-poesia, que pode ser uma tradução para a beleza já referida.

A poesia tem prestígio no âmbito da nossa cultura?

Não, acho inclusive que a condição marginal da poesia, relativamente ao prestígio gozado por outras formas de linguagem no âmbito do embate cultural e malgrado o risco de desaparição que tal marginalidade pressupõe , é interessante porque obriga o poeta a assumir uma postura de maior autonomia crítica. E jáque nada se espera dele, talvez desde aí possa surgir alguma coisa.

Qual a função social da poesia?

Propor formas estéticas ao indecidível e ao equívoco que marcam o privado e o individual, de modo que eles disponham de forças para a deglutição meditativa/corrosiva dos signos do espaço público.

A poesia se esgotou como gênero literário? Se não, que caminhos podem evitar um futuro esgotamento?

Se eu soubesse como identificar os sinais de um tal esgotamento a rondar a arte da poesia, eu não os revelaria. Injetaria o contraveneno só na minha poesia. Você pensa que é mole ser um novo Homero?

Há obras meramente comerciais de poesia? O que pensa delas?

Alguém já disse que a expressão "poesia formalista" é uma redundância, pois poesia é forma, mesmo. Então, "poesia comercial" para mim, é uma contradição entre termos. Tem poesia ruim, isto é uma coisa. Mas, se é comercial, não é poesia. Portanto, a indignação de Augusto de Campos dizendo, num seu poema, que não se vende, tem algo de moralismo teatral. Faltou aprender a lição de Pessoa/Ricardo Reis: "Cala e finge./ Mas finge sem fingimento".

Quanto tempo dedica à leitura de crítica literária? Concorda com a idéia de que, nos jornais e revistas, ela está mais digestivo-introdutória do que analítico-crítica?

O tempo que dedico à leitura de textos críticos é mesmo que dedico à leitura de poesia, isto é, o tempo que dura o prazer textual. Meu desejo de linguagem dita as regras. O jornalismo literário tende cada vez mais a tornar-se um mero relações-públicas do mercado editorial.

Políticas literárias: faz qualquer negócio para sua obra ser editada? é justa a percentagem que fica para o editor e para as livrarias? É justo que o escritor seja a causa produtora de um sistema literário que não o beneficia corretamente? O que se pode fazer?

Não. Não. Não. Aproximar a poesia da música e das artes não-verbais. Afastá-la da literatura do sistema literário.

Quais são os vícios e as virtudes da poesia brasileira moderna e contemporânea?

Só um: o verso livre. Embora seja um exagero insistir em dizer que o "ciclo histórico do verso está encerrado", parece ficar cada vez mais claro que o verso livre modernista que, diga-se de passagem, a maioria pratica ainda imperitamente, sem fazer vacilar suas contradições e possibilidades constitutivas experimenta um momento de estagnação. Nem mesmo as vanguardas, que inventaram a "música sem-versista": o poema como uma constelação suspensa na página; nem mesmo elas conseguiram mudar o quadro. Talvez isso se deva, em parte, a precoce canonização do versolibrismo. Aliás, sua defesa, em alguns casos, foi tão dogmática quanto a dos que o repudiavam. O verso livre ainda tem alguma coisa a ver com o verso metrificado que pretendeu substituir.

"Escrever sobre escrever é o futuro do escrever"? (Haroldo de Campos)

Escrever sobre escrever sempre fez parte do nosso repertório, desde Homero, passando pelos griots africanos, pelos cantores provençais, pelos simbolistas, etc., e chegando até aqui. A metalinguagem está no passado da tradição e no presente que põe em cheque ou em movimento este passado. Escrever sobre escrever é um dos quesitos do escrever. Se isso tem futuro? É cedo para saber.

Alguma epígrafe que o acompanha sempre? Algum epitáfio lhe contém?

Invejo o poeta peruano Mirko Lauer que colocou como epígrafe ao seu livro Os poetas en la republica del poder, esta maravilha de José Lezama Lima : "...el encapotado odio de siempre de los poetas tejedores de la gran resistencia en contra de los asquerosos y progéricos, porcinos y tarados protectores de las letras". Como epitáfio, um poema-verso do Ricardio Silvestrin: "quero ser cromado".

Como você se vê frente ao recebimento de originais? Comenta tudo o que recebe?

Hoje em dia considero um trabalho. Quando me pedem para ler, eu cobro pela leitura e escrevo um comentário crítico. É claro que leio, "na faixa", os originais dos poetas de minha predileção e geração. Neste caso, não estou na posição de orientador, volto a minha condição de fruidor. Ultimamente ando lendo, entre outros, os originais do Ademir Demarchi e do Paulo de Toledo, estou adorando. Ambos grandes poetas que conheci de uns anos para cá. Outro poeta de quem espero e recebo sempre poemas perturbadores, é o Cândido Rolim, autor do livro Pedra Habitada.

Que livro prepara? Qual seu eixo principal?

Os editores da Ameopoema, Alexandre Brito e Ricardo Silvestrin, querem lançar um livro reunindo todos os meus livros anteriores ao Confissões Aplicadas, editado pela mesma editora em 2004. Acho uma bela idéia, jáque estes livros remotos tiveram edições bastante reduzidas. O Homem ao Rubro, por exemplo, foi o de maior tiragem, teve 300 exemplares.

Além de poeta que tem seus versos publicados no papel, você é músico e letrista. Uma coisa influencia a outra? Ou são produções separadas?

Tenho uma vida dupla. Mas a vivo sem grandes traumas. Não misturo as duas formas de arte. Entretanto, não obstante a conjunção entre poesia e música seja uma realidade estética possível, decidi não enveredar por esse caminho. Para mim, o poema tem uma música toda peculiar que pode eventualmente prescindir de sua presença digamos assim audível no mundo; o poema pode ser fruído no silêncio do pensamento do leitor. Não se trata de recusar sua performance oral, isto é, a enunciação à viva voz do verbal para além da sua visualidade na página impressa. Já a canção é "palavra voando" (como escreve James Joyce), um lance de linguagem cujas regras se ligam à respiração vital do corpo. Em resumo: minha poesia está nos livros e minha música (compósito inextrincável de letra e melodia) nos CDs que lancei individualmente ou com a minha banda Os poETs.

Você acaba de participar do "ECO: Performances poéticas", na cidade de Juiz de Fora. Como você vê a performance como meio de expressão da poesia? Você escreve poemas para serem lidos em voz alta ou em algum tipo específico de performance?

Escrevo poemas para serem fruídos, não importa a maneira encontrada pelo leitor-executante-intérprete para alcançar esse ponto de re-invenção. Sempre gostei de simplesmente ler o poema, sem quase nada de intensidade teatral que, não raro, resulta em retórica altissonante típica de um gosto retrô, que ratifica a imagem da poesia como essa coisa caipira, esse vociferar maneirista do coração. A performance é um meio de expressão possível da palavra poética. Cada poema, potencialmente, inaugura e exaure uma chance de linguagem. Assim, cada performance deve se lançar desde a específica solução estética constitutiva do poema.

Quais são suas principais referências na poesia? Numa resenha do seu Confissões Aplicadas (Ameopoema), Ricardo Aleixo fala de um "mixer" que inclui a poesia concreta, que inclusive tem a ver com a idéia contemporânea da "materialidade" do poema.

Manuel Bandeira é o maior, a vida inteira. Para mim, dentro da tradição brasileira, o poema "Organismo", de Décio Pignatari, é o mais importante do século XX: a conquista para a poesia de uma visualidade cuja precisão opera sobre a imprecisão do icônico transformado em simbólico, ou do verbal em trânsito para o não-verbal. Uma poesia (a visual) que nunca resta no lugar onde há pouco a deixamos.

Qual o último livro de poesia que você leu? E qual o último que você releu?

Estou finalizando a leitura de A Lógica do Erro, de Affonso Ávila (é verdade, não faço média com a tradição poética mineira, não!). Sou um admirador do Affonso, o sábio da poesia do escárnio. O poeta sabe dar ao erro, ao defectivo da linguagem, o assentamento de um quatro que se contenta de seu pé quebrado, porque foi arduamente conquistado, cito um pequeno trecho: "o infenso à inferência do lobby/ de palavras astutas artísticas...". Estou relendo os contos de Kafka enfeixados no livro Um Médico Rural (tradução de Modesto Carone). Mais do que com a lógica do sonho, o autor de O Processo lida com a lógica do pesadelo. Kafka reinventa o humor numa perspectiva exasperante.

Além das questões formais, é possível falar de um universo representado por seus poemas? Quero dizer, se o lírico seria a manifestação de um "eu interior", que eu é esse nos seus poemas? E no caso de No Assoalho Duro (Éblis), seu último livro? Ronaldo Machado menciona suas leituras de Nietzsche como fator relevante em seus poemas...

Mas além das questões formais não há mais nada. Poesia é forma, mesmo. Forma: estrutura significante de controle do acaso, plasticidade do pensamento-arte. Gostaria de lembrar uma máxima mallarmeana, diz assim: quem fala no poema não é o poeta, mas a linguagem, ela mesma. A poesia contida nesse livro é a que me foi possível conquistar durante os três anos em que vivi em Salvador, Bahia. Em Nietzsche, vontade de poder se resolve criticamente em vontade de engano. A alegria do engano e a poesia como essa viagem empreendida pelo leitor ao (seu) desconhecido.

Qual a história de No Assoalho Duro? São poemas escritos entre 1988 e 2006, o que é um longo intervalo de tempo. Trata-se de uma reunião de poemas aleatórios ou existia uma consciência de um livro sendo gerado ou nada disso?

É um livro-resto, livro-refugo. Um álbum de formulações de linguagem expurgadas, colocadas de lado, deslocadas, postas à prova da margem, do derrisório. Quando comecei a organizar o livro, resolvi partir do seguinte ponto: configurar um livro não-virtuoso, isto é, que não ratificasse essa "costumização" que o poeticamente correto impõe ao discurso de muitos dos meus pares.

Você trabalha também na veiculação de poemas, como editor (além de exercer a crítica literária). É uma coisa cada vez mais comum essa pulverização dos mercados, conteúdos veiculados pela internet, selos independentes de pequenas turmas de escritores, em locais específicos, talvez atingindo públicos também mais localizados, ao contrário da lógica globalizante da indústria de massa. Como você percebe e vive isso?

Sinto-me confortável, por enquanto, dentro da figura do poeta-crítico, ou seja, acho importante pensar sobre os limites, as singularidades e as imposturas do gênero, tentando escrever, inclusive, poemas que inventem outros problemas. O poema não tem que resolver nada. De resto, um bom poema não admite solução. A veiculação a que você se refere é mais ao trabalho da editora Éblis que conduzo em parceria com Ronaldo Machado. Mantemos diálogo com muitos poetas e realizações estéticas. Vivemos um nutrimento mútuo. Hoje, o atrito vertiginoso entre diversas ações relacionadas à poesia é uma experiência valiosa. Relações transversais abertas no espaço-tempo virtual.

A internet se tornou um lugar de encontros, disseminação, uma espécie de mercado independente e paralelo. Você possui o blog Poesia-pau. Como você atua na internet, no blog e de outras formas? Você acha que o potencial da internet está sendo bem usado no caso da crítica e difusão da poesia? Do lado da crítica, às vezes não é tão fácil encontrar fontes e escritos consistentes...

A internet permanece em movimento, para o bem e para o mal. Ainda está por ser feita uma análise mais abrangente acerca de suas simulações, desdobramentos e invenção de uma nova ordem sócio-cultural que esse meio, quem sabe, estaria apto a nos oferecer. O que é interessante de observar na dinâmica sígnica da rede mundial é que é possível fazer conviver de forma mais rente o pensamento refinado com a intervenção cultural prática. Há uma agilidade saudável na tensão entre esses dois pólos tradicionalmente cindidos. Do lado de cá do não-internético também há muito texto crítico de segunda categoria. É apenas uma questão de intensidades.

Fontes:
http://www.artistasgauchos.com.br/
http://algaravaria.blogspot.com/

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