Na farmácia, presencio uma cena curiosa, mas não rara: balconista e cliente tentam, inutilmente, decifrar o nome de um medicamento na receita médica. Depois de várias hipóteses acabam desistindo. O resignado senhor que porta a receita diz que vai telefonar ao seu médico e voltará mais tarde. “Letra de doutor”, suspira o balconista, com compreensível resignação. Letra de médico já se tornou sinônimo de hieróglifo, de coisa indecifrável. Um fato tanto mais intrigante quando se considera que os médicos, afinal, passaram pelas mesmas escolas que outros profissionais liberais. Exercício da caligrafia é uma coisa que saiu de moda, mas todo aluno sabe que precisa escrever legivelmente, quando mais não seja, para conquistar a boa vontade dos professores. A letra dos médicos, portanto, é produto de uma evolução, de uma transformação. Mas que fatores estariam em jogo atrás dessa transformação?
Que eu saiba, o assunto ainda não foi objeto de uma tese de doutorado, mas podemos tentar algumas explicações. A primeira, mais óbvia (e mais ressentida), atribui os garranchos médicos a um mecanismo de poder. Doutor não precisa se fazer entender: são os outros, os seres humanos comuns, que precisam se familiarizar com a caligrafia médica. Quando os doutores se tornarem mais humildes, sua letra ficará mais legível.
Pode ser isso, mas acho que não é só isso. Há outros componentes: a urgência, por exemplo. Um doutor que atende dezenas de pacientes num movimentado ambulatório de hospital não pode mesmo caprichar na letra. Receita é uma coisa que ele precisa fornecer — nenhum paciente se considerará atendido se não levar uma receita. A receita satisfaz a voracidade de nossa cultura pelo remédio, e está envolta numa aura mística: é como se o doutor, através dela, acompanhasse o paciente. Mágica ou não, a receita é, muitas vezes, fornecida às pressas; daí a ilegibilidade.
Há um terceiro aspecto, mais obscuro e delicado. É a relação ambivalente do médico com aquilo que ele receita — a sua dúvida quanto à eficácia (para o paciente, indiscutível) dos medicamentos. Uma dúvida que cresce com o tempo, mas que é sinal de sabedoria. Os velhos doutores sabem que a luta contra a doença não se apóia em certezas, mas sim em tentativas: “dans la médicine comme dans l’amour, ni jamais, ni toujours”, diziam os respeitados clínicos franceses: na medicina e no amor, “sempre” e “nunca” são palavras proibidas. Daí a dúvida, daí a ansiedade da dúvida, da qual o doutor se livra pela escrita rápida. E pouco legível.
Os grafólogos, essas pessoas que decifram (ou tentam decifrar) personalidades pela letra teriam, com os médicos, muito trabalho. Mas é provável que os mistérios da grafologia médica não sobrevivam no futuro. Raros doutores datilografam as receitas, mas provavelmente o computador se imporá também nesta atividade.
Os pacientes talvez não se sintam inteiramente felizes com isso. A pessoa que olha o médico escrevendo sua receita não está apenas testemunhando um exercício de má caligrafia: está vendo uma mão poderosa, ainda que falível, traçando uma parte de seu destino. Sempre ilegível — como a letra dos médicos.
Fonte:
Scliar, Moacyr. A face oculta — inusitadas e reveladoras histórias da medicina. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001
Que eu saiba, o assunto ainda não foi objeto de uma tese de doutorado, mas podemos tentar algumas explicações. A primeira, mais óbvia (e mais ressentida), atribui os garranchos médicos a um mecanismo de poder. Doutor não precisa se fazer entender: são os outros, os seres humanos comuns, que precisam se familiarizar com a caligrafia médica. Quando os doutores se tornarem mais humildes, sua letra ficará mais legível.
Pode ser isso, mas acho que não é só isso. Há outros componentes: a urgência, por exemplo. Um doutor que atende dezenas de pacientes num movimentado ambulatório de hospital não pode mesmo caprichar na letra. Receita é uma coisa que ele precisa fornecer — nenhum paciente se considerará atendido se não levar uma receita. A receita satisfaz a voracidade de nossa cultura pelo remédio, e está envolta numa aura mística: é como se o doutor, através dela, acompanhasse o paciente. Mágica ou não, a receita é, muitas vezes, fornecida às pressas; daí a ilegibilidade.
Há um terceiro aspecto, mais obscuro e delicado. É a relação ambivalente do médico com aquilo que ele receita — a sua dúvida quanto à eficácia (para o paciente, indiscutível) dos medicamentos. Uma dúvida que cresce com o tempo, mas que é sinal de sabedoria. Os velhos doutores sabem que a luta contra a doença não se apóia em certezas, mas sim em tentativas: “dans la médicine comme dans l’amour, ni jamais, ni toujours”, diziam os respeitados clínicos franceses: na medicina e no amor, “sempre” e “nunca” são palavras proibidas. Daí a dúvida, daí a ansiedade da dúvida, da qual o doutor se livra pela escrita rápida. E pouco legível.
Os grafólogos, essas pessoas que decifram (ou tentam decifrar) personalidades pela letra teriam, com os médicos, muito trabalho. Mas é provável que os mistérios da grafologia médica não sobrevivam no futuro. Raros doutores datilografam as receitas, mas provavelmente o computador se imporá também nesta atividade.
Os pacientes talvez não se sintam inteiramente felizes com isso. A pessoa que olha o médico escrevendo sua receita não está apenas testemunhando um exercício de má caligrafia: está vendo uma mão poderosa, ainda que falível, traçando uma parte de seu destino. Sempre ilegível — como a letra dos médicos.
Fonte:
Scliar, Moacyr. A face oculta — inusitadas e reveladoras histórias da medicina. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001
Um comentário:
As crônicas do Scliar são "sem comentários". Belamente escritas.
Quanto ao tema, a caligrafia médica, sempre entendi que resulta tão só de uma injustificável falta de capricho mesmo. A gente tem de escrever como pardal bebendo água; sempre cuidando suspresas, gente vendo...
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