Para a dona Edite Moreira Barreto,
único piano que minha terra ouviu.
Os ouvidos do agrônomo, que estava ali a trabalho, surpreenderam-se ao distinguir, executados por mãos hábeis e sensíveis (algo inconfundível), acordes do Concerto para Piano e Orquestra Nº 21, de Mozart. Eram onze e quarenta de uma manhã de setembro, e ele, caminhando pelas ruas mal calçadas e pouco arborizadas, amaldiçoava o chefe que o fizera aventurar-se por aquele fim de mundo.
O som do piano o fez parar. Não! Aquele som era um delírio provocado pelo indescritível calor e pela sensação de sufocamento. Já ia retomando a caminhada em direção ao hotel, quando ouviu, agora mais fortemente, um som inequívoco – For Elise, de Beethoven. Não havia dúvida: aquela cidadezinha acanhada, a ante-sala do inferno, escondia em algum lugar, protegidos por quatro paredes, um piano e um pianista. E, pelo que estava ouvindo, não era uma atividade só para inglês ver, não. Havia ali um artista excepcional, cujas execuções se distinguiam pela sensibilidade das interpretações e pelas inovações aos arranjos tradicionais.
Quem tocava com tanta competência em uma terra de pés rachados? Quem, ali, tinha a sensibilidade de introjetar o sentimentalismo quase excessivo de For Elise, ou a sensualidade quase impertinente da Habanera, da Carmem, de Bizet? Algo deve ter havido ali para prender, em uma cidadezinha como aquela, a (não podia deixar de ser mulher e jovem) pianista excepcional que o estava deleitando. Uma grande decepção? Uma grande mágoa? Um grande amor? Um casamento medíocre? Uma ninhada de filhos para criar?
Apurou os ouvidos. Os acordes vinham de uma casa grande e antiga, construída do lado direito da igreja. Ele tentou orientar-se pelos sons do piano, que naquele momento iniciava a delicada Canção de Ninar, de Brahms. Ele parou na calçada do casarão, o qual conservava fechadas até a metade as portas interiores das duas varandas. Não teve coragem de tentar vislumbrar, mesmo por alguns segundos, o interior da residência, os mistérios da casa do piano. Recolheu-se intimamente e assim ficou, parado, até que a criança de Brahms finalmente adormecesse. É! Como lhe sentencia um grande amigo, professor de piano, não se ouve Brahms impunemente.
Um sentimento de respeito pela pianista (sim, era uma mulher, só podia ser!) que entregava seu talento de graça, a quem passasse pelas imediações do casarão; uma sensação de encantamento por aquelas peças artísticas que de vez em quando nos abriam as portas do paraíso; e uma veneração extrema pelos artistas que transformam em harmonia o caos dos sons que se perdem no nosso dia-a-dia... foram essas as emoções que envolveram o agrônomo durante as duas horas que ainda teve de esperar para ver de novo o transporte que o levaria para longe do piano. Que o levaria para o conforto burguês de seu apartamento e para longe do piano. Que o reaproximaria da mulher e dos três filhos, afastando-o do piano. Que o faria perder para sempre o piano.
Na hora em que o agrônomo resolveu voltar ao hotel, esquivando-se de bisbilhotar o segredo do piano, uma cuidadora de avental branco, e touca azul protegendo os cabelos, entrou na sala do piano, onde a pianista (era realmente uma mulher) ia iniciar a valsa de Strauss, Sangue de Viena. Mas o virar a página da partitura foi interrompido – chegara a hora do repouso recomendado pelo médico. A pianista, uma mulher que já ultrapassara os noventa anos, fez cara feia para a cuidadora, mas levantou-se e não opôs nenhuma resistência.
A cuidadora quis apoiá-la pelos braços, mas ela negou-se a aceitar a ajuda.
E, enquanto caminhava para o quarto, regia uma orquestra invisível, executando uma sinfonia que não constava em nenhuma partitura e que nem os ouvidos mais sensíveis poderiam captar – a sua 1ª Sinfonia, ou... A Sinfonia do Fim.
Fonte:
Colaboração da Autora.
único piano que minha terra ouviu.
Os ouvidos do agrônomo, que estava ali a trabalho, surpreenderam-se ao distinguir, executados por mãos hábeis e sensíveis (algo inconfundível), acordes do Concerto para Piano e Orquestra Nº 21, de Mozart. Eram onze e quarenta de uma manhã de setembro, e ele, caminhando pelas ruas mal calçadas e pouco arborizadas, amaldiçoava o chefe que o fizera aventurar-se por aquele fim de mundo.
O som do piano o fez parar. Não! Aquele som era um delírio provocado pelo indescritível calor e pela sensação de sufocamento. Já ia retomando a caminhada em direção ao hotel, quando ouviu, agora mais fortemente, um som inequívoco – For Elise, de Beethoven. Não havia dúvida: aquela cidadezinha acanhada, a ante-sala do inferno, escondia em algum lugar, protegidos por quatro paredes, um piano e um pianista. E, pelo que estava ouvindo, não era uma atividade só para inglês ver, não. Havia ali um artista excepcional, cujas execuções se distinguiam pela sensibilidade das interpretações e pelas inovações aos arranjos tradicionais.
Quem tocava com tanta competência em uma terra de pés rachados? Quem, ali, tinha a sensibilidade de introjetar o sentimentalismo quase excessivo de For Elise, ou a sensualidade quase impertinente da Habanera, da Carmem, de Bizet? Algo deve ter havido ali para prender, em uma cidadezinha como aquela, a (não podia deixar de ser mulher e jovem) pianista excepcional que o estava deleitando. Uma grande decepção? Uma grande mágoa? Um grande amor? Um casamento medíocre? Uma ninhada de filhos para criar?
Apurou os ouvidos. Os acordes vinham de uma casa grande e antiga, construída do lado direito da igreja. Ele tentou orientar-se pelos sons do piano, que naquele momento iniciava a delicada Canção de Ninar, de Brahms. Ele parou na calçada do casarão, o qual conservava fechadas até a metade as portas interiores das duas varandas. Não teve coragem de tentar vislumbrar, mesmo por alguns segundos, o interior da residência, os mistérios da casa do piano. Recolheu-se intimamente e assim ficou, parado, até que a criança de Brahms finalmente adormecesse. É! Como lhe sentencia um grande amigo, professor de piano, não se ouve Brahms impunemente.
Um sentimento de respeito pela pianista (sim, era uma mulher, só podia ser!) que entregava seu talento de graça, a quem passasse pelas imediações do casarão; uma sensação de encantamento por aquelas peças artísticas que de vez em quando nos abriam as portas do paraíso; e uma veneração extrema pelos artistas que transformam em harmonia o caos dos sons que se perdem no nosso dia-a-dia... foram essas as emoções que envolveram o agrônomo durante as duas horas que ainda teve de esperar para ver de novo o transporte que o levaria para longe do piano. Que o levaria para o conforto burguês de seu apartamento e para longe do piano. Que o reaproximaria da mulher e dos três filhos, afastando-o do piano. Que o faria perder para sempre o piano.
Na hora em que o agrônomo resolveu voltar ao hotel, esquivando-se de bisbilhotar o segredo do piano, uma cuidadora de avental branco, e touca azul protegendo os cabelos, entrou na sala do piano, onde a pianista (era realmente uma mulher) ia iniciar a valsa de Strauss, Sangue de Viena. Mas o virar a página da partitura foi interrompido – chegara a hora do repouso recomendado pelo médico. A pianista, uma mulher que já ultrapassara os noventa anos, fez cara feia para a cuidadora, mas levantou-se e não opôs nenhuma resistência.
A cuidadora quis apoiá-la pelos braços, mas ela negou-se a aceitar a ajuda.
E, enquanto caminhava para o quarto, regia uma orquestra invisível, executando uma sinfonia que não constava em nenhuma partitura e que nem os ouvidos mais sensíveis poderiam captar – a sua 1ª Sinfonia, ou... A Sinfonia do Fim.
Fonte:
Colaboração da Autora.
Imagem = papel de parede do Baixaki
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