segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

André Giusti (Caderno de Poesias)


OS FILMES EM QUE MORREMOS DE AMOR.

Noite de Domingo
Morre pesada
Em pratos do almoço
Ainda na pia.

Ainda insisto
Em alguma vida na casa:
Abro-fecho sites
Com os dedos no telefone
Procuro pessoas
Mas não todas:
Apenas as que me falem
De dias na praia,
De filmes em que
Morremos de amor.

Mas como a noite
Pode ser nave imensa
Que não pousa,
Desisto de buscas,
Rendo-me calado
No primeiro quarto
Que encontro.

Nos grotões da sala apagada
Sherryll Crow canta
Algo que tocava em novela,
Sem bem me lembro.

Ah, as músicas e minha
Inconformada relação
Com o tempo!

O problema
É que o CD gira sem consolo
No fim de outra noite,
Em 1995 talvez.

CASAS EM PLANALTINA DE GOIÁS.

Essa luz da tarde seca não nos espanta:
É sempre o mesmo infortúnio
Para os olhos pesados do almoço.

Novidade também não é
O morto antigo que assunta do retrato.

Os mais novos não têm certeza
De quem foi.

Talvez tenha sido o último
A mexer nessas telhas
Por cujas rachaduras o sol se atreve.

Periga voltarmos ao século XVIII
Se, desavisados,
Suspirarmos fundo
Vencidos por um cochilo.

POR VOCÊ
Para M ª. Beatriz.

O meu amor é tão grande
Que logo quando nasceu
Já não cabia mais no peito.

O meu amor é tão grande
Que há muito tempo
Já não cabe mais no céu de Brasília
E nem em todas as praias do Rio.

O meu amor é tão grande
Que quanto mais se torna imenso,
De mais imensidão ele precisa
Para não me sufocar.

O meu amor é tão grande,
Que já não cabe mais
Dentro dele mesmo.

SEM TÍTULO I

‘Inda pouco eram sete horas
Agora são quase dez.
A semana já está acabando
E sábado-e-domingo também é tão rápido.
O ano passou do meio
E minha vida, da metade.
Logo é outro natal
Teu aniversário é mês que vem
Qualquer dia, a nossa morte.

Apenas a gradual angústia das horas
É lenta,
Lenta feito um visgo-movediço-vagaroso
Nos subindo pelas pernas,
Passando da cintura
Até nos roubar inteiramente o ar.

BRASÍLIA EM JANEIRO

Árvores tortas
Decalcam o maior céu do mundo:
Penso nelas como gestos
de quem se afoga,
de quem dá adeus da plataforma.

O sol prateia nuvens musculosas.
Atravessando o Lago,
A vela persegue
Lembrança de baía.

Em algum lugar
Bem próximo
Do horizonte
A tempestade
Espreita o fim da tarde.

HOJE FOI SEXTA-FEIRA

Passei o dia inteiro correndo atrás da vida
com o mundo no meu pé
e agora à noite fiquei só,
curtindo a liberdade de não ter pra onde ir.
Arrastei meus vinte e poucos anos pelos bares
e reconheci rostos de velhos desconhecidos.
Quis fugir do barulho lá fora,
me tranquei num caixa eletrônico
e tentei cortar os pulsos
com o cartão magnético.
Abandonei mais tarde a TV ligada
e, louco, cometi poemas desatentos,
com todos os cuidados
em não fumar a caneta
e escrever com o cigarro.
Depois de tudo me sentei na poltrona
feito um anônimo passageiro do oculto
lobo com medo da floresta.
Se ela não ligar até o fim da vida
talvez eu vá à casa de alguma ex-namorada
para ver se ainda pego as sobras do jantar.

MENDIGO

Nos últimos dias
meu coração anda dormindo
debaixo das marquises
da tua rua.
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Um comentário:

Ruminiscências disse...

"Sem título I", "Sexta-feira" e "Mendingo" ficaram ótimos!