Primos estranhos. Deles, pelos pais, Helena ouvia falar vagamente: notícias miúdas, observações, críticas. Percebeu, enquanto crescia, que os primos eram rejeitados. Mais adiante, madura, inferiu que a rejeição, se houvera, como de fato parecia, fora mútua. Os primos não os queriam, a eles, Oliveira, nem eles, os Oliveira, davam maior importância aos primos.
Nem todos podem inspirar amor, pensou mais tarde. Do contrário, o mundo seria um palco de extremadas ligações perigosas. Mas o amor comporta facetas, graus de intensidade que formam estágios e definem, então, o limite do afeto. Amizade, por exemplo, é um antecedente do amor. Se não se transforma em sentimento mais forte, em paixão, em apego, é apenas amizade. Amigos se gostam, uns mais, outros menos — mas, se gostam, são necessários. Amigos se procuram, se consultam. Amigos se visitam.
No entanto, os primos não visitavam nem eram visitados. Moravam ali perto, em lugar que os Oliveira fingiam conhecer, e até diziam conhecer o caminho, chegarem lá sem erro. Por que, então, se eram parentes, ramos do mesmo tronco, andavam distantes, mal se cumprimentavam? Os dias eram monótonos. Escorriam morosos, como lesmas, e deixavam, como as lesmas, um sulco gosmento, de tédio, de horas perdidas para os êxtases. Conviver com os primos seria bom. Talvez deles partisse a sugestão, o aviso, o conselho de que, afinal, se necessita na vida. Quem sabe um deles seria capaz, mesmo por acaso, inadvertidamente, de dizer as palavras mágicas, que não apenas confortam, mas fazem das fezes do coração o bálsamo do consolo, o elixir da alegria?
Numerosas vezes interrogou a mãe sobre os primos. Quem eram, onde viviam, do que viviam. Sentia uma curiosidade grande, tinha um interesse fundo pelos outros, a ponto de escrutinar vidas e tornar-se indiscreta. Mais tarde verificou que, nessa ânsia de ver os outros por dentro, ela pretendia apenas justificar-se. Examinando-lhes de perto os atos, ouvindo-lhes a fala, vendo como se vestiam e os seus modos em sociedade, se convenceria de que era normal, era como os outros. Suas falhas eram iguais às deles, não havia necessidade de arrependimento, de meter dores na consciência. Era uma explicação, e parece que correta, porque Helena fora criada na mais fechada solidão, recolhida em si mesma como a ostra na concha, e se sentia muitas vezes diferente, para não dizer anormal. Aquele seu pendor para isolar-se, para se entreter apenas consigo, seriam normais na juventude, que quer estar sempre alegre e, na busca permanente da alegria, pratica asneiras, dá mostras de juízo fraco?
No alpendre da casa, em tardes mornas, com a vida a pingar espaçadamente de invisíveis bicas, Helena tentava atiçar a mãe acerca dos primos. Se cansada, e, portanto, de mau humor, a mãe respondia com muxoxos que nada exprimiam. Se alegre por algum motivo que nem sempre sobejava, a mãe enfiava-lhe dedos vagarosos no couro cabeludo e, enquanto coçava, a provocar uma dormência que os desmaios da tarde acentuavam, a mãe lhe passava dados soltos, desconexos, que não chegavam a formar um retrato satisfatório dos primos.
— Eu nem sei os nomes deles — dizia-lhe a mãe.— Conheço de vista somente um.
— E não perguntou o nome?
— Não, porque já me tinham dito que era João.
Pausa para uma reflexão.
—Todos o chamam Joãozinho. É engraçado.
— O quê, mãe?
— O nome carinhoso, o diminutivo, pois não? O Joãozinho é alto e branco, esbelto, de elegante porte, e tem o rosto azulado. Sem dúvida acabara de fazer a barba, a navalha, quando o vi.
— Conversaram?
— Muito pouco. Eu ia pagar uma visita à comadre Zulmira. Perto da fonte, ele surgiu na dobra do caminho. Quando me viu, tirou respeitosamente o chapéu. Um chapéu preto, de boa qualidade. Talvez de feltro, com uma banda larga, cor de vinho. Afastou-se para um lado, deixou-me o caminho livre. Um cavalheiro, não acha?
— Sim. Um personagem de romance. E depois?
— Nada.
— Não se falaram?
— Eu disse: “Boa-tarde, primo. Como passa?” Ele disse que estava bem. Eu então perguntei pela família. Ele respondeu que todos ótimos. Me olhou sério, pôs o chapéu, levou a mão à borda e foi-se.
Os dedos da mãe pararam, ela de repente riu-se.
— Ele estava descalço — disse ela.
— É mesmo?
— Terno preto, camisa de seda preta, chapéu de feltro preto. Todo alinhado. E sem sapatos.
Em outras conversas com a mãe e o pai, Helena recolheu outros dados sobre os primos distantes. Nunca ficou sabendo ao certo, porém, se eram três ou quatro. Todos eles altos, brancos, trajados de preto. Via-se as veias azuladas sob a pele branca das canelas. Perguntou ao pai porque não vinham visitá-los. Caprichos, disse o pai. Mania, entende? Mas, nesse caso, por que não tomar a iniciativa, por que não ir vê-los, numa dessas tardes modorrentas de domingo, quando nada ou quase nada se tem a fazer, salvo olhar os matos e medir a aproximação da tarde, e fitar as pessoas e fazer trejeitos com os beiços?
— Ir sem ser convidado? — disse o pai.
— Por que não?
— Primeiro conversar com eles, oferecer um cafezinho. Não lhe parece?
Não sabia o que seria melhor. E começava a se angustiar, porque a solidão pesava, havia os primos, eram quatro, e apesar de estranhos, e apesar de andarem de luto (a propósito: ia perguntar à mãe por que o luto pesado e contínuo), podiam fazer-lhe companhia, ouvir discos na velha vitrola de dar corda, apresentar as pessoas da família, que trocariam entre si receitas de bolos e geléias. Na véspera do seu décimo-segundo aniversário, o pai perguntou-lhe o que queria de presente, se mais um livro da Biblioteca das Moças.
— Eu queria conhecer os primos.
O pai e a mãe trocaram olhares carregados.
— Tudo tem seu tempo certo — disse o pai. — A Bíblia diz que há tempo de arar e semear, de plantar e colher.
Logo no dia do aniversário, como se para estragar a pouca alegria trazida pela data, a vaca parida chifrou-lhe a mãe de vestido colorido na pastagem. Atirada contra uma pedra, a mãe fraturou a bacia e levou três meses imobilizada, de cama. Quando a mãe era levada para casa, em pranto, nos braços do pai, a cancela bateu e um viandante avançou pelo caminho. Era um dos primos. Alto, chapéu preto, todo de negro. Mas descalço, com os pés brancos enlameados. O primo enlutado tirou o chapéu para os cumprimentos, parou um instante.
— Coisa grave? — indagou.
— Ainda não sabemos direito — disse o pai. — Foi chifrada por uma vaca doida e acho que fraturou algum osso.
— Espero melhoras — disse o primo, afastando-se com um meneio do chapéu de feltro.
— Entre para um café — chamou o pai.
— Fica para a volta — prometeu o primo enlutado.
Helena via o primo, um dos três ou quatro, pela primeira vez, e ele lhe pareceu severo, de atitudes formais. Se estivesse calçado, e não de pés nus, sujos de lodo dos caminhos, o teriam na conta de homem de bem e de posses, ou, como se dizia nos romances, cavalheiro e gentil-homem. Ainda assim, o rosto de linhas harmoniosas, as feições finas, as palavras bem medidas e pesadas, tudo indicava um lastro de boas maneiras que somente se adquire com alguma educação familiar.
O vulto do primo, no seu terno de seda preta, coroado pelo chapéu de feltro também negro, desapareceu na estrada além. Para onde ia? O que buscava? Helena queria pensar nisso mais a fundo, meditar possibilidades, mas havia a mãe que, posta na cama, buscava entre gemidos a melhor posição com que repousar, enquanto não vinha médico da cidade.
Do tempo escorreram areias, imperceptivelmente, nas também invisíveis ampulhetas, e água escorreu, esta de forma audível e até rumorosa, sobre o leito movediço dos rios e córregos, e de súbito ela tinha dezoito anos, e caminhava, quase corria, com o seu cão, para casa, embrulhada nas sombras do entardecer, quando estacou, guiada por um sexto sentido, diante de uma cobra que, erguida sobre a cauda, no meio do caminho, tinha a boca escancarada e mexia com a língua bífida. Parou de chofre rente à cobra, na exata altura da cabeça da cobra, que era um jaracuçu danado, e se fitaram, ela e a serpente peçonhenta, durante talvez um minuto, e imóvel olhava-os o cão, na expectativa do desfecho daquela cena, envoltos Helena e a cobra num silêncio que parecia conspiração, conluio edênico — e adiante do cão, como que esperando licença para passar, de olhar neutro e olhos sem lume, um dos primos, qual deles não sabia dizer. E foi este o seu primeiro encontro a sós com um dos primos arredios que se vestiam de luto.
Mas, por que o luto permanente, por quê?
— Talvez seja a cultura da morte — explicou-lhe o pai.
Helena não entendeu.
— Vivemos no país dos óbitos, e, nele, numa região de alta densidade obituária — prosseguiu o pai. — Se a criança escapa da disenteria e de moléstias infecto-contagiosas, a fome e a exposição aos ventos gelados podem levá-la à tuberculose. Se consegue safar-se e fazer-se adulta, vêm as vicissitudes do trabalho, entre elas as picadas de cobras, os acidentes. Morre-se muito nestas nossas bandas.
Entendeu, então, o que o pai dizia.
— Vai ver — completou o pai, olhando-a dentro dos olhos — que a família dos primos é grande. Quando o luto pela desgraça de um está findando, morre outro, e o luto continua. O crime governa o país, morre gente como formiga.
— Ou então fizeram promessa de luto cerrado no funeral do avô, ou do pai, ou da mãe.
— É possível — disse o pai. — Quem conhece os desígnios dos outros? Mal conhecemos os nossos. O mais comum é sermos surpreendidos pelo que fazemos num repente.
No mar, quando perdeu pé, Helena sentiu-se flutuar e engoliu a primeira golfada (a cena ainda ardia na memória como uma água-viva). Sua vida, o que fora até então o seu projeto de vida (trechos dos caminhos interrompidos por urzes ou pedras, ora secos, ora com lodaçais, e em rumos opostos, caminhos que não prosseguiam), passou-lhe em veloz sucessão de imagens — um filme solto na manivela. E encontrou-se estendida no chão, acabara de cair da borda de uma pedreira, todo o corpo lhe doía e a cabeça era uma cabaça oca em que zumbiam enxames de insetos, todas as vespas enfurecidas do verão. Fechou os olhos. Tinha quase cinqüenta anos. Não ia levantar-se já. Devagar, tentou movimentar uma perna. Movia-se. Experimentou a outra. Sã. Virou-se de leve para um lado. As costas doeram, mas resvalaram no chão pedregoso. Mexeu-se também para o outro lado. Os ossos pareciam no lugar. Conseguiria erguer-se? Primeiro, sentou-se com sacrifício. O arvoredo subia e descia, obra de sua visão entontecida. Em baixo, no caminho que descia a serra, passava um homem de preto, de pés no chão. Não a viu, nem ela, que estava sentada e zonzo, o chamou, porque sabia que, na próxima meia hora, pelo menos, não articularia palavra. Agora bracejava no mar, que insistia em puxá-la da praia. O filme de sua vida, um pequeno percurso acidentado, árvores retorcidas na paisagem baça, avançava enlouquecido na manivela em disparada. E Helena se viu, a seguir, numa rua de sua cidade, era sábado, dia de feira, comércio ativo. Ia pela calçada, absorta, quando um sujeito baixo e troncudo, avermelhado pela aguardente, puxou-a pela gola da blusa, encostou-a na porta ainda fechada de uma loja, sacou um revólver niquelado, encostou-lhe o cano na boca e disse: ”Puta”. Não respondeu. O sujeito empurrou mais o cano do revólver. “Puta, puta escrachada”, gritou. E continuou a gritar aqueles nomes até que ela, enfadada, desviasse com o braço o cano da arma e, sem nada dizer, se afastasse em passo normal. Na calçada, apreciando a cena, estava um dos enlutados primos, atento, a mão parada no ar, o fósforo aceso entre os dedos, esquecido de acender o cigarro. Veio outra golfada, que parecia a última. A cabeça da cobra estava imobilizada, a cena era de encantamento, de hipnotismo. Mas não, o mar não a queria por enquanto, o seu corpo branco estaria destinado a apodrecer em terra, coberto de terra. Sentiu um impulso para cima, bracejou outra vez, os pés tocaram em areia fugidia, flutuou e uma onda a fez avançar, tocou areia firme. O corpo moído pela queda tinha os ossos no lugar. Pela praia, com uma corda de robaletes, passava um pescador vestido de preto, os pés brancos afundando na areia fofa. Helena não o olhou. O primo? Um dos primos.
Que era a vida? Uma trégua da consciência entre dois golfos de escuridão, o ser e o não ser, o primeiro nada absoluto que, livrando-se da ousadia de o terem gerado e afadigado, ruma para o nada derradeiro. Helena pensava assim, na vida adulta, e assim continuaria a pregar, ao menos para si mesma, porque fazia questão de perder-se sozinha no seu desânimo existencial, mas havia os primos, aqueles três discretos primos trajados de preto, que, vez por outra, lhe surgiam no caminho. Apareciam sempre como por acaso, e nada queriam, às vezes nada inquiriam, em outras ocasiões sequer a olhavam, sequer lhe admiravam seios e quadris com olhos cobiçosos. Apenas atestavam, os primos, a sua muda e inexorável presença, como se estampas coladas a uma página de sua vida — bem parecidos, vestidos de seda negra, vestais desencaminhadas de seu templo.
Helena queria os primos. Só em vê-los, naquelas poucas vezes, já lhes tinha afeto, como se à mesma família pertencesse e com eles dividisse o enlutado culto a uma tristeza desejada, buscada e assumida. E se eu me vestisse também de luto?, ela pensou por fim. Talvez os atraísse então. Talvez os primos, sentindo nela um igual, um parente, quem sabe uma irmã, se aproximassem e lhe oferecessem uma flor, ou lhe pedissem um copo com água fresca. Sim, poderiam ser amigos, os primos, e ela precisava de amigos — ela que jamais os tivera, apesar da sua ânsia por longas conversas alentadoras; ela que sentia nas amizades o prenúncio de um possível amor.
Estava órfã. Órfã de pai e mãe, e em idade avançada, e se lhe perguntassem o que fizera da vida, diria certamente que a perdera, ou dela se esquecera na medida em que se limitara a viver. Os pais lhe faziam falta. Não davam sombra larga, mas eram referências, pontos luminosos na noite escura. Tais pontos de luz atraíam, como a dizer que, se os buscasse, se até eles ela se deixasse guiar, talvez lhes revelasse uma casa, o lume aceso, a mesa posta, o encontro de quem reconhecemos apenas com o olhar, sem necessidade de fala.
Um dia, afinal, Helena vestiu-se de luto. Ou então, inerte, consentiu que a vestissem de luto. Tinha amanhecido e chovia. Ela amanheceu conformada e serena. A chuva caía em bagas e o mundo estava opaco, lutulento. Falava-se em voz baixa, talvez alguém, chorasse. Pés nus soaram no chão de tábuas.
Eram os primos.
Os três, no mesmo terno que, de tão lavado e passado, embranquecia. Chegaram — e pela primeira vez, sorriram.
Os pés traziam crostas de lama dos caminhos. Que caminhos? Por onde andavam, assim tão incansáveis, tão determinados?
Tiraram o chapéu para o cumprimento cerimonioso, inclinaram-se. Cavalheiros. Gentis-homens. Fidalgos. Agora Helena tinha companhia — e, quem sabe, o desejado e protelado amor.
Fonte
Contos da Noite Fechada, 2004
Disponível no Jornal de Poesia http://www.secrel.com.br/JPOESIA/
Nem todos podem inspirar amor, pensou mais tarde. Do contrário, o mundo seria um palco de extremadas ligações perigosas. Mas o amor comporta facetas, graus de intensidade que formam estágios e definem, então, o limite do afeto. Amizade, por exemplo, é um antecedente do amor. Se não se transforma em sentimento mais forte, em paixão, em apego, é apenas amizade. Amigos se gostam, uns mais, outros menos — mas, se gostam, são necessários. Amigos se procuram, se consultam. Amigos se visitam.
No entanto, os primos não visitavam nem eram visitados. Moravam ali perto, em lugar que os Oliveira fingiam conhecer, e até diziam conhecer o caminho, chegarem lá sem erro. Por que, então, se eram parentes, ramos do mesmo tronco, andavam distantes, mal se cumprimentavam? Os dias eram monótonos. Escorriam morosos, como lesmas, e deixavam, como as lesmas, um sulco gosmento, de tédio, de horas perdidas para os êxtases. Conviver com os primos seria bom. Talvez deles partisse a sugestão, o aviso, o conselho de que, afinal, se necessita na vida. Quem sabe um deles seria capaz, mesmo por acaso, inadvertidamente, de dizer as palavras mágicas, que não apenas confortam, mas fazem das fezes do coração o bálsamo do consolo, o elixir da alegria?
Numerosas vezes interrogou a mãe sobre os primos. Quem eram, onde viviam, do que viviam. Sentia uma curiosidade grande, tinha um interesse fundo pelos outros, a ponto de escrutinar vidas e tornar-se indiscreta. Mais tarde verificou que, nessa ânsia de ver os outros por dentro, ela pretendia apenas justificar-se. Examinando-lhes de perto os atos, ouvindo-lhes a fala, vendo como se vestiam e os seus modos em sociedade, se convenceria de que era normal, era como os outros. Suas falhas eram iguais às deles, não havia necessidade de arrependimento, de meter dores na consciência. Era uma explicação, e parece que correta, porque Helena fora criada na mais fechada solidão, recolhida em si mesma como a ostra na concha, e se sentia muitas vezes diferente, para não dizer anormal. Aquele seu pendor para isolar-se, para se entreter apenas consigo, seriam normais na juventude, que quer estar sempre alegre e, na busca permanente da alegria, pratica asneiras, dá mostras de juízo fraco?
No alpendre da casa, em tardes mornas, com a vida a pingar espaçadamente de invisíveis bicas, Helena tentava atiçar a mãe acerca dos primos. Se cansada, e, portanto, de mau humor, a mãe respondia com muxoxos que nada exprimiam. Se alegre por algum motivo que nem sempre sobejava, a mãe enfiava-lhe dedos vagarosos no couro cabeludo e, enquanto coçava, a provocar uma dormência que os desmaios da tarde acentuavam, a mãe lhe passava dados soltos, desconexos, que não chegavam a formar um retrato satisfatório dos primos.
— Eu nem sei os nomes deles — dizia-lhe a mãe.— Conheço de vista somente um.
— E não perguntou o nome?
— Não, porque já me tinham dito que era João.
Pausa para uma reflexão.
—Todos o chamam Joãozinho. É engraçado.
— O quê, mãe?
— O nome carinhoso, o diminutivo, pois não? O Joãozinho é alto e branco, esbelto, de elegante porte, e tem o rosto azulado. Sem dúvida acabara de fazer a barba, a navalha, quando o vi.
— Conversaram?
— Muito pouco. Eu ia pagar uma visita à comadre Zulmira. Perto da fonte, ele surgiu na dobra do caminho. Quando me viu, tirou respeitosamente o chapéu. Um chapéu preto, de boa qualidade. Talvez de feltro, com uma banda larga, cor de vinho. Afastou-se para um lado, deixou-me o caminho livre. Um cavalheiro, não acha?
— Sim. Um personagem de romance. E depois?
— Nada.
— Não se falaram?
— Eu disse: “Boa-tarde, primo. Como passa?” Ele disse que estava bem. Eu então perguntei pela família. Ele respondeu que todos ótimos. Me olhou sério, pôs o chapéu, levou a mão à borda e foi-se.
Os dedos da mãe pararam, ela de repente riu-se.
— Ele estava descalço — disse ela.
— É mesmo?
— Terno preto, camisa de seda preta, chapéu de feltro preto. Todo alinhado. E sem sapatos.
Em outras conversas com a mãe e o pai, Helena recolheu outros dados sobre os primos distantes. Nunca ficou sabendo ao certo, porém, se eram três ou quatro. Todos eles altos, brancos, trajados de preto. Via-se as veias azuladas sob a pele branca das canelas. Perguntou ao pai porque não vinham visitá-los. Caprichos, disse o pai. Mania, entende? Mas, nesse caso, por que não tomar a iniciativa, por que não ir vê-los, numa dessas tardes modorrentas de domingo, quando nada ou quase nada se tem a fazer, salvo olhar os matos e medir a aproximação da tarde, e fitar as pessoas e fazer trejeitos com os beiços?
— Ir sem ser convidado? — disse o pai.
— Por que não?
— Primeiro conversar com eles, oferecer um cafezinho. Não lhe parece?
Não sabia o que seria melhor. E começava a se angustiar, porque a solidão pesava, havia os primos, eram quatro, e apesar de estranhos, e apesar de andarem de luto (a propósito: ia perguntar à mãe por que o luto pesado e contínuo), podiam fazer-lhe companhia, ouvir discos na velha vitrola de dar corda, apresentar as pessoas da família, que trocariam entre si receitas de bolos e geléias. Na véspera do seu décimo-segundo aniversário, o pai perguntou-lhe o que queria de presente, se mais um livro da Biblioteca das Moças.
— Eu queria conhecer os primos.
O pai e a mãe trocaram olhares carregados.
— Tudo tem seu tempo certo — disse o pai. — A Bíblia diz que há tempo de arar e semear, de plantar e colher.
Logo no dia do aniversário, como se para estragar a pouca alegria trazida pela data, a vaca parida chifrou-lhe a mãe de vestido colorido na pastagem. Atirada contra uma pedra, a mãe fraturou a bacia e levou três meses imobilizada, de cama. Quando a mãe era levada para casa, em pranto, nos braços do pai, a cancela bateu e um viandante avançou pelo caminho. Era um dos primos. Alto, chapéu preto, todo de negro. Mas descalço, com os pés brancos enlameados. O primo enlutado tirou o chapéu para os cumprimentos, parou um instante.
— Coisa grave? — indagou.
— Ainda não sabemos direito — disse o pai. — Foi chifrada por uma vaca doida e acho que fraturou algum osso.
— Espero melhoras — disse o primo, afastando-se com um meneio do chapéu de feltro.
— Entre para um café — chamou o pai.
— Fica para a volta — prometeu o primo enlutado.
Helena via o primo, um dos três ou quatro, pela primeira vez, e ele lhe pareceu severo, de atitudes formais. Se estivesse calçado, e não de pés nus, sujos de lodo dos caminhos, o teriam na conta de homem de bem e de posses, ou, como se dizia nos romances, cavalheiro e gentil-homem. Ainda assim, o rosto de linhas harmoniosas, as feições finas, as palavras bem medidas e pesadas, tudo indicava um lastro de boas maneiras que somente se adquire com alguma educação familiar.
O vulto do primo, no seu terno de seda preta, coroado pelo chapéu de feltro também negro, desapareceu na estrada além. Para onde ia? O que buscava? Helena queria pensar nisso mais a fundo, meditar possibilidades, mas havia a mãe que, posta na cama, buscava entre gemidos a melhor posição com que repousar, enquanto não vinha médico da cidade.
Do tempo escorreram areias, imperceptivelmente, nas também invisíveis ampulhetas, e água escorreu, esta de forma audível e até rumorosa, sobre o leito movediço dos rios e córregos, e de súbito ela tinha dezoito anos, e caminhava, quase corria, com o seu cão, para casa, embrulhada nas sombras do entardecer, quando estacou, guiada por um sexto sentido, diante de uma cobra que, erguida sobre a cauda, no meio do caminho, tinha a boca escancarada e mexia com a língua bífida. Parou de chofre rente à cobra, na exata altura da cabeça da cobra, que era um jaracuçu danado, e se fitaram, ela e a serpente peçonhenta, durante talvez um minuto, e imóvel olhava-os o cão, na expectativa do desfecho daquela cena, envoltos Helena e a cobra num silêncio que parecia conspiração, conluio edênico — e adiante do cão, como que esperando licença para passar, de olhar neutro e olhos sem lume, um dos primos, qual deles não sabia dizer. E foi este o seu primeiro encontro a sós com um dos primos arredios que se vestiam de luto.
Mas, por que o luto permanente, por quê?
— Talvez seja a cultura da morte — explicou-lhe o pai.
Helena não entendeu.
— Vivemos no país dos óbitos, e, nele, numa região de alta densidade obituária — prosseguiu o pai. — Se a criança escapa da disenteria e de moléstias infecto-contagiosas, a fome e a exposição aos ventos gelados podem levá-la à tuberculose. Se consegue safar-se e fazer-se adulta, vêm as vicissitudes do trabalho, entre elas as picadas de cobras, os acidentes. Morre-se muito nestas nossas bandas.
Entendeu, então, o que o pai dizia.
— Vai ver — completou o pai, olhando-a dentro dos olhos — que a família dos primos é grande. Quando o luto pela desgraça de um está findando, morre outro, e o luto continua. O crime governa o país, morre gente como formiga.
— Ou então fizeram promessa de luto cerrado no funeral do avô, ou do pai, ou da mãe.
— É possível — disse o pai. — Quem conhece os desígnios dos outros? Mal conhecemos os nossos. O mais comum é sermos surpreendidos pelo que fazemos num repente.
No mar, quando perdeu pé, Helena sentiu-se flutuar e engoliu a primeira golfada (a cena ainda ardia na memória como uma água-viva). Sua vida, o que fora até então o seu projeto de vida (trechos dos caminhos interrompidos por urzes ou pedras, ora secos, ora com lodaçais, e em rumos opostos, caminhos que não prosseguiam), passou-lhe em veloz sucessão de imagens — um filme solto na manivela. E encontrou-se estendida no chão, acabara de cair da borda de uma pedreira, todo o corpo lhe doía e a cabeça era uma cabaça oca em que zumbiam enxames de insetos, todas as vespas enfurecidas do verão. Fechou os olhos. Tinha quase cinqüenta anos. Não ia levantar-se já. Devagar, tentou movimentar uma perna. Movia-se. Experimentou a outra. Sã. Virou-se de leve para um lado. As costas doeram, mas resvalaram no chão pedregoso. Mexeu-se também para o outro lado. Os ossos pareciam no lugar. Conseguiria erguer-se? Primeiro, sentou-se com sacrifício. O arvoredo subia e descia, obra de sua visão entontecida. Em baixo, no caminho que descia a serra, passava um homem de preto, de pés no chão. Não a viu, nem ela, que estava sentada e zonzo, o chamou, porque sabia que, na próxima meia hora, pelo menos, não articularia palavra. Agora bracejava no mar, que insistia em puxá-la da praia. O filme de sua vida, um pequeno percurso acidentado, árvores retorcidas na paisagem baça, avançava enlouquecido na manivela em disparada. E Helena se viu, a seguir, numa rua de sua cidade, era sábado, dia de feira, comércio ativo. Ia pela calçada, absorta, quando um sujeito baixo e troncudo, avermelhado pela aguardente, puxou-a pela gola da blusa, encostou-a na porta ainda fechada de uma loja, sacou um revólver niquelado, encostou-lhe o cano na boca e disse: ”Puta”. Não respondeu. O sujeito empurrou mais o cano do revólver. “Puta, puta escrachada”, gritou. E continuou a gritar aqueles nomes até que ela, enfadada, desviasse com o braço o cano da arma e, sem nada dizer, se afastasse em passo normal. Na calçada, apreciando a cena, estava um dos enlutados primos, atento, a mão parada no ar, o fósforo aceso entre os dedos, esquecido de acender o cigarro. Veio outra golfada, que parecia a última. A cabeça da cobra estava imobilizada, a cena era de encantamento, de hipnotismo. Mas não, o mar não a queria por enquanto, o seu corpo branco estaria destinado a apodrecer em terra, coberto de terra. Sentiu um impulso para cima, bracejou outra vez, os pés tocaram em areia fugidia, flutuou e uma onda a fez avançar, tocou areia firme. O corpo moído pela queda tinha os ossos no lugar. Pela praia, com uma corda de robaletes, passava um pescador vestido de preto, os pés brancos afundando na areia fofa. Helena não o olhou. O primo? Um dos primos.
Que era a vida? Uma trégua da consciência entre dois golfos de escuridão, o ser e o não ser, o primeiro nada absoluto que, livrando-se da ousadia de o terem gerado e afadigado, ruma para o nada derradeiro. Helena pensava assim, na vida adulta, e assim continuaria a pregar, ao menos para si mesma, porque fazia questão de perder-se sozinha no seu desânimo existencial, mas havia os primos, aqueles três discretos primos trajados de preto, que, vez por outra, lhe surgiam no caminho. Apareciam sempre como por acaso, e nada queriam, às vezes nada inquiriam, em outras ocasiões sequer a olhavam, sequer lhe admiravam seios e quadris com olhos cobiçosos. Apenas atestavam, os primos, a sua muda e inexorável presença, como se estampas coladas a uma página de sua vida — bem parecidos, vestidos de seda negra, vestais desencaminhadas de seu templo.
Helena queria os primos. Só em vê-los, naquelas poucas vezes, já lhes tinha afeto, como se à mesma família pertencesse e com eles dividisse o enlutado culto a uma tristeza desejada, buscada e assumida. E se eu me vestisse também de luto?, ela pensou por fim. Talvez os atraísse então. Talvez os primos, sentindo nela um igual, um parente, quem sabe uma irmã, se aproximassem e lhe oferecessem uma flor, ou lhe pedissem um copo com água fresca. Sim, poderiam ser amigos, os primos, e ela precisava de amigos — ela que jamais os tivera, apesar da sua ânsia por longas conversas alentadoras; ela que sentia nas amizades o prenúncio de um possível amor.
Estava órfã. Órfã de pai e mãe, e em idade avançada, e se lhe perguntassem o que fizera da vida, diria certamente que a perdera, ou dela se esquecera na medida em que se limitara a viver. Os pais lhe faziam falta. Não davam sombra larga, mas eram referências, pontos luminosos na noite escura. Tais pontos de luz atraíam, como a dizer que, se os buscasse, se até eles ela se deixasse guiar, talvez lhes revelasse uma casa, o lume aceso, a mesa posta, o encontro de quem reconhecemos apenas com o olhar, sem necessidade de fala.
Um dia, afinal, Helena vestiu-se de luto. Ou então, inerte, consentiu que a vestissem de luto. Tinha amanhecido e chovia. Ela amanheceu conformada e serena. A chuva caía em bagas e o mundo estava opaco, lutulento. Falava-se em voz baixa, talvez alguém, chorasse. Pés nus soaram no chão de tábuas.
Eram os primos.
Os três, no mesmo terno que, de tão lavado e passado, embranquecia. Chegaram — e pela primeira vez, sorriram.
Os pés traziam crostas de lama dos caminhos. Que caminhos? Por onde andavam, assim tão incansáveis, tão determinados?
Tiraram o chapéu para o cumprimento cerimonioso, inclinaram-se. Cavalheiros. Gentis-homens. Fidalgos. Agora Helena tinha companhia — e, quem sabe, o desejado e protelado amor.
Fonte
Contos da Noite Fechada, 2004
Disponível no Jornal de Poesia http://www.secrel.com.br/JPOESIA/
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