(Uma história real)
Ouvir o inaudível e ver o invisível são habilidades raríssimas. No entanto as mensagens mais importantes que nos chegam vêm, via de regra, por essas vias subjacentes. Digo isto, porque elas costumam chegar da maneira mais inusitada possível, não importa o quanto pensemos estar preparados para recebê-las.
Ontem à tarde, eu precisei ir ao centro da cidade, e demorei até decidir se iria de metrô ou de carro. Tivesse eu ido de metrô e esta história teria outro desfecho. Quem pode saber quando as engrenagens do destino começam a se mover?
Deixei o carro num estacionamento no Largo Santa Ifigênia, e fui caminhando através do viaduto do mesmo nome, ao fim do qual está o Mosteiro de São Bento (foto), fundado em 1598, famoso por seu relógio pontualíssimo que lembra o Big Ben londrino e também por ter sido a morada do Papa quando de sua última visita ao Brasil.
O mosteiro, imponente e austero, é, ele próprio, um monumento, num ponto dos mais antigos da cidade. O Largo São Bento é a confluência do viaduto vindo do Largo Santa Ifigênia, das tradicionalíssimas ruas São Bento, Florêncio de Abreu e Boa Vista. Há poucos quarteirões dali está o Pátio do Colégio, local onde teve início a Cidade de São Paulo.
Tendo superado um problema bastante grave há alguns dias, caminhava eu, abstraído pela beleza histórica daquele ponto da cidade, quando resolvi entrar na igreja do Mosteiro, e sob seu silêncio e benévola quietude, agradecer ao Ser Supremo pela resolução deste problema, que, diga-se de passagem, mereceria uma crônica, tal o inusitado da sua solução.
Enquanto me aproximava do mosteiro, eu pensava sobre a corrente – visível e invisível – da qual fazemos parte e sobre as poderosas engrenagens que são postas em movimento em planos muito além de nosso conhecimento e percepção, quando o desejo é sincero, e a esperança, profunda.
O mosteiro é protegido por uma cerca de ferro baixa, e quando deixei o viaduto, já praticamente ao lado do grande edifício, vi sentado contra a cerca, no chão, a uns trinta metros da porta do templo, um homem pintando qualquer coisa.
Aproximei-me e percebi que ele, distraído, pintava azulejos. À sua frente, uma tampa de caixa de sapatos continha as tintas em difusas misturas cujas nuanças somente ele conseguia distinguir.
Ele untava os dedos com as tintas e, em rápidos toques, as espalhava sobre a alvura de um azulejo. A magia que acontecia então era algo poderoso demais para não ser admirado: o azulejo branco ia rapidamente adquirindo vida, profundidade, perspectiva, cores, alegria e encantamento, ao ponto de ser emocionante ver tal metamorfose.
Sem tirar os olhos do que fazia, o artista murmurou: É fácil de fazer... quer dizer, a técnica, porque a inspiração vem de Deus...”
No alto da torre, o relógio do mosteiro soou uma vez. 15h15min. Olhei para o alto da torre e pensei: “O que você está tentando me mostrar?”
Baixei os olhos e permaneci de pé diante do homem pintando, cada vez mais encantado com a magia que aquele “João Ninguém” produzia.
Depois me agachei, decidido a absorver pelo menos parte de sua incrível técnica, cujo reducionismo e efeitos chegava às raias do absurdo, pelos resultados que apresentava.
Ainda agachado ao seu lado, continuei a acompanhar o artista, sentado no chão empoeirado, em sua criação de extrema beleza.
À medida que pintava, o artista ia me explicando como inventara ele mesmo os “instrumentos” com os quais trabalhava: Um cotonete, feito com palito de churrasco e um simples palito de dentes. Isso era tudo de que dispunha, além dos dedos mágicos.
“Eu uso tinta a óleo” – disse ele – “mas sem óleo, porque custa muito caro.”
Pensei então na quantidade e qualidade de tintas de que disponho para pintar meus quadros, além de um lugar sossegado, silêncio, recolhimento, inúmeros pincéis, etc, etc...
Esquecido do resto do mundo fiquei a observá-lo em silêncio, e ele, observando a atenção com que eu o acompanhava, me perguntou: “O senhor também pinta?”E eu, tentando fazer graça, respondi: “Até ver você trabalhando eu achava que pintava.” O artista permaneceu sério e eu percebi que não estava agradando. Insisti e perguntei quanto ele cobrava para pintar cada azulejo. “Dez reais” - disse ele.
“Ridículo!” – pensei, sem ter noção do que dez reais significavam para aquele homem.
Então eu o observei com mais atenção. Era um sujeito moreno, tez queimada pelo sol, talvez bem mais jovem que os aparentes 40 anos, porque se percebia que a rua judiara bastante dele. Mas, em suas rugas, havia a história de uma vida, onde se podia facilmente ler uma angústia latente. Entretanto foi seu semblante sério que chamou mais minha atenção. Eu não havia visto um resquício de sorriso naquele rosto austero, justamente num homem que estava diante de mim pintando a alegria!
Peguei vinte reais e coloquei sobre suas pernas. “Vou ter que ir adiante resolver alguns assuntos. Volto em cerca de uma hora. Pinte dois azulejos para mim, por favor.”Ele imediatamente me respondeu: “Leve seu dinheiro e pague quando voltar.” Mas eu já havia me levantado e, num aceno, me despedi.
Esse encontro acabou por me atrasar para a tarefa que me trouxera ao centro da cidade, de maneira que resolvi visitar o templo somente em meu retorno ao local.
Cerca de uma hora mais tarde eu estava de volta, e, antes de ir ao artista,entrei no templo do mosteiro disposto muito mais a agradecer do que a pedir.
Embora nascido na fé católica, não sou partidário de religiões. Entro em qualquer templo onde haja paz e honestidade, até porque Deus nunca teve religião. As religiões é que pensam ter Deus. Há muito me norteio pela trova do grande trovador Alfredo de Castro:
Eu creio em Deus com profundo
sentido de lucidez,
mas no Deus que fez o mundo,
não no Deus que o mundo fez!
Assim, agradeci no mais íntimo do meu coração a solução do problema que me afligia, acreditando que essa solução era a palavra final das instâncias superiores. Ingênuo engano. Esqueci que se Deus não tem religião, também não tem templos. Os templos é que pensam ter Deus. Assim, para nos encontrarmos com Ele, não precisamos entrar num templo, basta que estejamos abertos ao encontro. Mas são raros os que, nos dia de hoje, permanecem abertos a isso!
Saí do templo ciente de que havia cumprido minha dívida de gratidão, sem saber que a solução que eu obtivera há alguns dias não veio d’Ele, mas por Seu intermédio, e, principalmente, sem saber que eu não havia aprendido o mais importante: o que motivara a solução. Sem esse conhecimento eu continuaria agradecendo sempre de maneira equivocada.
Ao fim da cerca de ferro voltei a encontrar o artista, que, ao me ver, me recebeu com muita alegria, mas sem um único sorriso, enquanto se punha de pé – “Eu estava esperando pelo senhor. Acabaram-se meus azulejos. Preciso ir embora, mas pintei quatro deles para o senhor.”
Pensei: Pronto! A velha espertalhice de novo! Depois falei, tentando ser educado:“Eu lhe paguei por dois, e são apenas dois que eu quero.” A resposta do homem fez com que me sentisse envergonhado: ”Os outros dois são presente meu ao senhor...”
Vacilei por instantes, tentando descobrir qual era a intenção por trás do ato, mas ele pareceu adivinhar meus pensamentos. “Aceite, por favor. É minha forma de agradecer.”
Neste momento aproximou-se uma senhora, e após informar-se do preço, lhe pediu três pinturas. Ele respondeu: “Desculpe, meus azulejos em branco acabaram, Agora só amanhã...” A mulher insistiu:“E esses quatro aí, no chão, pintados?”Sob meu olhar incrédulo ele falou, apontando para mim:
“São deste senhor”A mulher afastou-se decepcionada.
Um soco no estômago não teria efeito maior sobre mim. “Amigo, você deixou de ganhar vinte reais! Por que fez isso?
Seus olhos negros me olharam intensamente e ele perguntou: “Se eu sorrir, o senhor não vai rir de mim?” “Como assim, rir de você?” “É que meus dentes não são nada bonitos.” “Quem ri é o coração, amigo, não os dentes!” – respondi. “Pensei até que você não sabia sorrir”
Então ele sorriu! Não havia dentes, apenas tocos escurecidos, enegrecidos de uma maneira que eu nunca havia visto. Não eram cáries. Era outra coisa qualquer que não pude identificar. Pensei que talvez fosse uma doença degenerativa da gengiva.
Ele abreviou o sorriso e, novamente sério, respondeu à pergunta que eu, silenciosamente fizera.“O Crack fez isso, e graças a ele,desaprendi a rir.”
Outro soco no estômago. “Você é viciado?”
“Fui, mas há oito anos estou limpo! Não consigo mais nem sentir o cheiro, mas ele vai sempre estar comigo quando eu rir...Aceite, por favor” – insistiu ele, enquanto me entregava os quatro azulejos maravilhosamente pintados, com a tinta ainda fresca, acondicionados num pequeno estojo de plástico azul. “Amigo, eu não posso aceitar. Isto é o seu ganha-pão! Eu lhe pago pelos quatro então.”Ele ficou ainda mais sério.
“Vender por vender eu poderia ter vendido para aquela senhora. Aceite por favor.”
Relutantemente eu aceitei as quatro pinturas, enquanto lhe perguntava. “O que eu fiz para merecer este presente, com tanto sacrifício de sua parte?”
Seus olhos negros, endurecidos pela vida das ruas, marejaram.
“O senhor agacho-se e ficou ao meu lado me vendo pintar. AGACHOU-SE!” – frisou ele -“e ficou à minha altura, ao meu nível, curtindo meus traços, interessado de verdade no meu trabalho! Isso não tem preço! Eu queria ser um artista famoso para lhe dar uma pintura famosa, por ter me tratado como gente. Mas meus quadros valem só dez reais. Não é muito, mas é tudo o que posso oferecer”
Seus olhos faiscavam
“O senhor não tem idéia do que é sentir-se um animal, um enjeitado. E foi um homem já bem velhinho, um presidiário com quem dividi cela, que me mostrou esta técnica de pintura. Ele morreu logo depois. Nunca mais o vi, mas o que ele me ensinou me tirou do crack.”
Um nó na garganta quase me impediu de falar:“É muito difícil sair do crack. Como você conseguiu?”
Ele respondeu: “Não foi exatamente a pintura, mas o fato de ela ter feito com que as pessoas prestassem atenção em mim, e me tratassem como gente. O que me tirou do crack foi aquela palavrinha mágica chamada ‘atenção’. A mesma atenção que o senhor me deu ao se agachar ao meu lado, na rua, em pleno centro da cidade, e dividir comigo esse dom, que nem sei se mereço.”
Retirei do bolso um cartão de visitas e lhe dei, pedindo-lhe que me procurasse, pois que eu iria me empenhar em divulgar sua arte.
Despedimo-nos com um forte aperto de mão, após o qual o artista juntou suas tralhas e desapareceu na multidão que inundava a Rua São Bento.
Os sinos das torres do Mosteiro soaram cinco badaladas. Olhei de novo para o alto da torre e consegui apenas murmurar.
“Obrigado”.
Fonte:
http://www.jbxavier.com.br/visualizar.php?idt=3020522
Ouvir o inaudível e ver o invisível são habilidades raríssimas. No entanto as mensagens mais importantes que nos chegam vêm, via de regra, por essas vias subjacentes. Digo isto, porque elas costumam chegar da maneira mais inusitada possível, não importa o quanto pensemos estar preparados para recebê-las.
Ontem à tarde, eu precisei ir ao centro da cidade, e demorei até decidir se iria de metrô ou de carro. Tivesse eu ido de metrô e esta história teria outro desfecho. Quem pode saber quando as engrenagens do destino começam a se mover?
Deixei o carro num estacionamento no Largo Santa Ifigênia, e fui caminhando através do viaduto do mesmo nome, ao fim do qual está o Mosteiro de São Bento (foto), fundado em 1598, famoso por seu relógio pontualíssimo que lembra o Big Ben londrino e também por ter sido a morada do Papa quando de sua última visita ao Brasil.
O mosteiro, imponente e austero, é, ele próprio, um monumento, num ponto dos mais antigos da cidade. O Largo São Bento é a confluência do viaduto vindo do Largo Santa Ifigênia, das tradicionalíssimas ruas São Bento, Florêncio de Abreu e Boa Vista. Há poucos quarteirões dali está o Pátio do Colégio, local onde teve início a Cidade de São Paulo.
Tendo superado um problema bastante grave há alguns dias, caminhava eu, abstraído pela beleza histórica daquele ponto da cidade, quando resolvi entrar na igreja do Mosteiro, e sob seu silêncio e benévola quietude, agradecer ao Ser Supremo pela resolução deste problema, que, diga-se de passagem, mereceria uma crônica, tal o inusitado da sua solução.
Enquanto me aproximava do mosteiro, eu pensava sobre a corrente – visível e invisível – da qual fazemos parte e sobre as poderosas engrenagens que são postas em movimento em planos muito além de nosso conhecimento e percepção, quando o desejo é sincero, e a esperança, profunda.
O mosteiro é protegido por uma cerca de ferro baixa, e quando deixei o viaduto, já praticamente ao lado do grande edifício, vi sentado contra a cerca, no chão, a uns trinta metros da porta do templo, um homem pintando qualquer coisa.
Aproximei-me e percebi que ele, distraído, pintava azulejos. À sua frente, uma tampa de caixa de sapatos continha as tintas em difusas misturas cujas nuanças somente ele conseguia distinguir.
Ele untava os dedos com as tintas e, em rápidos toques, as espalhava sobre a alvura de um azulejo. A magia que acontecia então era algo poderoso demais para não ser admirado: o azulejo branco ia rapidamente adquirindo vida, profundidade, perspectiva, cores, alegria e encantamento, ao ponto de ser emocionante ver tal metamorfose.
Sem tirar os olhos do que fazia, o artista murmurou: É fácil de fazer... quer dizer, a técnica, porque a inspiração vem de Deus...”
No alto da torre, o relógio do mosteiro soou uma vez. 15h15min. Olhei para o alto da torre e pensei: “O que você está tentando me mostrar?”
Baixei os olhos e permaneci de pé diante do homem pintando, cada vez mais encantado com a magia que aquele “João Ninguém” produzia.
Depois me agachei, decidido a absorver pelo menos parte de sua incrível técnica, cujo reducionismo e efeitos chegava às raias do absurdo, pelos resultados que apresentava.
Ainda agachado ao seu lado, continuei a acompanhar o artista, sentado no chão empoeirado, em sua criação de extrema beleza.
À medida que pintava, o artista ia me explicando como inventara ele mesmo os “instrumentos” com os quais trabalhava: Um cotonete, feito com palito de churrasco e um simples palito de dentes. Isso era tudo de que dispunha, além dos dedos mágicos.
“Eu uso tinta a óleo” – disse ele – “mas sem óleo, porque custa muito caro.”
Pensei então na quantidade e qualidade de tintas de que disponho para pintar meus quadros, além de um lugar sossegado, silêncio, recolhimento, inúmeros pincéis, etc, etc...
Esquecido do resto do mundo fiquei a observá-lo em silêncio, e ele, observando a atenção com que eu o acompanhava, me perguntou: “O senhor também pinta?”E eu, tentando fazer graça, respondi: “Até ver você trabalhando eu achava que pintava.” O artista permaneceu sério e eu percebi que não estava agradando. Insisti e perguntei quanto ele cobrava para pintar cada azulejo. “Dez reais” - disse ele.
“Ridículo!” – pensei, sem ter noção do que dez reais significavam para aquele homem.
Então eu o observei com mais atenção. Era um sujeito moreno, tez queimada pelo sol, talvez bem mais jovem que os aparentes 40 anos, porque se percebia que a rua judiara bastante dele. Mas, em suas rugas, havia a história de uma vida, onde se podia facilmente ler uma angústia latente. Entretanto foi seu semblante sério que chamou mais minha atenção. Eu não havia visto um resquício de sorriso naquele rosto austero, justamente num homem que estava diante de mim pintando a alegria!
Peguei vinte reais e coloquei sobre suas pernas. “Vou ter que ir adiante resolver alguns assuntos. Volto em cerca de uma hora. Pinte dois azulejos para mim, por favor.”Ele imediatamente me respondeu: “Leve seu dinheiro e pague quando voltar.” Mas eu já havia me levantado e, num aceno, me despedi.
Esse encontro acabou por me atrasar para a tarefa que me trouxera ao centro da cidade, de maneira que resolvi visitar o templo somente em meu retorno ao local.
Cerca de uma hora mais tarde eu estava de volta, e, antes de ir ao artista,entrei no templo do mosteiro disposto muito mais a agradecer do que a pedir.
Embora nascido na fé católica, não sou partidário de religiões. Entro em qualquer templo onde haja paz e honestidade, até porque Deus nunca teve religião. As religiões é que pensam ter Deus. Há muito me norteio pela trova do grande trovador Alfredo de Castro:
Eu creio em Deus com profundo
sentido de lucidez,
mas no Deus que fez o mundo,
não no Deus que o mundo fez!
Assim, agradeci no mais íntimo do meu coração a solução do problema que me afligia, acreditando que essa solução era a palavra final das instâncias superiores. Ingênuo engano. Esqueci que se Deus não tem religião, também não tem templos. Os templos é que pensam ter Deus. Assim, para nos encontrarmos com Ele, não precisamos entrar num templo, basta que estejamos abertos ao encontro. Mas são raros os que, nos dia de hoje, permanecem abertos a isso!
Saí do templo ciente de que havia cumprido minha dívida de gratidão, sem saber que a solução que eu obtivera há alguns dias não veio d’Ele, mas por Seu intermédio, e, principalmente, sem saber que eu não havia aprendido o mais importante: o que motivara a solução. Sem esse conhecimento eu continuaria agradecendo sempre de maneira equivocada.
Ao fim da cerca de ferro voltei a encontrar o artista, que, ao me ver, me recebeu com muita alegria, mas sem um único sorriso, enquanto se punha de pé – “Eu estava esperando pelo senhor. Acabaram-se meus azulejos. Preciso ir embora, mas pintei quatro deles para o senhor.”
Pensei: Pronto! A velha espertalhice de novo! Depois falei, tentando ser educado:“Eu lhe paguei por dois, e são apenas dois que eu quero.” A resposta do homem fez com que me sentisse envergonhado: ”Os outros dois são presente meu ao senhor...”
Vacilei por instantes, tentando descobrir qual era a intenção por trás do ato, mas ele pareceu adivinhar meus pensamentos. “Aceite, por favor. É minha forma de agradecer.”
Neste momento aproximou-se uma senhora, e após informar-se do preço, lhe pediu três pinturas. Ele respondeu: “Desculpe, meus azulejos em branco acabaram, Agora só amanhã...” A mulher insistiu:“E esses quatro aí, no chão, pintados?”Sob meu olhar incrédulo ele falou, apontando para mim:
“São deste senhor”A mulher afastou-se decepcionada.
Um soco no estômago não teria efeito maior sobre mim. “Amigo, você deixou de ganhar vinte reais! Por que fez isso?
Seus olhos negros me olharam intensamente e ele perguntou: “Se eu sorrir, o senhor não vai rir de mim?” “Como assim, rir de você?” “É que meus dentes não são nada bonitos.” “Quem ri é o coração, amigo, não os dentes!” – respondi. “Pensei até que você não sabia sorrir”
Então ele sorriu! Não havia dentes, apenas tocos escurecidos, enegrecidos de uma maneira que eu nunca havia visto. Não eram cáries. Era outra coisa qualquer que não pude identificar. Pensei que talvez fosse uma doença degenerativa da gengiva.
Ele abreviou o sorriso e, novamente sério, respondeu à pergunta que eu, silenciosamente fizera.“O Crack fez isso, e graças a ele,desaprendi a rir.”
Outro soco no estômago. “Você é viciado?”
“Fui, mas há oito anos estou limpo! Não consigo mais nem sentir o cheiro, mas ele vai sempre estar comigo quando eu rir...Aceite, por favor” – insistiu ele, enquanto me entregava os quatro azulejos maravilhosamente pintados, com a tinta ainda fresca, acondicionados num pequeno estojo de plástico azul. “Amigo, eu não posso aceitar. Isto é o seu ganha-pão! Eu lhe pago pelos quatro então.”Ele ficou ainda mais sério.
“Vender por vender eu poderia ter vendido para aquela senhora. Aceite por favor.”
Relutantemente eu aceitei as quatro pinturas, enquanto lhe perguntava. “O que eu fiz para merecer este presente, com tanto sacrifício de sua parte?”
Seus olhos negros, endurecidos pela vida das ruas, marejaram.
“O senhor agacho-se e ficou ao meu lado me vendo pintar. AGACHOU-SE!” – frisou ele -“e ficou à minha altura, ao meu nível, curtindo meus traços, interessado de verdade no meu trabalho! Isso não tem preço! Eu queria ser um artista famoso para lhe dar uma pintura famosa, por ter me tratado como gente. Mas meus quadros valem só dez reais. Não é muito, mas é tudo o que posso oferecer”
Seus olhos faiscavam
“O senhor não tem idéia do que é sentir-se um animal, um enjeitado. E foi um homem já bem velhinho, um presidiário com quem dividi cela, que me mostrou esta técnica de pintura. Ele morreu logo depois. Nunca mais o vi, mas o que ele me ensinou me tirou do crack.”
Um nó na garganta quase me impediu de falar:“É muito difícil sair do crack. Como você conseguiu?”
Ele respondeu: “Não foi exatamente a pintura, mas o fato de ela ter feito com que as pessoas prestassem atenção em mim, e me tratassem como gente. O que me tirou do crack foi aquela palavrinha mágica chamada ‘atenção’. A mesma atenção que o senhor me deu ao se agachar ao meu lado, na rua, em pleno centro da cidade, e dividir comigo esse dom, que nem sei se mereço.”
Retirei do bolso um cartão de visitas e lhe dei, pedindo-lhe que me procurasse, pois que eu iria me empenhar em divulgar sua arte.
Despedimo-nos com um forte aperto de mão, após o qual o artista juntou suas tralhas e desapareceu na multidão que inundava a Rua São Bento.
Os sinos das torres do Mosteiro soaram cinco badaladas. Olhei de novo para o alto da torre e consegui apenas murmurar.
“Obrigado”.
Fonte:
http://www.jbxavier.com.br/visualizar.php?idt=3020522
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