sexta-feira, 24 de junho de 2011

Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrinho) VII – O assalto das onças


Depois de tomado o café com farinha de milho, Pedrinho pendurou o Visconde no galho mais alto duma árvore próxima, armado do binóculo de Dona Benta, para dar aviso da chegada das onças. O nobre fidalgo, porém, sempre tivera o costume de acordar tarde, ali pelas dez horas, mais ou menos. Em vista disso resolveu dormir no seu galhinho, certo de que só lá pelas dez horas as onças viriam. Dormiu e, portanto, não pôde dar aviso da chegada das onças, que já estavam bem perto. Quem percebeu a aproximação delas foi a Emília, que tinha um faro maravilhoso.

— Estou sentindo no ar um cheirinho de onça! — exclamou, em certo momento.

Por força da sugestão ou porque de fato andasse pelo ar algum cheiro de onça, todos ergueram o nariz e sentiram um forte cheiro de onça. Como é então que o Visconde não dava nenhum aviso? Pedrinho correu ao terreiro e gritou:

— Avise duma vez, palerma! Não vê que as onças já estão chegando?

O pobre fidalgo acordou com o berro e ainda cheio de sono espiou pelo binóculo, mas em sentido contrário, de modo que viu as onças muitíssimo longe.

— Vêm, sim — disse ele —, mas tão longe, tão longe e tão pequenininhas, que até que cresçam e cheguem dá tempo de...

Não pôde concluir. Escorregou do galho e veio de ponta-cabeça ao chão.

Mas não havia tempo de acudir o pobre Visconde, caído de mau jeito bem em cima duma lama onde ficou de cabeça enterrada. O tempo era o exatamente necessário para se colocarem sobre as pernas de pau. Corre-corre geral. Cada um tratou de apanhar o par de pernas que lhe pertencia e de ajeitar-se em cima. Em três minutos o terreiro ficou povoado daqueles estranhos bípedes pernaltas. A primeira coisa que lá do alto viram foram as granadas de cera da Emília, arranjadinhas sobre o telhado. Pedrinho quis examiná-las. Não pôde. A boneca espantou-o com um grito.

— Não se aproxime! Não bula, não me estrague o capítulo!...

E Tia Nastácia? Essa ficou embaixo, rezando e riscando a cara e o peito de trêmulos pelo-sinais. Apesar de descrente da vinda das onças, que lhe parecia coisa impossível, começou a sentir um horrível medo. E se viessem mesmo? pensava ela. E se o tal cheirinho que a boneca sentira no ar fosse mesmo cheiro de onça?

Súbito — Miau! Um horrível miado ressoou no pasto. Devia ser o sinal de ataque do onço viúvo. Logo em seguida surgiram de dentro de todas as moitas uma infinidade de caras de onças e jaguatiricas e irarás e cachorros-do-mato, com olhos ameaçadores e dentuças arreganhadas.

Só então a pobre negra se convenceu de que tinha errado. Correu qual uma desvairada às pernas de pau que Pedrinho lhe tinha feito. Nada achou. A Cléu se havia utilizado delas. Olhou aflita para a escada. Bobagens, escada! As onças também trepariam pelos degraus. Seus olhos esbugalhados procuravam inutilmente a salvação.

— Trepe no mastro! — gritou-lhe a Cléu.

Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros.

Foi a continha. A onçada toda já estava no terreiro.

A princípio, os assaltantes não perceberam o truque inventado por Pedrinho para lográ-los. Os animais de quatro pés raro olham para o alto e, como os pernaltas guardassem o mais absoluto silêncio, as onças não os viram lá em cima de seus espeques. Entraram pela casa adentro em procura deles e, não os encontrando, mostraram-se desapontadíssimas.

— Fugiram, os covardes! — uivou, com os olhos chispantes de cólera, o onço viúvo. — Alguém os avisou e eles fugiram...

Nisto, uma cuspidinha da Emília caiu-lhe bem no focinho. O onço olhou para cima e sorriu, lambendo os beiços.

— O nosso “almoço” não fugiu, não! — exclamou, contentíssimo. — Lá estão todos os “pratos”, cada qual em cima de dois “espetos”.

Toda a bicharia olhou para cima, com água na boca. Não tinham comido na véspera, o apetite era forte e viram que iam ter uma bela variedade de petiscos — um menino, duas meninas, um leitão, uma boneca, uma velha branca e uma velha preta. Ótimo!

— Isso é que é almoço! — observou uma irará. — Vai ser um banquete dos bons...

Mas como devorar aqueles pernaltas? O onço, que era o mais forte do bando, experimentou o pulo. Deu quatro ou cinco pulos formidáveis, os maiores de sua vida — mas inutilmente. Os espetos tinham quatro metros de altura e os seus pulos não iam acima de três metros e noventa e cinco centímetros.

— Com pulo não vai — disse ele. — Precisamos inventar outra coisa. Que há de ser?

— Tenho uma idéia — latiu um cachorro-do-mato de talento. — Eles não podem ficar lá em cima toda a vida. Hão de descer logo que a fome aperte. Minha idéia é ficarmos aqui de plantão até que desçam.

— Sim — disse o onço, que era burríssimo — mas se a fome aperta para eles, também aperta para nós — e como é?

— Revezamo-nos — resolveu o cachorro. — Metade do bando vai caçar e almoçar no mato, enquanto a outra metade fica de guarda. Desse modo poderemos permanecer aqui a vida inteira, se for preciso.

— Eu não disse? — cochichou Dona Benta. — As malvadas vão revezar-se e estamos perdidos...

A situação era gravíssima. Cléu, que não tinha prática de aventuras maravilhosas, fez bico de choro. As onças estavam decididas a tudo; e, se os pernaltas podiam resistir por muitas horas, o mesmo não acontecia à pobre Tia Nastácia, que já mal se agüentava no mastro. — Vou cair! — berrou ela, de repente. — Não agüento mais. Minhas mãos já começam a escorregar...

— Estão vendo? — disse o onço, passando a língua pela beiçaria. — O nosso banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo que não agüenta mais e vai descer...

— Emília! — gritou Pedrinho. — Estamos esperando por você! Que venha a surpresa das granadas.

A boneca tratou de tirar partido da situação.

— Muito bem — disse ela — mas só lançarei as minhas granadas sob três condições.

— Diga depressa!

— Primeiro: que todos reconheçam que sou a mais esperta e inteligente do bando. Segundo: que Dona Benta me dê um regadorzinho de jardim, dos verdes — de outra cor não quero. Terceiro que...

— Socorro! — berrou, num tom de cortar a alma, a pobre Tia Nastácia, que não podendo mais agüentar-se no mastro vinha escorregando lentamente.

Emília não esperou pela resposta às suas condições. Aproximou-se do telhado, tomou as granadas e — zás! — arremessou-as contra o bando de feras. As granadas romperam-se ao bater nos alvos e deixaram sair de dentro enxames de caçunungas, que são as mais terríveis vespas que existem.

Foi uma tragédia! As vespas ferraram nos focinhos e olhos das onças e irarás e cachorros-do-mato, fazendo-os fugirem dali numa desabalada louca. Em meio minuto o sítio ficou inteiramente limpo de bicho feroz.

Não foi sem tempo. Tia Nastácia já estava no chão, escarrapachada ao pé do mastro, mais morta do que viva, suando

O suor frio da morte. Se as granadas da Emília não tivessem produzido aquele maravilhoso resultado, a boa negra realmente não escaparia de virar furrundu de onça...

— Viva! Viva a Emília! — gritou Cléu, entusiasmada com a proeza da boneca.

— Viva! Viva a rainha das bonecas! — gritaram os outros.

Prática como era, Emília tratou de aproveitar aquele entusiasmo para ganhar coisas. Obteve de Dona Benta a promessa dum lindo regadorzinho verde; de Pedrinho apanhou, ali na hora, cinco tostões novos; e de Narizinho conseguiu uma mobília de boneca.

— E você, Cléu, que me dá?

— Um beijo, Emília.

A boneca fez um muxoxo de pouco-caso. Depois, voltando-se para Tia Nastácia:

— E você, pretura?

Tia Nastácia não pôde responder. O susto por que passara fora tanto que havia perdido a voz. Foi preciso darem-lhe a beber uma caneca d’água. Só então pôde abrir a boca e dizer:

— Você me salvou a vida, Emília, e não há o que pague semelhante coisa. Dou tudo quanto me pedir.

— Quero aquele pito de barro em que você pita — respondeu a boneca.

Foi assim que Emília ganhou o célebre pito de barro que mais tarde deu de presente ao Pequeno Polegar.
––––––––––––––-
Nota sobre o uso das expressões raça negra e macaca de carvão
Na época que Monteiro Lobato escreveu esta história, a expressão negro referia-se à raça das pessoas, assim como o branco, o amarelo, etc.
A frase “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”, é uma expressão para se entender a situação na história, sem de uso de malícia ou de forma insultosa.

José Feldman
––––––––––––-
continua ... VIII – Os Negócios da Emília
---------------------
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_San

Nenhum comentário: