sábado, 25 de junho de 2011

Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrinho) VIII – Os negócios da Emília


Desde essa aventura ficou Pedrinho com mania de caçadas — mas caçadas de feras africanas. Queria leões, tigres, rinocerontes, elefantes, panteras, e queixava-se a Dona Benta (como se a boa senhora tivesse culpa) da pobreza do Brasil a respeito de feras. Chegou a propor-lhe que vendesse o sítio para comprar outro bem no centro de Uganda, que é a região da África mais rica em leões.

— Aqui nem dá gosto morar, vovó — dizia ele, torcendo o nariz. — Fora o jaguar, que outra fera possuímos? Só paca e veado e anta — uns pobres herbívoros que têm medo de gente. Eu queria mas era enfrentar peito a peito um rinoceronte!...

Dona Benta arrepiava-se com aquilo. Lera muita coisa sobre as grandes feras africanas e sabia que nenhuma existe mais traiçoeira e feroz do que o rinoceronte, com aquele seu terrível chifre no meio da testa. A pobre senhora esfriava da cabeça aos pés só ao lembrar-se do horror que seria uma chifrada de tal espeto.

— Veja, Nastácia, para que deu Pedrinho agora! — dizia ela. — Quer caçar rinocerontes... Não sei por quem puxou essa terrível inclinação.

Tia Nastácia benzia-se. Ignorava o que fosse um rinoceronte, não tendo visto nenhum, nem no cinema, nem em sonho; mas a simples palavra lhe metia medo. “Rinoceronte, credo!”

— E o pior — continuou Dona Benta — é que quando estas crianças encasquetam fazer uma coisa, fazem mesmo. Elas viram e mexem e acabam caçando algum rinoceronte. Você vai ver.

E assim aconteceu. Parece fábula, parece mentira do Barão de Munchausen e, no entanto, é a verdade pura: os netos de Dona Benta caçaram um rinoceronte de verdade!...

— Como?

— Esperem lá. Algum tempo depois do assalto das onças havia chegado ao Rio de Janeiro um circo de cavalinhos que era uma verdadeira arca de Noé. Trazia enorme bicharada — seis leões, três girafas, quatro tigres, zebras, hienas, focas, panteras, cangurus, jibóias e um formidável rinoceronte. Quando Pedrinho leu nos jornais a notícia do grande acontecimento, ficou assanhadíssimo. Quis ir ao Rio ver as feras, chegando a escrever a Dona Tonica, sua mãe, pedindo licença e meios. Antes, porém, de receber qualquer resposta, um fato sensacional se deu no Rio: o rinoceronte arrebentou as grades da jaula durante certa noite de temporal e fugiu. Fugiu para as matas da Tijuca, tomando depois rumo desconhecido.

Esse fato causou o maior rebuliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários.

“Um rinoceronte interna-se nas matas brasileiras”, era o título da notícia que vinha em letras graúdas em todos os jornais. Durante um mês ninguém cuidou de mais nada. Grande número de bombeiros e soldados da polícia foram mobilizados. Os melhores detetives do Rio aplicavam toda a sua esperteza em formar planos para a captura do misterioso animal. As forças do norte que andavam caçando o Lampião deixaram em paz esse bandido para também se dedicarem à caça do monstro. Dizem até que o próprio Lampião e seus companheiros pararam de assaltar as cidades para se entregarem ao novo esporte — a caça ao rinoceronte.

Onde estaria ele? Nas florestas do Amazonas? Nas matas virgens do Espírito Santo? Ninguém sabia. Telegramas chegavam de toda a parte sugerindo pistas. Um de Manaus dizia: “Numa floresta, a dez léguas desta cidade, foi visto, dentro dum cerrado de taquaruçus, o vulto negro dum monstro que parece ser o tal rinoceronte. Pedimos providências”.

Cinco detetives e numerosos bombeiros foram mandados de avião para aquele ponto, a fim de investigar. Descobriram tratar-se duma vaca preta que ficara entalada na moita de taquaruçus...

Outro telegrama do mesmo gênero veio da cidade de Cachoeiro, no Espírito Santo. “Nas matas vizinhas ouvem-se urros que não são de onça, nem de nenhum animal conhecido por aqui. Pedimos enérgicas providências.”

O avião dos detetives voou para lá. Era um papagaio que fugira dum jardim zoológico, no qual aprendera a imitar o urro de todos os animais.

Onde estará o rinoceronte? — eis a pergunta que, da manhã à noite, se repetia pelo país inteiro. Onde poderia ter-se escondido a tremebunda fera?

Ninguém possuía elementos para responder. Ninguém sabia. Ninguém — exceto... Emília!

Parecerá um absurdo. Parecerá invenção de gente sem serviço e, no entanto, é a verdade pura. Só a pequenina boneca do sítio de Dona Benta sabia realmente onde estava escondido o monstro!...

O caso foi assim. Logo que, naquela noite de temporal, o rinoceronte escapou da jaula e se internou nas matas da Tijuca, deu de andar sem rumo, e foi varando, sempre para diante, num trote respeitável até que, pela madrugada, surgiu na mata virgem do sítio de Dona Benta. Gostou do lugar e resolveu ficar por ali, pastando a viçosa folhagem das ervas que encontrou.

A presença do rinoceronte causou grande rebuliço entre os habitantes daquela mata. A capivara, que vive tanto em terra como em água, atirou-se ao rio e não teve mais coragem de sair. As onças fugiram. Os macacos empoleiraram-se na mais alta de todas as árvores. Nenhum animal podia compreender um bicho tão estranho e monstruoso. Observando aquilo, os besouros da Emília resolveram correr e avisá-la. Foram ter com a boneca.

— Apareceu lá na mata um bicho, que não se parece com bicho nenhum nosso conhecido — informaram eles gemeamente.

— Grande? — perguntou a boneca.

— Terá o tamanho duma casinha de caipira.

Emília calculou logo que fosse algum boi tresmalhado mas, pela descrição que os besouros fizeram, viu logo que não podia ser boi. De repente, teve uma idéia.

— Escutem: o tal monstro não é preto?

— Sim.

— Não tem o couro enrugado?

— Enrugadíssimo.

— Não tem um chifre só no meio da testa?

— Isso mesmo. Um chifre pontudo.

— Come gente?

— Não, só come capim e folhas de árvore.

Emília pôs-se a refletir, com a mãozinha no queixo. Ou era unicórnio, animal fabuloso que não existe, pensou consigo, ou era rinoceronte, e como Emília andasse com a cabeça cheia de rinocerontes, de tanto ouvir Pedrinho ler as notícias do rinoceronte que fugira do circo, imediatamente percebeu que se tratava do mesmo.

— É ele! — exclamou, em voz alta. — Que sorte tem Pedrinho! Quis um rinoceronte e um rinoceronte apareceu!...

— Ele quem? — indagaram os besouros, com as testinhas franzidas.

— Ele! — repetiu a boneca, fazendo uma tal cara de pavor que os besouros se puseram a tremer. — Ele é ele, não sabem?

Emília teve preguiça de ensinar àqueles burrinhos o que era um rinoceronte. E para ainda mais os assustar, fez outra cara horrendíssima e repetiu em tom cavernoso:

— Ele!...

Os dois besouros desmaiaram.

Emília deixou-os lá e voltou para casa sem pressa nenhuma, pensando, pensando. Ciganinha como era, costumava tirar partido de tudo. Por isso estava se tornando a boneca mais rica do mundo. O acaso a fizera descobrir um rinoceronte. Pois bem: Emília iria vender esse rinoceronte a Pedrinho...

Quando entrou na varanda já trazia o seu plano formado.

— Pedrinho — disse ela —, tenho um bom negócio a propor.

O menino estava espichado na cadeira preguiçosa, lendo os últimos jornais recebidos. Sem tirar os olhos da notícia que lia, respondeu:

— Já vem ela com os tais negócios! Negócios de boneca — bobagens...

— Trata-se dum negócio muito sério, Pedrinho. Quando você souber o que é, vai arregalar um olho deste tamanho!

— Pois então desembuche logo e não amole — disse ele, sem tirar os olhos do jornal. — Estou lendo uma notícia muito interessante sobre o rinoceronte fugido.

Emília fingiu-se interessada.

— Sim? E que diz a notícia?

— Diz que tudo isto, toda esta história de rinoceronte fugido não passa duma formidável peta. Não existe rinoceronte nenhum. O diretor do circo inventou o caso apenas para reclame.

— Que pena! — exclamou a boneca, fingindo tom compungido. — Seria tão bom se fosse verdade...

— Eu logo vi que era peta — disse Pedrinho, querendo bancar o esperto. — Percebi desde o começo que se tratava duma formidável peta. Rinoceronte no Brasil! Impossível. Esses animais não suportam o nosso clima.

Emília sorriu de tal jeito que o menino desconfiou.

— De que está rindo assim, boba?

— Da sua esperteza, Pedrinho. Bem diz Tia Nastácia que você é um alho...

— Muito obrigado pelo elogio; mas, alho ou cebola, deixe-me em paz. Olhe, Emília, vá ver se eu estou no pomar, ouviu?

— Então não quer fazer o negócio que venho propor?

Pedrinho queria e não queria. Por fim, a curiosidade o venceu.

— Que negócio é? Vamos, diga logo.

Emília preparou-se para apresentar o negócio. Antes, porém, fez um rodeio.

— Escute cá, Pedrinho. Quanto acha você que vale um rinoceronte no Brasil? Responda!

O menino tonteou com o disparate. Não podia haver pergunta mais absurda e boba do que aquela. Ficou danado.

— Foi para isso que me veio interromper a leitura do jornal? Ora, vá lamber sabão, ouviu?

Novo sorriso finório da boneca, que disse:

— Paz, paz! Não se queime. Responda à minha pergunta. Dê um preço qualquer.

— Não amole, Emília. Se continua a insistir, leva um peteleco.

— Não sabe — disse ela. — É natural. Um menino que jamais saiu do Brasil, que não esteve nem no Rio de Janeiro, é natural que não saiba o preço dum rinoceronte. Está desculpado...

— Bobagem! — exclamou Pedrinho, queimado. — Então é preciso ter saído do Brasil, ter viajado pelo mundo, para saber uma coisa à-toa como essa? Basta um pouco de raciocínio.

— Pois raciocine e responda à minha pergunta.

Pedrinho pensou um bocado e disse:

— Vale contos de réis. O valor das coisas depende da raridade delas, diz vovó. Numa terra onde haja centenas de rinocerontes, um deles vale... vale quanto? Vale o mesmo que um boi aqui ou uma vaca. Mas em terra onde não há nenhum, vale o que for pedido pelo seu dono. Eu, por exemplo, se fosse rico, era capaz de dar até trinta contos por um rinoceronte.

— Bom. Se fosse rico, dava trinta contos. E quanto dá sendo pobre? Tinha coragem de dar por um deles o carrinho de cabrito?

Esse carrinho de cabrito constituía o orgulho do menino. Fora presente do Manuel Carapina, um carpinteiro que passara lá uns dias, reformando o assoalho da casa. Pedrinho dava mais valor ao carrinho do que a todos os coches dourados de todos os reis da Terra — pela simples razão de que o carrinho lhe pertencia e os coches pertenciam aos reis. Mas um rinoceronte era um rinoceronte, de modo que a resposta do menino foi a que podia ser.

— Um rinoceronte vale todos os carrinhos de cabrito do mundo inteiro — disse ele.

— Pois eu tenho um belo rinoceronte à venda e se você quiser trocá-lo pelo carrinho, o negócio está feito.

— Basta! — gritou o menino. — Se continua a amolar-me com essa história, vou lá no seu cantinho e quebro todos os seus brinquedos. — Disse e absorveu-se de novo na leitura dos jornais.

Emília não contara com aquela saída. Percebeu que nem Pedrinho, nem ninguém no mundo jamais acreditaria que ela realmente tivesse um rinoceronte para vender — e desse modo estava arriscada a perder um grande negócio, talvez o melhor negócio de sua vida…
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continua ... IX – Emília vende o rinoceronte
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_San

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