quarta-feira, 29 de junho de 2011

J. B. Xavier (O Pedágio)


À minha frente, a luz baça dos faróis se ia esmaecendo, vencida pela claridade do dia que surgia.

Confuso com a súbita claridade, percebi vagamente o incêndio avermelhado que o sol fazia ao levantar-se das colinas distantes.

As faixas brancas do asfalto, no entanto, tomavam toda a minha atenção, enquanto eu maldizia ter que percorrer esse trecho todos os dias.

A paisagem passava ao meu redor como uma névoa verde que se contorcia deformada pela velocidade. Absorto, eu já estava a uma hora no futuro, pensando em tudo o que me esperava no escritório.

Como eu começaria? Pior! por onde eu começaria?

Um ar gélido penetrava por alguma fresta do veículo, e me fez perceber o quanto a temperatura havia caído. Irritado, fui obrigado a parar e vestir um casaco, logicamente inadequado para aquela queda de temperatura.

A parada me irritou ainda mais, de maneira que quando cheguei ao pedágio, eu já me sentia sufocado pelo colarinho apertado que insistia em marcar minha pulsação, estrangulando-me a jugular.

-Bom dia - disse a moça num sorriso como há muito eu não via.

-Oi? - respondi - retirando o fone de ouvido, enquanto me irritava procurando trocados, por não ter comprado passes.

-É bonita a música que está ouvindo?

Pela primeira vez, a olhei nos olhos. " O que ela tem com isso?" - pensei irritado, mas aqueles olhos me fitaram diretamente, e o sorriso que o acompanhou desarmou meu espírito e ficará para sempre gravado em minha memória. Quis responder, mas não consegui lembrar de música alguma. Olhei para o walk-man no banco ao lado e ele estava chiando, porque há muito a seleção de músicas já havia acabado.

- É, sim, é bonitinha - respondi meio sem graça.

- É ótimo iniciar o dia ouvindo músicas - respondeu ela. O senhor passa sempre por aqui?

- Todos os dias - respondi prestando um pouco mais de atenção à moça – Você é nova aqui - perguntei?

- Sim. Comecei há alguns dias! Estou muito contente, porque esse posto fica num dos trechos mais bonitos da rodovia. Se o senhor passar quinze minutos mais cedo, verá um grande milagre da natureza nas curvas adiante - disse ela - enquanto me oferecia o troco, antes mesmo que eu lhe desse o dinheiro. - Em dias claros o sol parece sair de dentro da terra, e em dias chuvosos formam-se cascatas na encosta dos morros. É muito bonito.

- Eu conheço cada centímetro dessa rodovia - disse-lhe, num risinho irônico. - Há anos passo por aqui...

- Mas o senhor “curte” o trecho? - perguntou ela inocentemente enquanto pegava o dinheiro que eu lhe oferecia.

Eu ia responder qualquer coisa, mas um businaço atrás de mim, me assustou e me fez arrancar quase instantaneamente: Outro apressado, como eu.

Em poucos segundos eu estava novamente em velocidade. Mas a frase da moça mudou a minha vida.

No silêncio do carro, enquanto o vento zunia no espelho retrovisor, eu fiquei pensando na falta de sentido que minha vida estava tomando. Repentinamente fui colocado diante de mim mesmo por uma frase fortuita, casual.

Girei o retrovisor interno e olhei-me nos olhos. Vi um homem ansioso, correndo para atingir uma meta mal definida, que se esfumaçava sempre que eu pensava tê-la atingido. Vi um olhar vago, inquieto, onde havia resquícios de medo. Um medo insidioso, muito bem disfarçado, mas latente e presente, gerando inseguranças.

Mas acima de tudo, vi um homem solitário, envolvido demais na corrida desenfreada em busca do sucesso para ter tempo de cultivar amizades fortes. Apressado demais, ocupado demais, para ter tempo de confraternizar.

Minha desatenção à estrada me levou para a outra pista de rodagem e por pouco não causo um acidente. E se o acidente tivesse acontecido? De que teria valido toda essa correria?

Então, a consciência do efêmero da vida atingiu-me em cheio!

Como eu pude ter tanta certeza de que teria o tempo à frente disponível para todos os planos que tracei? Quem foi que me garantiu isso, a não ser minha própria mania de pensar que o Universo está sempre à minha disposição para me servir?

Meu pensamento foi então para minha esposa e filhos. Teria eu o direito de fazê-los esperar mais pela atenção que nunca vinha? Eu já não tinha conquistado o suficiente para estar alegre, ao invés de estar sempre tenso pelo que ainda me propunha conquistar?

A voz da menina do pedágio voltou aos meus ouvidos: “O senhor curte o trecho?”
No silêncio do carro eu finalmente a respondi: Não, eu não curtia o trecho!

Nos dias que se seguiram eu acatei o seu conselho e saí um pouco mais cedo. Sem a pressa habitual, pude observar o maravilhoso espetáculo que a natureza nos oferece todas as manhãs. Um espetáculo diferente a cada dia.

Como pude praguejar contra a chuva, quando era ela que limpava e tornava brilhantes as flores das copas da floresta; se, graças a ela, desfilavam diante de mim imensos mosaicos coloridos, de formas insondáveis? Como pude me irritar com o sol batendo em meu rosto, se era ele que arrancava cintilâncias de diamante do regato que corria ao longo da rodovia e me lembrava a toda hora que eu era parte de tudo aquilo?

Em que momento eu parei de me extasiar diante da vida? Quando aconteceu de eu não prestar mais atenção ao momento presente? Quando foi que eu deixei de "curtir os trechos" das minhas várias jornadas pela vida? Como pude permitir que isso acontecesse?

E o meu trabalho no escritório? Ora! Calma! Ele ainda está a mais de uma hora no futuro!

Fontes:
JB Xavier
Imagem = Caldeira Motors

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