terça-feira, 28 de junho de 2011

Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrino) X – O Rio de Janeiro é avisado


Dona Benta enviou um telegrama para o Rio de Janeiro que dizia assim: “Meus netos acabam de informar-me que o famoso rinoceronte, que andam procurando pelo país inteiro, acha-se escondido nas matas deste meu sítio. Encarecidamente peço providências imediatas. Benta de Oliveira”.

Cléu, a quem ela ditara o telegrama, observou que era bom mudar a assinatura para Dona Benta de Oliveira, avó de Narizinho e Pedrinho e dona do Sítio do Pica-Pau Amarelo, pois do contrário lá no Rio todos ficavam na mesma. Bentas de Oliveira há muitas e “meus sítios” também há muitos.

Dona Benta concordou.

— Façam como quiserem, mas que o telegrama siga quanto antes. Chamem um camarada do compadre Teodorico para o levar à cidade, no galope.

O telegrama foi passado naquele mesmo dia. Na manhã seguinte veio a resposta: “Seguem forças armadas sob comando detetive X B2”

Fazia dois meses que o governo se preocupava seriamente com o caso do rinoceronte fugido, havendo organizado o belo Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte, com um importante chefe geral do serviço, que ganhava três contos por mês e mais doze auxiliares com um conto e seiscentos cada um, afora grande número de datilógrafas e “encostados”. Essa gente perderia o emprego se o animal fosse encontrado, de modo que o telegrama de Dona Benta os aborreceu bastante. Em todo caso, como outros telegramas recebidos de outros pontos do país haviam dado pistas falsas, tinham esperança de que o mesmo acontecesse com o telegrama de Dona Benta. Por isso vieram. Se tivessem a certeza de que o rinoceronte estava mesmo lá, não viriam!

Certa manhã, quando Tia Nastácia se levantou de madrugada e foi abrir a porta da rua, deu com o animalão a vinte passos de distância, olhando para a casa com os seus olhos miúdos. A negra teve um faniquito dos de cair desmaiada no chão. Ouvindo o baque de seu corpo, todos pularam da cama — e foi uma dificuldade fazê-la voltar a si. Desmaio de negra velha é dos mais rijos. Por fim, acordou e, de olhos esbugalhados, disse num fiozinho de voz:

— O canhoto já foi embora?

Ninguém sabia do que se tratava, porque ninguém ainda havia olhado para o terreiro.

— Que canhoto é esse? — indagou Dona Benta.

— O tal de um chifre só na testa — respondeu a negra.

— Estava aí fora quando abri a porta...

Só então os meninos espiaram pela janela e viram que o rinoceronte estava, de fato, no terreiro. Mas quieto, de cara pacífica, sem mostra nenhuma de ânimo agressivo. Olhava para a casa com toda a atenção, como se entendesse de arquitetura rural — isto é, de arquitetura de casas da roça. Depois, mansamente, dirigiu-se à porteira e lá se deitou de atravessado.

— Pronto! — exclamou Narizinho. — Atravessou-se na porteira e quero ver agora quem entra ou sai. Estamos bloqueados...

A aflição de Dona Benta aumentou. Viu que, de fato, estavam com a saída do sítio bloqueada por aquele monstruoso animal que parecia não ter a mínima intenção de afastar-se dali.

Nesse momento viram um grupo de homens que se aproximavam.

— São eles! — gritou Cléu. — São os homens da polícia secreta que receberam o nosso telegrama. Secretas a gente conhece de longe!...

E eram. Era o famoso grupo dos Caçadores do Rinoceronte, que se formara logo em seguida à fuga do misterioso paquiderme e que vinha percorrendo o país inteiro em sua procura. Comandava-os o espertíssimo detetive X B2, que tinha lido todos os fascículos das Aventuras de Sherlock Holmes existentes nas livrarias. Esses homens traziam consigo numerosas armas e armadilhas próprias para caçar rinocerontes — mundéus desmontáveis, ratoeiras de gigantescas proporções, correntes de aço, um canhão-revólver e uma metralhadora. A única coisa que não traziam era intenção real de apanhar o monstro.

Assim que chegaram ao pasto do sítio e deram com o enorme paquiderme atravessado na porteira, começaram a discutir se atiravam ou não. Um queria que se empregasse o “mundéu desmontável”. Outro queria que se armasse a “ratoeira gigante”. Por fim, o detetive X B2 decidiu empregar o canhão-revólver.

— Atirem — disse ele —, mas com pontaria que não venha a prejudicar os nossos empregados.

Disse e piscou. O que todos queriam era passar toda a vida caçando aquele mamífero.

Mas a Emília, que tinha terríveis olhos de retrós, viu de longe a piscadela cavorteira e percebeu a manobra.

— Vão atirar e errar! — gritou ela muito contente, porque já estava criando amor ao “seu rinoceronte” e não queria que lhe estragassem o couro com um furo de bala; apenas admitia que o caçassem vivo.

Ao ouvir aquilo Dona Benta protestou.

— Então não quero! — disse ela. — Se esses homens não têm boa pontaria, as balas podem passar por cima do alvo e virem quebrar algum vidro das nossas vidraças. Não quero!... E voltando-se para a Cléu, que tinha muito boa letra e sabia escrever com todos os ‘Fs’ e ‘Rs’:

— Escreva uma carta ao chefe daqueles caçadores dizendo que não admito que atirem de lá para cá. O Visconde que leve a carta.

Cléu escreveu a carta sem um erro, e pediu ao Visconde que a levasse. Como fosse pequenininho, o Visconde podia passar por trás do rinoceronte sem ser percebido — e ainda que fosse percebido e devorado não fazia mal, pois que era de sabugo e havendo muitos sabugos no sítio, Tia Nastácia num momento fazia outro Visconde.

O nobre mensageiro nem se deu ao trabalho de passar por trás do monstro. Subiu por cima dele como quem sobe um morro, e desceu do outro lado sem ser percebido. Depois foi correndo entregar a carta. Chegou no instantinho em que o artilheiro ia disparar o canhão.

— Alto! — gritou o detetive X B2. — Deixe-me primeiro ler esta carta.

Leu a carta, elogiou a boa letra e depois disse aos seus homens:

— A dona da propriedade não quer saber de tiros daqui para lá. Diz que as balas poderão quebrar os vidros das suas vidraças. Acho que ela tem toda a razão.

— Nesse caso, que fazer? — perguntou o artilheiro.

— Temos de passar para o lado de lá. Podemos colocar o canhão e a metralhadora na escadinha da varanda. Desse modo, se houver balas perdidas, poderão apenas alcançar algum macaco na floresta, lá longe.

Muito bem. Mas como atravessar para o outro lado, com o canhão e a metralhadora, se a única passagem era pela porteira, e o inimigo estava deitado ali, de través? O problema tornava-se dos mais sérios. Requeria estudos. O detetive X B2 reconcentrou-se cheio de rugas na testa, a refletir. Refletiu e, depois de muito refletir, disse:

— Antes de mais nada, temos de construir uma pequena linha telefônica que nos ponha em comunicação com a gente do sítio, a fim de que eu possa debater o caso com a Senhora Dona Benta e agir de acordo com ela e os demais moradores. Assim, por meio de cartas, a coisa levará toda a vida. Não há como o telefone para as comunicações rápidas. Vou telegrafar para o Rio de Janeiro, pedindo a remessa do material necessário para a construção duma linha telefônica.

Resolvido isso, retiraram-se todos para a vila próxima, onde ficaram tocando violão e contando casos pândegos até que o material encomendado chegasse. Isso levou um mês. Mas afinal chegou, e o detetive deu ordem para que no dia seguinte os trabalhos fossem iniciados.

Na manhã do dia seguinte os moradores do sítio viram reaparecer no pasto os caçadores do governo, seguidos duma turma de operários com rolos de arame, postes e mais coisas telefônicas. Nesse dia, porém, o rinoceronte falhou de vir deitar-se de atravessado na porteira, como era seu costume. O trânsito estava completamente livre.

— Ué! — exclamou o detetive X B2, muito admirado. — Para onde terá ido o malandro do rinoceronte?

Dirigiu-se à casa para falar com Dona Benta.

— Como foi isso, Dona Benta? — disse ele, subindo à varanda. — Deixei o rinoceronte deitado na porteira e agora não encontro o menor sinal do bicho.

Dona Benta explicou tudo quanto sucedera durante as semanas em que eles estiveram tocando violão na vila. O rinoceronte adquirira o hábito de passar o dia na Figueira-Brava, só vindo deitar-se à porteira lá pelas três horas da tarde.

— Chega sempre a essa hora, deita-se e fica a cochilar até à noite — explicou a boa senhora. — É um animal bastante sistemático.

— Bem — disse o detetive —, nesse caso teremos toda a manhã livre para trabalharmos na construção da linha telefônica.

Dona Benta arregalou os olhos.

— Que linha telefônica é essa? — perguntou.

— A linha que resolvemos construir para ligar esta casa ao nosso acampamento. Como naquele dia o rinoceronte estivesse atravessado na porteira, impedindo a passagem, eu não pude discutir com a senhora vários assuntos importantes. Tive então a excelente idéia de construir essa linha, com os fios passando por cima do “obstáculo”.

Dona Benta admirou-se da complicação.

— Sim — disse ela —, mas já que o senhor pôde chegar até aqui, creio que a linha telefônica já não é mais necessária.

O detetive sorriu da ingenuidade da velha e explicou que o material já havia chegado e que, portanto, a linha ia ser construída. Terminou piscando o olho vermelho e dizendo: — O Departamento Nacional de Caça ao Rinoceronte sabe o que faz, minha senhora.

— Pois façam lá como entenderem — concluiu Dona Benta. — Não entendo de tais serviços, nem quero entender. Aqui estamos nós para prestar aos senhores toda a ajuda possível. O que quero é que o quanto antes me livrem desse animalão. Mas, meu caro senhor, esse negócio não está me parecendo sério...

O detetive sorriu indulgentemente e respondeu:

— É que a senhora não conhece as condições. Para nós é um negócio da maior importância, visto como dele tiramos o pão de cada dia…
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continua ... XI – Inaugura-se a linha
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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