quarta-feira, 22 de junho de 2011

JB Xavier (O Homem que Não Tinha Amanhã)


Acabo de ler o livro que meu avô escreveu há muitos anos. Por que não o li antes? Porque, como a maioria dos que me lêem agora, nunca tive tempo! .

Cresci assim, com essa imensa curiosidade a respeito do meu avô, ou como eu o chamava, O Senhor do Tempo!

Todos, inclusive eu, até certa altura de minha adolescência, achávamos que ele era meio doido. E nem poderia ser diferente diante de um homem que sempre – desde que eu me entendi como gente – se recusava a discutir o amanhã. Eu disse “meio” doido, porque em tudo o mais ele era absolutamente normal. Apenas se recusava terminantemente a falar do futuro.

Não foram poucas as brigas que vi meus pais terem com ele, pelo fato de não ser possível planejar nada, quando esse planejamento envolvia de alguma forma sua pessoa.
Nenhuma ação que não fosse imediata e iminente o interessava.

Sempre que eu lhe perguntava por que ele agia assim, ele respondia simplesmente com um sonoro “não vale a pena”.

Obviamente, como todo mundo, eu vivia mais no futuro que no presente, e à medida que fui avançando na vida , fui também vivendo grande parte de minha existência no passado, pelo simples motivo de que quanto mais se vive, mais se tem a recordar.

Ah! O passado! Quem não gosta de recordar? Meu avô! Ele não gostava de recordar nada! Raríssimas vezes ouvi dele alguma referência ao passado, e quando o fazia era apenas para ratificar que se naqueles dias passados ele tivesse pensado no presente, não estaria pensando neles agora.

Devo registrar que por vezes, enquanto criança, e depois, na adolescência, cheguei a sentir vergonha dele, porque meus amigos zombavam, chamando-o – alguns à boca pequena, e outros, abertamente – de louco, gagá, esquizofrênico etc.

Mas vovô não acusava os golpes baixos que lhe aplicavam, e como todo aquele que atingiu níveis elevados de sapiência, ele apenas sorria condescendentemente e mudava de assunto, abordando invariavelmente algum tema que dominava – e eram muitos! – de maneira a calar o zombeteiro apresentando-o à própria ignorância.

Isso confundia os que dele zombavam e na maioria das vezes continha os debochados, porque quase sempre eles não tinham nível para sustentar uma conversa com vovô.

Minha mãe – filha dele – o defendia sempre que podia, mas até ela às vezes se irritava com sua mania de viver “aprisionado” no presente, e quando meu pai perdia a paciência com o velhinho, era quase sempre apoiado por ela, e aí sim, eu via meu avô realmente triste.

Cresci com esses sentimentos antagônicos. A vergonha que às vezes sentia, a vontade de convencer meu avô a ser uma pessoa “normal” e a tristeza por vê-lo triste, quando meus pais ralhavam com ele.

Em tudo o mais ele era um avô maravilhoso, que se divertia realmente por me ver feliz.
Criado como filho único, fui uma criança como tantas outras, com pouco tempo disponível dos pais, que corriam loucamente pela vida, planejando o futuro e perseguindo metas que pareciam nunca serem atingidas.

Hoje, finalmente, após a leitura deste livro, posso entender o que acontecia. Não é que as metas não fossem atingidas; é que mal meus pais as atingiam, ou as viam realmente próximas, automaticamente estabeleciam outras, ainda mais desafiadoras – como, alíás, faz a maioria das pessoas – de maneira que eles estavam sempre “em dívida” consigo mesmos.

Jamais achei esse comportamento estranho, tanto que eu vivi assim a maior parte de minha vida. Afinal, pensava eu, esse é o padrão universal de comportamento do mundo em que vivemos atualmente.

Já meu avô estabelecia metas de curtíssimo prazo. Não falo de anos, meses ou dias, falo de horas! Nunca o vi planejar algo que não fosse para ser realizado no mesmo dia.

Ainda assim, com todos os problemas que esse comportamento causava aos meus pais, porque meu avô jamais garantia que iria à qualquer lugar agendado com dias de antecedência, ele era o mais divertido da família, e eu percebia que, em cada momento meu, ele estava realmente presente.

Digo “realmente” porque ele parecia nunca ter pressa. Quando estava comigo, era como se tivesse à disposição toda a eternidade para desfrutar de minha companhia. Isto desde minha mais tenra idade! Com meus pais, ao contrário, eu me sentia em segundo plano, pois eles estavam sempre olhando para o relógio, e parecia sempre haver algo que eles precisavam fazer com a máxima urgência.

Por favor, não me entendam mal. Não pensem que não tive carinho dos meus pais. Tive, e muito! Sou filho único, esqueceram? Mas, mesmo não tendo irmãos, eu tinha que dividir o carinho deles com centenas de outras coisas. À vezes eram coisas realmente importantes e inadiáveis, mas a maioria eram coisas triviais, como não poder chegar atrasada no cabeleireiro ou a uma partida de boliche com os amigos.

Mas com meu avô era diferente! E não pensem também que ele fosse o típico velhinho simpático que tudo faz para agradar o netinho único, como costuma ser o comportamento padrão dos avôs. Não! Ele tinha muitos afazeres, e mantinha-se ocupado o tempo todo! Ou estava escrevendo o livro que pretendia publicar – e que acabo de ler - ou cuidando das flores de seu orquidário, que amava profundamente, ou viajando para ministrar suas palestras, cujos temas formam o livro, que finalmente acabou por publicar.

A verdade, é que, por alguma razão que desconheço, não levamos a sério as pessoas mais velhas, que julgamos terem chegado àquela idade em que voltam a ser tornar dependentes.

Não sei exatamente por que isso acontece, pois se pensarmos bem, ali está o resumo do que vamos encontrar pela frente, em algum grau, se não em conteúdo, talvez em intensidade, ou vice-versa, se preferirem.

Sendo uma pessoa ocupada, como ele poderia ser diferente de meus pais, que não tinham tempo para nada? “Creio que posso reduzir a resposta a uma frase que ele usava constantemente, quando respondia os questionamentos de meus pais, e que os irritava profundamente: “Tempo é uma questão de preferência” – costumava repetir – e acrescentava:” Todos temos o mesmo tempo disponível. O que define uma pessoa, é a maneira como o emprega”.

Muitas vezes ele me disse, ensinando-me uma das maiores lições de minha vida:

“Para ter tempo basta fazer bem feito. Assim não há necessidade de fazer de novo, porque se você não tem tempo de fazer bem feito, como vai ter tempo de fazer outra vez?”

Diante de argumentos assim, minha mãe costumava girar nos calcanhares e abandonava a discussão, quase sempre emburrada e resmungando frases irritadas como “tempo não se emprega, se gasta!” Ao que meu avô imediatamente retrucava: “Você” gasta o seu. O meu tempo eu invisto”.

A mim, que ouvia essas discussões com certa freqüência, pouco importava quem estava com a razão. O que eu gostava mesmo era de desfrutar da companhia de meu avô, porque eu podia dispor da companhia dele completamente, intensamente, pelo tempo que desejasse.

Meu avô parecia nunca ter pressa, e mesmo assim, parecia cumprir com tudo o que se propunha, no tempo certo. À medida que eu crescia e meu entendimento das coisas ia se ampliando, comecei a perceber que, mesmo com o dobro da idade de meus pais, ele produzia muito mais, e com alegria!

No tocante a mim, cada vez que eu o procurava para uma conversa, ele simplesmente deixava de lado o que estava fazendo e sua atenção se voltava inteira para nosso encontro. Muitas vezes o vi redigindo um dos seus muitos artigos para o jornal do bairro, e sabia que ele precisava enviá-lo à redação rapidamente. Ainda assim, ele parava tudo o que estava fazendo e conversava comigo como se nada mais tivesse a fazer.

É incrível a sensação de bem estar que a atenção genuína produz! Com ele eu sentia o amigo, o protetor, o confidente e principalmente o aliado.

Por “atenção genuína” me refiro àquele tipo de atenção total, interessada, comprometida, aliada; não àquela superficial, que leva o pensamento de quem ouve para longe, muitas vezes inclusive “desligando-o” do momento presente.

Vovô era assim - interessado, comprometido, aliado. Pouco importava se o assunto que eu lhe falava tratava do namorico adolescente, de minha decisão sobre qual curso superior escolher, ou simplesmente de minha alegria por uma boa nota. Ele estava sempre inteiro em nossas conversas, dando-me a impressão, pela intensidade e paciência com que me ouvia, de que o futuro não existe!

Meu pai ao contrário, estava sempre com pressa, sempre tendo que ir urgentemente a algum lugar, para fazer sei lá o quê. Minha mãe idem. Ou eram as coisas domésticas ou as profissionais que a preocupavam , mas sempre havia alguma coisa que a afastava de mim, após alguns momentos de sua companhia.

Por isso, cresci numa perene saudade de meus pais e na idolatria ao meu avô!

Eu desejava ser como ele, e por isso, um dia, já adulto lhe dei um apelido: “Senhor do Tempo.”

“Gostei” – disse ele me abraçando, na primeira vez que o chamei assim – “Um ótimo apelido. Tente um dia merecê-lo também. Você vai ver que vale a pena.“
Então chegou o dia que nunca pensei viver. O dia mais triste de minha vida.

Cheguei do colégio próximo das seis horas da tarde. O dia morria morno e as luzes das ruas começavam a ser acesas.

Entrei e fui até meu quarto, onde costumava deixar minha mochila sobre a cama. Para minha surpresa vi meu avô sentando junto â janela, com o olhar perdido no infinito, tendo parte do rosto iluminado pela luz amarelada do sol que morria atrás das árvores, no outro lado da rua.

Achei estranha aquela atitude. Primeiro porque raramente ele entrava em meu quarto em minha ausência, e segundo porque eu nunca o havia visto assim, ensimesmado.
Aproximei-me alegremente e vi algo brilhar em seu rosto. Era uma trilha brilhante, como se um diamante tivesse se derretido em seus olhos e descido por sua face.

Parei indeciso e confuso sobre o que via, quando outro diamante tremeluziu em seus cílios e se desfez, engrossando a trilha brilhante sob a luz do crepúsculo.

Aproximei-me devagar e sem mesmo acreditar no que via, perguntei em seu ouvido.
“vovô...o senhor está...chorando”?

Outra lágrima brotou de seus olhos e um leve tremor no queixo acusou o furacão que devastava seu coração.

Eu ia dizer mais alguma coisa, mas minha mãe entrou no quarto, e dirigindo-se até ele, pôs as mãos em seus ombros.

“Vovô vai nos deixar” – disse ela, num tom no qual eu jurava não haver tristeza. “ele resolveu ter sua própria vida”.

Não me peçam para descrever o eu senti diante daquelas palavras. Eu não conseguiria. Apenas desabei. Atirei-me sobre a cama e enfiei a cabeça no travesseiro, chorando convulsivamente.

Minha mãe ainda tentou me acalmar e de todas as coisas que me disse, recordo-me apenas de uma frase: “Com ele você jamais aprenderia a planejar sua vida. Assim será melhor para todos nós”

Dizendo isso ela saiu, deixando a porta do quarto entreaberta.

Meu avô permaneceu imóvel, olhando para o infinito, até que eu me acalmei um pouco e fui até ele, com os olhos inchados abraçando-me ao seu pescoço enquanto sentava em seu colo.

“Por quê?” – perguntei – “Por que você quer ir embora?” O que vou fazer quando acordar amanhã e não tiver mais você aqui?

Ele acariciou meus cabelos e respondeu:

“O amanhã não existe...Não fique triste pelo amanhã...”

“Mas eu estou triste – respondi – “por que você quer ir embora?”

“Seus pais precisam de privacidade, e de fato estou atrapalhando a vida deles...” ” Eles correm demais, e vivem de menos...” tento mostrar isso a eles todos os dias, mas parece que só consigo irritá-los...

“Faça parar o tempo! O senhor consegue! O tempo não existe para o senhor...não é o que sempre diz? O senhor é “O Senhor do Tempo!”

No silêncio que se seguiu, senti um solavanco em seu peito e seu abraço me estreitou ainda mais.

“Ah, meu querido, meu querido...O tempo não existe. Ele é apenas uma coisa inventada para organizar a vida do mundo! Ele não tem Senhor, porque simplesmente não existe!

“Mas a mamãe e o papai vivem dizendo que não tem tempo para nada! Então ele existe, sim!”

Vovô depositou um beijo em meus cabelos e falou como se discursasse ao sol moribundo:

“Se as pessoas fossem gentis com o agora, querido, o passado não importaria porque teria sido, feliz, o futuro, menos ainda, porque seria esperançoso. Mas o presente, este sim teria sido pleno! E o que fazem seus pais? Acabam por lamentar o passado que perderam, e se ocupam por antecipação com o futuro, ocupando assim seus próprios presentes, com algo que ainda não existe.”

“É por isso que o senhor vai nos deixar?”

“Prefiro ficar longe de minha filha, a vê-la sofrer numa vida da qual é prisioneira...Ela é teimosa...sempre foi...nunca consegui ganhar dela numa discussão. Ela acha que tem sempre razão, mesmo quando está deixando de lado a vida maravilhosa que poderia ter nesta família maravilhosa que construiu.”

“Mas o senhor não precisa ir embora por causa disso...”

Vovô me apertou novamente em seu abraço protetor.

“Ela precisa ter consciência do que está perdendo: Ela está perdendo você! Minha ausência talvez a faça ver isso mais facilmente... E depois, não vou para longe...Há uma casa de repouso aqui perto...é para lá que eu vou, Você pode ir me visitar quando quiser.”

Agarrei-me a ele de maneira quase histérica. Eu simplesmente não conseguia imaginar minha vida sem meu avô.

“Não vá. Por favor, não vá!” Eu vou pedir para a mamãe não brigar mais com o senhor...

Outro solavanco fez estremecer o peito de vovô, e uma lagrima dele caiu sobre minha mão. Ainda hoje sinto em minha pele o calor do desespero nela contida.

“Eu simplesmente não sei mais o que fazer para torná-los conscientes do presente. Sua mãe e seu pai perdem o que há de melhor na vida, o Agora! O que resta mais para ser vivido senão o agora?

Eu não compreendia direito o que ele dizia, mas olhei para a janela e vi uma estrelinha que começava a aparecer no céu violeta. Aconchegando-me ao vovô, fiz de conta que ela era uma fada, e pensando nos dias de Natal de minha infância pedi a ela que me ajudasse.

Após um momento de silêncio, meu avô continuou falando coisas que eu nunca o ouvi falar, mas que me fizeram compreender porque ele não acreditava no futuro.

De tudo o que ele disse, no entanto, uma coisa me marcou, seja pela intensidade com que foi dita, seja pelo efeito que produziu:

“Minha única duvida sobre minha partida, é se eles vão conseguir ensinar a você a viver o ‘aqui’ e o ‘agora’ ou vão transformá-lo num deles, e arrastá-lo para essa corrida desenfreada que eles fazem em direção ao incerto e ao inexistente.Tudo o que eu quero e ver todos vocês felizes”

Então a mágica aconteceu!

A porta do quarto se abriu lentamente. Eu e vovô nos voltamos e vimos minha mãe parada, com uma mão na maçaneta e outra na boca, tentando conter as lágrimas. Seus olhos faiscavam sob a luz que ainda restava do dia e seus ombros se sacudiam num incontido choro.

“Me perdoa, papai – disse ela entre soluços – me perdoa! Fiquei ali ouvindo o que conversavam. Me perdoa! Como pude pensar em viver longe de você? Você tem razão! Estou deixando escapar o presente – ESTE presente – disse ela abraçando a mim e ao vovô.

Então olhei para a estrelinha. Podem ter sido minhas lágrimas, mas juro que a vi tremeluzir nas alturas do céu.

Hoje vovô é uma das estrelinhas do céu, mas nos legou esse livro, que vou ler novamente, para aprender mais ainda sobre O Homem Que Não Tinha Amanhã...

Fonte:
JB Xavier

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