quarta-feira, 15 de junho de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XLIV - História dos Dois Ladrões


Era uma vez um boiadeiro lá do sertão, que tinha cara de bobo e fumaças de esperto. Um dia veio ao Rio de Janeiro gastar os cobres duma boiada. Logo que desceu do trem e ia se encaminhando para um hotelzinho próximo, foi abordado por um homem de cara ainda mais boba que a sua.

— Boa noite, meu senhor! — saudou o homem humildemetne.

O boiadeiro respondeu com um "boa noite" desconfiado, e foram andando juntos. O homem começou a contar uma história muito comprida. Disse que era da roça e estava completamente zonzo naquela capital. Não conhecia ninguém, não sabia tomar bondes, atrapalhava-se com qualquer coisinha — e o pior de tudo era o medão de ser roubado.

— Isto aqui — disse ele — é gatuno de todos os lados. Ninguém pode confiar em ninguém. Os piratas não dormem. Se a gente está com dinheiro no bolso, eles conhecem pelo cheiro — e tanto fazem que deixam uma pessoa limpa.

— Se o senhor tem tanto medo, é sinal de que está empatacado — disse o boiadeiro.

O homem correu os olhos, com desconfiança, dum lado e doutro; depois respondeu quase num cochicho:

— O senhor adivinhou. Todo o meu medo vem de trazer no bolso um pacote de notas no valor de dez mil cruzeiros, que lá na minha terra me encarregaram de entregar à Santa Casa. Mas não sei onde é a Santa Casa. Se pergunto, ensinam-me errado — ou então desconfiam de que estou com dinheiro.

E deu um suspiro. Depois continuou:

— Aquela gente lá da roça não imagina o que é isto aqui. Nem eu imaginava coisa nenhuma. Se soubesse, não vê que não me encarregava deste maldito dinheiro. Dez mil cruzeiros! Se perco o pacote, ou se algum pirata me passa a perna, vão dizer por lá que roubei — e fico desacreditado.

— E que pretende fazer? — indagou o boiadeiro.

— Minha idéia é descobrir um homem de bem que queira encarregar-se da entrega do dinheiro. Mas não acho esse homem. As caras desta terra não me inspiram a menor confiança. Só a sua. Assim que vi o senhor, tive um pressentimento no coração: "Aquele, sim, aquele tem cara de homem de bem." Por isso me aproximei.

O boiadeiro ficou muito lisonjeado com a boa idéia que o homem fazia dele.

— Lá isso, sou. Graças a Deus tenho um nome limpo. Quem quiser tratar com pessoa séria, me procure.

O homem do pacote suspirou.

— Deus seja louvado! Custou, mas achei. Meu coração não nega. Quando o vi descendo esta rua; palpitei cá comigo: "Meu salvador vai ser aquele homem..."

— Mas de que maneira acha que eu possa servi-lo? — perguntou o boiadeiro.

— Dum modo muito simples. Eu lhe dou o pacote dos dez mil cruzeiros e o senhor faz a entrega à Santa Casa.

Os olhos do boiadeiro brilharam.

— Pois estou às suas ordens — disse ele. — Neste mundo um tem de servir o outro. Já que lhe inspiro tanta confiança, disponha dos meus préstimos.

— Ora graças! — suspirou o homem, tirando o pacote do bolso. Era um pacote de notas graúdas, muito bem amarrado, com uma de cem cruzeiros em cima.

— Pois aqui está o pacote, meu senhor. E eu fico imensamente agradecido da sua bondade, Ah, nem imagina o peso que me tira do coração! Uf! Esse dinheiro estava me deixando doido...

O boiadeiro pegou no pacote e foi abrindo a mala para guardá-lo.

— Espere — disse o homem. — Eu tenho no senhor a mais absoluta confiança, mas sempre é bom que me dê uma garantiazinha — aí um dinheirinho qualquer, porque afinal de contas eu acabo de lhe entregar dez mil cruzeiros. Dez mil cruzeiros é uma fortuninha...

O primeiro ímpeto do boiadeiro foi restituir o pacote. Depois mudou e disse, pondo a mão no bolso:

— Serve uma garantia de mil e quinhentos cruzeiros? É todo o dinheiro que tenho no bolso.

O homem cocou a cabeça vacilante. Afinal resolveu:

— Serve. É pouco, mas serve...

O boiadeiro puxou os cobres e deu a de mil e quinhentos cruzeiros. Despediram-se cada qual seguindo numa direção.

— Dez mil cruzeiros! — foi murmurando o boiadeiro. — Dez mil cruzeiros! Para que precisa a Santa Casa de tanto dinheiro? Muito melhor eu distribuir isto lá pelos pobres da minha terra — pelo menos metade. É justo que a outra metade fique comigo, em pagamento do trabalho...

No hotel pediu um quarto, onde se fechou para contar o dinheiro. Só encontrou aquela nota de cem cruzeiros. O resto era papel de jornal...
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— Isso é o célebre conto-do-vigário, vovó! — gritou Pedrinho. — Todos os dias leio nos jornais coisas assim — e só me admiro de ainda haver gente que vá na onda. Como há bobos no mundo!...

— Como há patifes, isso sim — emendou dona Benta. — O segredo do conto-do-vigário é que um quer passar a perna no outro. Trata-se dum duelo entre dois tipos de ladrões — o ladrão esperto e o ladrão bronco. O bronco apanha o pacote — o esperto apanha a garantia. Eu, se fosse a polícia, punha os dois na cadeia.

— Mas isso não é história do folclore — disse Narizinho.

— Como não? Se é um produto do povo, é folclore do legítimo. Note que o principal elemento de todas as histórias é o logro. Seja príncipe ou jabuti, um logra o outro. A variedade está só nos jeitinhos do logro. O conto-do-vigário é um desses mil jeitos do esperto apanhar o dinheiro do bronco — num caso em que o bronco também é ladrão.

— Ah! — exclamou Emília. — Eu é que queria que alguém viesse para cima de mim com um pacote da Santa Casa...

— Que fazia?

— A coisa mais simples do mundo. "Quer garantia, meu caro senhor? Pois então abra o pacote e tire quanto quiser." Bastava isso.

— Bom, essa é a resposta natural duma pessoa honesta — mas quem cai no conto não é honesto. Assim que vê o pacote já fica assanhado para pegar o dinheiro, e portanto fará tudo, menos abrir o pacote.

— E agora? — perguntou Pedrinho.

— Agora chega — disse dona Benta. — Vocês já devem estar empanturrados de histórias.

— Eu confesso que estou — disse Emília. — Estou cheinha de reis e príncipes e princesas encantadas e velhas corocas e jabutis e veados e onças. Sinto até um gostinho de jardim zoológico na boca.

— Também eu estou farta — disse Narizinho. — Histórias do povo não quero mais. De hoje em diante, só as assinadas pelos grandes escritores. Essas é que são as artísticas.

— Bem — concluiu dona Benta. — Da próxima vez contarei só histórias literárias, isto é, as escritas pelos tais grandes escritores. Agora cama! Narizinho já bocejou três vezes...

E a criançada foi dormir.

FIM

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

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