Foi um delírio de contentamento. Os caçadores rodearam a onça morta, discutindo as peripécias da formidável aventura. Emília reclamou logo todas as honras para si.
— Se não fosse a minha espetada com o espeto de assar frango, queria ver...
— O que decidiu tudo foram as facadas que eu dei — alegou Narizinho.
— Qual nada! Juro que foi o meu tiro de canhão — disse Rabicó.
— Pexote! — berrou Pedrinho. — A bala de canhão nem arranhou a pele da onça, não está vendo?
Como daquela disputa pudesse sair briga, o Visconde ponderou gravemente:
— Todos ajudaram a matar a onça e todos merecem louvores. Mas se não fosse a pólvora de Pedrinho, estaríamos perdidos; de maneira que a Pedrinho cabe a melhor parte da vitória. Depois de cegar a onça, tudo ficou mais fácil e cada qual fez o que pôde. Basta de discussões. Em vez disso, tratemos mas é de levá-la para casa.
Os heróis concordaram com o sensatíssimo Visconde e Pedrinho afundou no mato para tirar cipós, visto não terem trazido corda. Logo depois reapareceu com um rolo de cipó ao ombro.
— Segure aqui! Puxe lá! Força! Vamos!...
Pedrinho conduziu o trabalho da amarração da onça ajudado por todos, menos Emília, que se afastara dali e estava numa grande prosa com dois besouros que tinham vindo assistir à cena. Bem amarrada que foi a onça, era preciso conduzi-la até a casa. Foi o que mais custou. Em certo ponto do caminho, Rabicó, que suava em bicas, parou para tomar fôlego.
— Francamente — disse ele — prefiro matar dez onças a puxar uma só! Estou que não posso mais...
Pararam todos para um bem merecido descanso e sentaram-se em cima do pêlo macio da fera morta. Vendo que o sol já ia alto, Narizinho disse:
— Pobre vovó! Passa bem maus momentos por nossa causa. A estas horas deve estar aflitíssima a procurar-nos por toda parte...
— Mas vai consolar-se vendo a bichona que matamos — disse Pedrinho.
“Que matamos, uma ova!”, pensou, lá consigo, Rabicó. “Que eu matei com o meu tiro de canhão, isso sim.”
Pensou apenas. Não teve coragem de o dizer em voz alta, de medo do pontapé que Pedrinho fatalmente lhe pregaria.
Descansados que foram, prosseguiram na caminhada. Duas horas depois avistavam a casa, e viram Dona Benta e Tia Nastácia, muito aflitas, procurando-os pelo pomar. Pedrinho pôs na boca dois dedos e desferiu um célebre assobio que só ele sabia dar. As velhas voltaram-se na direção do som e Tia Nastácia, que tinha melhor vista, enxergou-os logo.
— Lá vêm vindo eles, sinhá! e vêm puxando uma coisa esquisita... Quer ver que caçaram alguma paca?
Aproximaram-se os heróis. Penetraram no terreiro. Narizinho, de longe, gritou:
— Adivinhe, vovó, o que matamos!
Dona Benta respondeu:
— Uns danadinhos como vocês são bem capazes de terem matado alguma paca...
A menina deu uma risada gostosa.
— Qual paca, nem pêra paca, vovó! Suba!
— Então, algum veado — lembrou a velha, começando a arregalar os olhos.
— Suba, vovó!
— Porco-do-mato, será possível?
— Suba, suba!
Dona Benta principiou a abrir a boca.
— Então foi capivara...
— Vá subindo, vovó!
A boa senhora não sabia como subir além duma capivara, que era o maior animal existente por ali. Narizinho, então, chegou-se para ela e disse, fazendo uma careta de apavorar:
— Uma onça, vovó!
O susto de Dona Benta foi o maior da sua vida — tão grande que caiu sentada, com sufocação, exclamando:
— Nossa Senhora da Aparecida! Esta criançada ainda me deixa louca...
Mais corajosa, a negra aproximou-se, viu que era mesmo onça e:
— O mundo está perdido, sinhá — murmurou, de mãos postas. — É onça mesmo...
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continua ... III – Os habitantes da mata se assustam
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_San
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sábado, 18 de junho de 2011
Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrinho) II - A volta para casa
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