terça-feira, 28 de junho de 2011

José Faria Nunes (A Pessoinha)


Borgelândia, cidade histórica dos tempos do império. A rodoviária mais parece cena de filme de terror. Tudo velho e sujo: dependências de administração, guichês e uma lanchonete em cima, com acesso por mal conservadas escadarias. Embaixo, os boxes dos ônibus e estacionamento. Chega ônibus, sai ônibus, menos o que vem da capital. Impaciente, Danilo caminha de um lado para outro. Vai ao bar do outro lado da rua, volta, vai ao banheiro, aos boxes de embarque e desembarque. O ônibus já tem mais de hora de atraso. A passageira que Danilo espera é gente importante, cunhada do senador amigo do prefeito. Danilo tem que fazer das tripas, coração, e esperar. Levá-la para Carneirópolis, pequena cidade a umas duas horas dali. Sendo quem é a passageira, o prefeito jamais permitiria que ela fizesse aquele trajeto de ônibus, chão batido em boa parte da estrada.

Emprego difícil, Danilo reconhece que em suas condições tem que agüentar todo tipo de imposição. Até sujeitar-se, mesmo fora do horário de trabalho, a ficar ali parado, a esperar por alguém de quem apenas sabe o nome.

- Dona Rosenilda – disse o prefeito.

Danilo sabe que foi ele o escolhido para buscar a preciosa encomenda por ser, na equipe de motoristas, o de mais fino trato. Concluiu o ensino médio pelo projeto EJA. Se parece privilégio, para ele é mais castigo. Preferiria estar em casa com a família ou no Bar do Guim jogando uma canastrinha.

Na Prefeitura todos têm horário de chegar e de sair do trabalho. Os motoristas, assim como Danilo, não. Pior! Não recebem horas extras. Reclamar à Justiça do Trabalho? Nem pensar. Vai pra rua e ainda fica queimado. Ninguém mais lhe daria emprego.

- Ufa! Até que enfim! – Exclama Danilo, aliviado com a chegada do ônibus.

O carro, um Santana herdado da administração anterior, desliza suave e rápido pelo asfalto recapeado na véspera das eleições do primeiro domingo de outubro. Ao lado do motorista, a passageira permanece calada, desde a rodoviária. Poucas palavras trocaram.

- O prefeito disse que a senhora se chama Rosenilda.

- Roseni. Pode me chamar Roseni. Acho melhor. E não precisa me chamar “senhora”. Gosto de respeito, mas pode me chamar apenas Roseni.

Fala em tom terminativo e de autoridade. Danilo percebe a conveniência de permanecer calado. Como lhe ensinou o pai, deve-se falar com estranhos apenas quando tiver algo para dizer melhor que o silêncio. Vale a receita do velho.

Mudos, olham para o asfalto à frente descortinando-se pelo farol alto do carro que corta a escuridão. Ao longe, fagulhas de luz acendem fdaíscas de luz no céu. Daqui a pouco serão labaredas, prenúncio de tempestade.

Embora plantações e pastagens estejam necessitando de chuva, Danilo torce para que ela espere que eles cheguem primeiro. No asfalto, a chuva não seria problema. Na estrada de chão, a situação é outra. Há uns trechos críticos. Poderão encravar.

Os raios riscam o céu com mais intensidade e agora mais perto. Os trovões ressoam, como se o seu controlador estivesse nervoso. O motorista imagina o pior, a chuva deve chegar logo. E depois só Deus sabe do que poderá acontecer.

Enquanto a passageira dorme - ou finge dormir – Danilo percebe, pelo retrovisor, a luz alta dos faróis de outro veículo. Ele avança rápido e, em segundos, como um raio ou uma nave espacial, ultrapassa-os e some de vista à frente.

A placa de sinalização anuncia a proximidade da entrada para Carneirópolis. Danilo desacelera o veículo que perde velocidade. Seta para a esquerda, o carro quase parando, adentra-se pela estrada de chão que, na campanha eleitoral, ganhou promessa de asfaltamento pelo governador que se reelegeu.

Agora acordada a passageira ilustre reclama das bacadas:

- O senhor não pode ter mais cuidado?

- Tô fazendo o possível, dona. É que os buracos são grandes e muitos.

Ela fica a resmungar. Danilo finge nada ouvir, até porque nada tem a dizer e nem a ver com aquela situação. Ele mesmo tem suas críticas aos políticos, mas não as exterioriza fora da intimidade dos amigos. Questão mais de prudência e um pouco de respeito e reconhecimento pelo emprego. O mísero emprego que lha garante o aluguel do barraco, água, luz e o alimento para a mulher e três filhos. Lazer? Dinheiro não sobra.

Pela estrada de chão, agora já a alguns quilômetros da rodovia asfaltada, sem mais e sem menos o carro perde força do motor. Danilo reluta mas o motor apaga. E o carro pára.

Em volta o cerrado ermo que ele conhece bem. Estão pertos do cemitério dos heróis da guerra do Paraguai. O cemitério não o incomoda. Se tiver que ter medo, tem dos vivos, não dos mortos. Mortos não voltam para fazer mal a ninguém. Nem mal nem bem. Eles estão na deles, bem ou mal, onde quer que estejam. Danilo até duvida se há outra vida após a morte. Ainda que haja, nada tem a temer. Não faz mal a ninguém, vive em paz com todos. Alguns probleminhas com os credores, mas nada sério. Verdade que matou um homem, porém em legítima defesa. Até o promotor pediu sua absolvição. Ganhou só bolas brancas. Até a família da vítima reconheceu que ele, Danilo, era o menor culpado. Por que, então, se preocupar?

Chave de ignição e pés no acelerador. Nada consegue. Tem que dar um jeito. Ali parado no meio do cerrado é que não podem ficar. Ainda mais com aquela mulher importante, cunhada do senador. O que o prefeito iria dizer? Talvez até pudesse custar-lhe o emprego. Não, o emprego não. Ele não tinha culpa. Fez revisão no carro antes de sair de viagem, tudo nos conformes. E o prefeito iria acreditar nele? O que aquela mulher poderia dizer? Ali parados no cerrado, sem água, sem comida. Não comeram na rodoviária, preferiram ganhar tempo, chegar logo em casa. Sede não vão passar, o córrego está perto. O que não pode é ficar ali no mato sem cachorro.

Pega a lanterna no porta luvas, desce, vai ver o motor. Abre o capô, tudo lhe parece normal. Ainda inclinado sobre o motor, sente um toque em suas costas. Deve ser a passageira querendo lhe dizer algo, talvez pedir um tempinho para fazer xixi. Vira para dar-lhe atenção. Com a luz da lanterna vê em sua frente uma criança com jeito e trejeitos estranhos. A cara, uma mistura de chinês, coreano, japonês e de extra-terrestre. Talvez nada disso. Lembra-se da personagem que ele viu no filme da TV.

Perde a voz e as forças. Sem ação fita aquela pessoinha. Ato contínuo a pessoinha começa a mudar de cor, ganha uma áurea de luz e ele se sente como se adormecesse. Ao retornar-se à consciência, libertando-se da hipnose, percebe estar em um ambiente estranho com máquinas estranhas, pessoas estranhas, fazendo-lhe lembrar um laboratório. As pessoas, algumas como a Pessoinha, outras pareciam pessoas normais e falantes lusófonos. Ele próprio, Danilo, se sente estranho. Roupas diferentes das suas. O corpo, a princípio bambo, aos poucos ganha energia, uma energia que antes desconhecia. Ação do laser vindo de um ponto no teto direto a um botão de seu estranho casaco, mais parecido uma camisola de hospital.

Sente-se bem quando surge novamente a Pessoinha à porta e, com gesto, indica-lhe que o acompanhe. Ele segue a Pessoinha e, sem nada entender. Mal sente os passos. Como em um sonho. Mas convicto de que é real, segue como se em uma onda rumo à praia. Desliza suave, tranqüilo, apenas a mente percebe a transição. Como se levitasse.

Vê-se novamente junto ao carro. Â Pessoinha desapareceu como uma sombra ao chegar a luz. Entra, liga-o. A passageira ilustre nada percebe. Imagina ter sido uma simples parada para o motorista tirar água do joelho. E prosseguem para Carneirópolis.

Uma aeronave a esbanjar luz corta o espaço sobre eles. Velocidade escomunal. Seria um Miraje da base de Anápolis?

No veículo a caminho de Marte a tripulação comenta o êxito da pesquisa em curso na Terra. Em Carneirópolis o prefeito espera a convidada com uma festa. Danilo vai para casa jantar na companhia da esposa e dos filhos.

A pessoinha continua em sua memória como em um sonho.

Fontes:
Texto enviado pelo autor

Imagem obtida na Universidade Federal de Juiz de Fora

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