Dos moradores do sítio de Dona Benta o mais andejo era o Marquês de Rabicó. Conhecia todas as florestas, inclusive o capoeirão dos Taquaruçus, mato muito cerrado onde Dona Benta não deixava que os meninos fossem passear. Certo dia em que Rabicó se aventurou nesse mato em procura das orelhas-de-pau que crescem nos troncos podres, parece que as coisas não lhe correram muito bem, pois voltou na volada.
— Que aconteceu? — perguntou Pedrinho, ao vê-lo chegar todo arrepiado e com os olhos cheios de susto. — Está com cara de Marquês que viu onça...
— Não vi, mas quase vi! — respondeu Rabicó, tomando fôlego. — Ouvi um miado esquisito e dei com uns rastos mais esquisitos ainda. Não conheço onça, que dizem ser um gatão assim do tamanho dum bezerro. Ora, o miado que ouvi era de gato, mas muito mais forte, e os rastos também eram de gato, mas muito maiores. Logo, era onça.
Pedrinho refletiu sobre o caso e achou que bem podia ser verdade. Correu em procura de Narizinho.
— Sabe? Rabicó descobriu que anda uma onça no capoeirão dos Taquaruçus!...
-— Uma onça? Não me diga! Vou já avisar vovó...
— Não caia nessa — advertiu o menino. — Medrosa como ela é, vovó ou morre de medo ou trata de nos levar hoje mesmo para a cidade. Muito melhor ficarmos quietos e caçarmos a onça.
A menina arregalou os olhos.
— Está louco, Pedrinho? Não sabe que onça é um bicho feroz que come gente?
— Sei, sim, como também sei que gente mata onça.
— Isso é gente grande, bobo!
— Gente grande!... — repetiu o menino, com ar de pouco-caso. — Vovó e Tia Nastácia são gente grande e, no entanto, correm até de barata. O que vale não é ser gente grande, é ser gente de coragem, e eu...
— Bem sei que você é valente como um galo garnisé, mas olhe que onça é onça. Com um tapa derruba qualquer caçador, diz Tia Nastácia.
O menino bateu no peito com arrogância.
— Pois quero ver isso! Vou organizar a caçada e juro que hei de trazer essa onça aqui para o terreiro, arrastada pelas orelhas. Se você e os outros não tiverem coragem de me acompanhar, irei sozinho.
A menina arrepiou-se de entusiasmo diante de tamanha bravura e não quis ficar atrás.
— Pois vou também! — gritou. — Uma menina de nariz arrebitado não tem medo de coisa nenhuma. Vamos convidar os outros.
Saíram os dois em busca dos demais companheiros. O primeiro encontrado foi o Marquês de Rabicó, que estava na porta da cozinha, ocupadíssimo em devorar umas cascas de abóbora.
— Apronte-se, Marquês, para tomar parte na expedição que vai caçar a onça aparecida lá na mata.
Aquela notícia fez o leitão engasgar com a casca de abóbora que tinha na boca.
— Caçar a onça? Eu? Deus me livre!...
Pedrinho impôs energicamente:
— Vai, sim, ainda que seja para servir de isca, está ouvindo, seu covarde?
Rabicó tremia que nem geléia fora do copo.
— Um fidalgo! — prosseguiu Pedrinho, em tom de desprezo. — Um filho do grande Visconde de Sabugosa a tremer assim de medo! Que vergonha...
Rabicó não replicou. Bebeu um gole d’água para acalmar os nervos e voltou às suas cascas de abóbora com esta idéia na cabeça: “No momento hei de dar um jeito qualquer. Não tem perigo que eu me deixe comer cru pela onça”.
O luxo dos leitões é serem comidos assados ao forno, com rodelas de limão em redor e um ovo cozido na boca...
O segundo convidado foi o Visconde de Sabugosa, o qual aceitou a proposta com aquela dignidade e nobreza que marcavam todos os seus atos de fidalgo dos legítimos. Iria para vencer ou morrer. Viscondes da sua marca mostram o que valem justamente nos momentos perigosos.
Depois convidaram Emília, que recebeu a idéia com palmas.
— Ora, graças! — exclamou. — Vamos ter enfim uma aventura importante. A vida aqui no sítio anda tão vazia que até me sinto embolorada por dentro. Irei, sim, e juro que quem vai matar a onça sou eu...
Esse dia e o outro foram passados em preparativos. Pedrinho levaria uma espingarda que ele mesmo tinha fabricado escondido de Dona Benta, com cano de guarda-chuva e gatilho puxado a elástico. Estava carregada com a pólvora duns pistolões sobrados da última festa de São Pedro.
A arma que Narizinho escolheu foi a faca de cortar pão, instrumento mestiço de faca e serrote.
O Visconde recebeu um sabre feito de arco de barril, bastante pontudo, mas danado para entortar. Em vista da sua importância e do seu título, também recebeu o comando da expedição.
— E você, Emília, que arma leva? — perguntou Narizinho.
— Levo o espeto de assar frangos. Tenho mais fé naquele espeto do que nas armas de vocês todos.
Restava o Marquês. Como fosse um grande medroso, em vez de arma Pedrinho deu-lhe arreios. Rabicó iria puxando um canhãozinho feito dum velho tubo de chaminé, que o menino havia montado sobre as rodas do seu carrinho de cabrito. Para carregar o canhãozinho foi necessário empregar a pólvora de três pistolões. Servia de bala uma pedra bem redondinha, encontrada nos pedregulhos do rio. Indo atrelado ao canhão, o grande Marquês ficaria impedido de fugir.
No dia marcado tomaram o café com farinha de milho da manhã e saíram na ponta dos pés, para que as duas velhas nada percebessem. Passaram a porteira do pasto, atravessaram a mata dos Tucanos Vermelhos e de lá seguiram rumo ao capoeirão da onça.
Rabicó não havia mentido. Os rastos da onça estavam impressos na terra úmida. Ao fazerem tal descoberta o coração dos cinco heróis bateu mais apressado. Dos cinco, não; dos quatro, porque, como todos sabem, Emília não tinha coração.
— Que é isso, Pedrinho — disse a boneca, notando a palidez do chefe. — Será medo?
— Não é medo não, Emília. É...
— É... receio, eu sei — caçoou a terrível bonequinha.
— Não brinque comigo, Emília! — gritou Pedrinho, avermelhando de raiva. — Você e toda gente sabe que só tenho medo duma coisa neste mundo — maribondo. De mais nada, hem?
O Visconde, que havia trazido a tiracolo o binóculo de Dona Benta, ajustou-o aos olhos para examinar “detetivamente” os rastos.
— É de onça, sim, e de onça-pintada — disse ele.
— Como sabe?
— Estou vendo no chão dois pêlos, um amarelo e outro preto.
Aquela confirmação de que era onça mesmo, e das grandes, desanimou profundamente Rabicó. Gotas de suor frio começaram a pingar da sua testa. Teve ímpetos de soltar-se do canhãozinho e disparar para casa; só não o fez de medo que Pedrinho lhe despejasse no lombo a carga de chumbo destinada à onça. E resignou-se ao que desse e viesse.
Orientados pelos rastos da onça, os caçadores não podiam errar. Era seguir na direção deles, que fatalmente dariam com a bicha.
— Avante, Sabóia! — gritou Pedrinho, espichando no ar a espingarda como se fosse espada.
— Avante! — repetiram todos os outros, menos Rabicó, que estava sem fala.
E com o maior entusiasmo os heroizinhos foram caminhando durante meia hora.
Súbito, o Visconde, que ia na frente, de binóculo apontado, gritou com voz firme:
— A onça...
— Onde? — indagaram todos, ansiosos.
— Lá longe, naquela moita — lá, lá... Realmente, alguma coisa se mexia na moita indicada e não tardou que uma enorme cara de onça aparecesse por entre as folhas, espiando para o lado dos cinco heróis.
Pedrinho dispôs tudo para o ataque. Assestou na direção da moita o canhãozinho e ordenou ao artilheiro Rabicó, enquanto o desatrelava:
— Fique nesta posição. Quando ouvir a voz de “Fogo!” risque um fósforo, acenda a mecha e dispare.
— Disparo para casa? — perguntou o artilheiro, mais trêmulo do que uma fatia de manjar branco.
— Dispare o canhão, idiota! — berrou Pedrinho. Enquanto isso, a onça deixava a moita e com o andar manhoso dos gatos dirigia-se, agachada, para o lado deles. Era o momento. O Visconde ergueu a espada e com voz grossa de comandante superior deu um berro de comando:
— Fogo!
Rabicó, todo treme-treme, não conseguiu nem riscar o fósforo. Foi preciso que Pedrinho viesse ajudá-lo. Por fim riscou-o e deitou fogo à mecha. Ouviu-se um chiado e logo depois um tiro soou — Pum! Mas um tiro chocho que não valeu nada. A bala de pedra rolou a dois passos de distância, imaginem: Havia falhado a artilharia, na qual eles depositavam tantas esperanças.
Pedrinho então disparou a sua espingardinha. Outro tiro chocho que nada valeu e só serviu para irritar a fera. Viram-na arreganhar os dentes e apressar a marcha na direção dos atacantes.
A situação tornava-se muito séria e Pedrinho, desapontado com o nenhum efeito das armas de fogo, berrou a plenos pulmões:
— Salve-se quem puder!
Foi uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores. Felizmente havia ali um pé de grumixama que dava para abrigar o grupo inteiro. Nele treparam, sem dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emília. Já o velho Visconde embaraçou as pernas na bainha da espada e com toda a sua importância estendeu-se no chão, ao comprido. Foi preciso que o menino o pescasse com o gancho dum galho seco.
Rabicó fez coisa de que ninguém nunca o julgaria capaz: botou-se à árvore que nem gato e conseguiu enganchar-se na forquilha do primeiro tronco. Pedrinho e Narizinho, que estavam no galho acima, puderam agarrá-lo pela orelha e içá-lo fora do alcance da onça. Quando a fera chegou, estavam já todos muito bem empoleirados e livres dos seus botes.
A onça, desapontadíssima, ali permaneceu, sentada sobre as patas de trás, com os olhos fixos nos caçadores que a tinham logrado. Parece que sua intenção era ficar de guarda até que eles descessem.
— Espera que te curo — disse Pedrinho, lembrando-se que trazia no bolso um pouco da pólvora dos pistolões. Tomou um punhado e, ajeitando-se no galho que ficava bem a prumo sobre a onça, derramou-lhe a pólvora em cima dos olhos.
A idéia valeu. Completamente cega pela pólvora, a onça pôs-se a corcovear que nem doida, enquanto esfregava os olhos com as munhecas, como se quisesse arrancá-los.
— É hora! Avança, macacada! — gritou Pedrinho, escorregando pela árvore abaixo.
Todos o imitaram. Apanharam as armas e se arrojaram contra a fera com verdadeira fúria. Narizinho esfregou-lhe a faca no lombo, como se a onça fosse pão e ela quisesse tirar uma fatia. O Visconde conseguiu, depois de várias tentativas, enterrar-lhe no peito o seu sabre de arco de barril. Emília fez o mesmo com o espeto de assar frango. Pedrinho macetou-lhe o crânio com a coronha da sua espingarda. Até Rabicó perdeu o medo e, depois de carregar de novo. o canhão, deu-lhe um bom tiro à queima-roupa.
Assim atacada de todos os lados, a onça não teve remédio senão morrer. Estrebuchou e foi morrendo. Quando deu o último suspiro, Pedrinho, no maior entusiasmo de sua vida, entoou um canto de guerra:
— Ale guá, guá, guá...
E todos responderam em coro:
— Hurra! Hurra! Pica-Pau Amarelo!...
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continua ... II – A Volta para Casa
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_San
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