quinta-feira, 23 de junho de 2011

Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrinho) VI – Aparece uma nova menina


De noite houve discussão das hipóteses que poderiam dar-se no dia seguinte. Dona Benta disse:

— Concordo que, se estivermos sobre pernas de pau, as onças não poderão apanhar-nos. Mas depois? E se elas resolverem ficar por aqui até que nos cansemos e sejamos forçados a descer?

Era uma hipótese bastante provável, que não havia ocorrido a Pedrinho. Sim; se as onças ficassem por lá, como era?

— Hão de cansar-se e ir-se embora — sugeriu Narizinho. — Quando a fome apertar, não fica nenhuma aqui.

— E se se revezarem? — lembrou Dona Benta. — E se, enquanto a metade das onças for caçar, a outra metade ficar montando guarda?

Pedrinho não soube responder, nem Narizinho, nem o Visconde. Ficaram todos de nariz caído, pensando nessa terrível hipótese. Quem respondeu foi a Emília, que andava toda misteriosa, piscando cavorteiramente, como quem tem no bolso a solução dum grande problema.

— Não tenham medo de coisa nenhuma — disse ela, por fim. — Arranjei umas granadas de mão, ótimas para espantar onças.

— Granadas de mão? — repetiu Pedrinho franzindo a testa. — Que história é essa, Emília?

— Uma surpresa. Preparei as granadas com a ajuda dos meus besouros. Fiz cinco, número suficiente para espantar até cem onças.

— E onde estão?

— No telhado.

— Por que no telhado?

— Botei-as lá para estarem ao meu alcance na hora em que as onças aparecerem e nós estivermos sobre as pernas de pau. Também botei lá pão com manteiga, um guarda-chuva e mais coisas. Pode nos apertar a fome, pode chover...

Narizinho estava intrigadíssima com o negócio das granadas.

— Explique isso melhor, Emília. Que granadas são essas?

— Nada posso dizer. É segredo. Só adiantarei que são de cera e do tamanho de laranjas-baianas.

Granadas de cera, do tamanho de laranjas-baianas! Ou a boneca estava de miolo mole... ou... Em todo o caso, como a Emília era uma danadinha capaz de tudo, os meninos e as velhas sossegaram um pouco mais.

A razão de Tia Nastácia haver desistido das pernas de pau era que não acreditava muito no tal assalto das onças. “Isso há de ser imaginação dessas crianças”, refletia de si para si. “Os diabretes vivem com a cabeça quente e inventam coisas para atormentar os mais velhos. Não acredito.”

Dona Benta igualmente não acreditou — no princípio. Depois, lembrando-se de outras coisas inda mais espantosas que já tinham acontecido, achou melhor acreditar.

— Qual nada, sinhá! — insistiu a negra. — Onde já se viu onça andar em bando a atacar casa de gente? Estou com setenta anos e nunca ouvi falar de semelhante coisa.

— Nem eu. Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma gentinha — e aí estão a Emília e o Visconde de Sabugosa.

— Lá isso é — resmungou a preta, pendurando o beiço.

— Se isso é, como vai você arranjar-se amanhã, se as onças vierem mesmo e nos atacarem aqui?

— Como vou me arranjar? — repetiu Tia Nastácia, cocando a cabeça. — Não sei. Francamente não sei. Na hora veremos...

Ela continuava com a esperança de que o tal ataque das cinqüenta onças não passasse duma “pulha” de Pedrinho para meter medo aos “mais velhos”.

Foram dormir. Cada qual sonhou pelo menos com uma onça. Emília, porém, teve sonhos cor-de-rosa, a avaliar-se pelos sorrisos que animaram seu rostinho durante a noite inteira. É que estava sonhando com as suas famosas granadas de cera...

Pela madrugada alguém bateu na porta da rua — toque, toque, toque... Pedrinho pulou da cama, assustado. “Seriam já as onças?” Os outros também se ergueram, inclusive Dona Benta e Tia Nastácia. Reuniram-se todos na sala de jantar, à escuta.

Nova batida — toque, toque, toque...

— Parece batida de nó de dedo — sussurrou Narizinho.

— Onça não bate assim.

Pé ante pé, a menina aproximou-se da porta e espiou pelo buraco da fechadura. Não viu onça nenhuma. Em vez disso viu... outra menina!

— Uma menina! — exclamou Narizinho, batendo palmas.

— Assim do meu tamanho, lindinha! Quem sabe se não é Capinha Vermelha?... Abro ou não a porta, vovó?

— Pois se é uma menina, abra. Veja primeiro se não vem algum lobo atrás, como aquele que acompanhou Capinha.

Narizinho espiou de novo e não viu lobo nenhum. Em vista disso, abriu. Uma menina muito desembaraçada, da mesma idade que ela, entrou.

— Boa madrugada para vocês todos! Boa madrugada, Dona Benta! Boa madrugada, Tia Nastácia!

A menina conhecia a todos da casa e, no entanto, não era conhecida de nenhum dali. Quem seria?

— Quem é você, menina? — perguntou Dona Benta, meio desconfiada.

— Não me conhecem? — tornou a desconhecidazinha com todo o espevitamento. — Pois sou a Cléu...

Foi uma alegria geral. Não havia ali quem não conhecesse de nome a famosa Cléu, que falava pelo rádio e de vez em quando escrevia cartas a Narizinho, dando idéias de novas aventuras.

— Viva, viva a Cléu! — exclamaram todos, numa grande alegria.

— Pois é — disse a menina sentando-se sobre a mesa — cá estou para conhecê-los pessoalmente. Desde que li as primeiras aventuras de Narizinho, fiquei doida por entrar para o bando. Moro em São Paulo, uma cidade muito desenxabida, com um viaduto muito feio e gente apressada, passeando pelas ruas. Enjoei do tal São Paulo e vim morar aqui. Fiquem certos duma coisa: o único lugar interessante que há no Brasil é este sítio de Dona Benta.

Todos mostraram-se contentíssimos. Dona Benta, entretanto, disse:

— Mas veio em má ocasião, Cléu. Imagine que justamente hoje o sítio vai ser atacado por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato.

— Ótimo! — respondeu a menina. — Um dos meus sonhos sempre foi ser atacada por um exército de onças e irarás e cachorros-do-mato, de modo que adivinhei vindo em momento tão propício...

— Ché... — exclamou lá consigo Tia Nastácia. — Agora é que o sítio pega fogo mesmo. Menina de “propícios”... Credo!

O dia estava clareando e, como as onças podiam chegar dum momento para outro, Pedrinho tratou de ensinar a Cléu o uso das pernas de pau, explicando-lhe que fora esse o meio que descobrira para se defenderem do ataque.

Tia Nastácia foi para a cozinha acender o fogo para o café. Estava de olho parado, pensando, pensando...

— A Cléu aqui! — murmurava ela, olhando para o fogo. — Ché…
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continua ... VII – O assalto das onças
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_San

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