A vida no sítio mudou depois da entrada do rinoceronte para o bando. No começo Narizinho e Pedrinho não podiam esconder certo medo. Quanto a Dona Benta e Tia Nastácia, isso nem é bom falar. Tremiam de pavor sempre que à tarde, conforme seu costume, o paquiderme vinha da Figueira-Brava postar-se no terreiro para longas prosas com a Emília. Nem espiar pela janela espiavam, as coitadas. Mas os meninos espiavam. Regalavam-se de espiar.
O rinoceronte vinha e dava um bufo. Emília e o Visconde largavam incontinenti o que estivessem fazendo e iam na volada ao encontro dele, para ouvirem histórias da África. Depois se punham os três a brincar de esconde-esconde, de chicote-queimado, de pegador. Emília logo inventou jeito de montar a cavalo no chifre dele para passear pelo terreiro. O Visconde puxava o monstruoso paquiderme por uma cordinha atada à orelha.
— Que danada esta Emília! — dizia Narizinho, lá da sua janela, com uma inveja louca de fazer o mesmo. — Não tem medo de coisa nenhuma...
— Grande milagre! — retorquia Pedrinho, com uma ponta de inveja. — Se eu fosse de pano, como ela, até em três rinocerontes montava ao mesmo tempo.
— Não sei, não sei, Pedrinho — intervinha a Cléu, fazendo cara de dúvida. — Emília é mesmo uma exceção completa. Isso de não ter medo me parece o de menos. O que me assombra é o jeito que ela tem para tudo. Repare que neste caso do rinoceronte foi quem fez sempre o primeiro papel. Foi quem o descobriu, foi quem o amansou, foi quem passou a perna nos caçadores e os botou daqui para fora a fugirem como veados. Ora, isto é muito para uma boneca, não acha?
Pedrinho, que estava namorando a Cléu, não teve remédio senão achar que sim.
Numa dessas vezes Tia Nastácia criou coragem e entreabriu muito devagarinho a janela. Espiou pela fresta.
— Nossa Senhora da Aparecida! — exclamou, com os olhos pulando da cara. — Venha ver, sinhá! A Emília a cavalo no tal boi de um chifre só e o Visconde puxando ele por uma cordinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Credo!...
Dona Benta espiou e também assombrou-se.
— Realmente! Para mim a Emília é alguma fadinha que anda pelo mundo disfarçada em boneca de pano. Passear a cavalo num rinoceronte! Vá a gente contar isso lá fora — ninguém acredita, nem pode acreditar...
— E o Visconde, sinhá, repare o jeitinho dele, puxando o boi...
— Não é boi, Nastácia, é ri-no-ce-ron-te — emendou Dona Benta.
— Para mim é boi — insistiu a negra. — Não sei dizer esse nome tão comprido e feio. Estou velha demais para decorar palavras estrangeiras. Mas repare no Visconde, sinhá. Puxa o boi da África como se estivesse puxando um boizinho de chuchu, daqueles que Seu Pedrinho costuma fazer...
E as duas ficavam de boca aberta, admirando aqueles assombros.
Um dia Narizinho gritou lá da sua janela:
— Emília, estou com vontade de perder o medo e montar nele também. Que acha?
— Pois venha, boba! Não há bicho mais manso que este. A História natural de Dona Benta está errada. Não vê como faço dele gato e sapato?
— Sim, mas você é de pano e eu não. Sou de carne...
— Por dentro; por fora é de pano como eu — os vestidos. Faça de conta que é de pano inteirinha e venha. Ele tem reparado muito na sua ausência, está até sentido. Venha e diga a Pedrinho e Cléu que venham também.
Narizinho, Pedrinho e Cléu entreolharam-se com uma vontade louca de aceitar o convite.
— Vamos? -— propôs Narizinho, já meio decidida.
— Vamos! — responderam os outros, corajosamente. Minutos depois estavam os três repimpados no lombo do rinoceronte.
— Falta Rabicó! — berrou a Emília. E pôs-se a chamar: — Rabicó! Rabicó! Não seja bobo, venha também!...
Mas Rabicó estava a duzentos metros dali, no pasto, espiando a cena por detrás dum capim. Não vê que ia!
As brincadeiras com o rinoceronte repetiam-se diariamente, por horas. Além das passeatas, inventaram novas coisas, como, por exemplo, fazê-lo puxar o carrinho de cabrito, com um passageiro de cada vez porque não cabiam dois. Ora ia Narizinho, ora o menino, ora a Cléu. Emília nunca deixava o seu posto no chifrão do monstro. Aquele lugar era dela só.
Um dia Tia Nastácia não resistiu. Foi para o terreiro ver de perto a brincadeira. Quando virou o rosto, viu Dona Benta que vinha vindo. Dona Benta também não resistira à tentação.
Os meninos fizeram-lhes uma grande festa.
— Ora, graças que se estão civilizando! — berrou Narizinho. — Viva vovó! Viva Tia Nastácia!
Nisto, Cléu, que estava dentro do carrinho, pulou fora e disse:
— Chegou sua vez, Dona Benta. Suba!
Era um despropósito aquilo, coisa para desmoralizar a boa velha para o resto da vida. Apesar disso a tentação foi forte e, como Cléu a ia empurrando, Dona Benta de súbito decidiu-se. Ajuntou a saia e, sem olhar para Tia Nastácia (de vergonha), subiu ao carrinho.
— Viva! Viva vovó! — berraram, do alto do paquiderme, os meninos. — Toca, Emília! Puxa, Visconde!
Emília deu no rinoceronte com o seu chicotinho e o Visconde o puxou quatro vezes até à porteira, ida e volta. Se houvesse por ali um aparelho de cinema podia ser tirada a melhor fita do mundo...
Nesse ponto da brincadeira, porém, aconteceu uma atrapalhação. Dois homens a cavalo surgiram na estrada. Mais que depressa Dona Benta pulou fora do carrinho e correu para a varanda.
Os homens pararam na porteira e pediram licença para entrar. Entraram. Apearam-se. Dirigiram-se para a varanda.
— Desejamos falar com a dona da casa — disseram.
Dona Benta adiantou-se.
— Sou eu a dona da casa. Que é que Vossas Senhorias desejam?
Um dos homens era alemão. O outro, brasileiro. Foi este quem falou.
— Minha senhora — disse ele —, quero apresentar a Vossa Excelência o Senhor Fritz Müller, proprietário do circo de cavalinhos que está no Rio de Janeiro. O Senhor Müller é dono dum rinoceronte que fugiu de lá faz uns meses. Depois de longas pesquisas descobriu que o animal estava escondido aqui e veio comigo reclamá-lo. Sou o seu advogado.
O rinoceronte reconheceu o Senhor Müller e pendurou o focinho, muito triste, já sem vontade de brincar.
— Que é que há? — perguntou-lhe a boneca, ao ouvido.
— Aquele homem louro é o meu dono — respondeu o paquiderme — e veio buscar-me. Estou triste porque gosto muito mais daqui do que do circo...
Emília abespinhou-se toda, lançando um olhar terrível para os dois intrusos. Refletiu uns instantes e depois disse ao animalão:
— Não se aborreça. Darei um jeito desses piratas fugirem daqui ainda mais depressa que os caçadores. — Disse e desceu, dirigindo-se para a varanda, onde ficou atrás duma cadeira, escutando a conversa dos homens com a velha.
— Pois não haja dúvida — dizia Dona Benta. — Se o animal é seu, pode levá-lo, apesar de que está muito acostumado aqui e não nos incomoda em nada.
— Está bem — disse o alemão. — Vou levá-lo já.
Ao ouvir tais palavras Emília não se conteve. Pulou de trás da cadeira, plantou-se diante do homem, de mãozinhas na cintura, e disse:
— A coisa não vai assim, meu caro senhor! Não basta ir dizendo que o rinoceronte é seu. Tem que provar que é seu, sabe?
O alemão ficou espantadíssimo daquele prodígio: uma bonequinha falando, e falando daquele jeito, com tal arrogância.
— Quem é esta “senhorrita”? — perguntou ele a Dona Benta.
— Pois é a Emília, Marquesa de Rabicó; nunca ouviu falar dela? Foi quem descobriu o rinoceronte no capoeirão dos Taquaruçus. Depois o vendeu a Pedrinho. Depois o amansou e agora passa o dia a brincar com ele.
O alemão estava cada vez mais assombrado. Apesar de ser homem vivido, e de ter corrido o mundo inteiro com o seu circo, jamais observara fenômeno igual: uma bonequinha tão pernóstica. Quis continuar a falar e não pôde. Estava engasgado. Quem falou dali por diante foi o seu companheiro.
— Sim, sim, minha senhorinha — disse este —, o rinoceronte pertence aqui ao meu amigo Müller, que o vem reclamar. Vejo que tanto a senhorinha como os outros meninos já estão acostumados com o paquiderme. Infelizmente somos obrigados a levá-lo para o circo.
Emília empertigou-se mais ainda.
— Vamos por partes — disse ela. — Antes de mais nada, quero que o senhor doutor me prove que ali o Senhor Müller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas acho que em direito o que vale são as provas.
Foi a vez de o advogado abrir a boca, de espanto. A tal bonequinha sabia discutir como um perfeito rábula.
— Toda gente deste país sabe que o rinoceronte pertence ao Senhor Müller — disse ele. — Os jornais deram mil notícias a respeito de sua fuga e da busca que os homens do detetive X B2 andaram fazendo pelo Brasil inteiro. É um fato de domínio público.
— Perfeitamente — replicou Emília. — Não nego que esse cara-de-cavalo-melado...
— Emília! — repreendeu Dona Benta. — Mais modos, hem?... — ... seja dono dum rinoceronte. Mas quero que prove que o rinoceronte dele é este, está entendendo?
O advogado deu uma risadinha amarela.
— Muito fácil provar, bonequinha. No Brasil não há rinocerontes. O Senhor Müller foi o primeiro homem que trouxe um para cá. Esse um fugiu. Em seguida aparece este rinoceronte por aqui. Logo, o presente rinoceronte é o mesmo rinoceronte do referido Senhor Müller.
— Isso nunca foi prova, nem aqui nem na casa do diabo — contestou Emília. — Quero prova de verdade. Alguma marca, algum sinal de nascença...
— A marca é aquele chifre único que ele tem na testa — disse o advogado, piscando o olho, como se Emília não soubesse que todos os rinocerontes daquela espécie possuem sempre um chifre só.
Emília não respondeu. Achou um grande desaforo querer aquele idiota fazê-la de boba. Em vez de responder, disse apenas:
— Espere aí.
O advogado esperou, com um sorriso nos lábios, certo de que a tinha vencido na argumentação. Enquanto esperava, ia trocando olhares velhacos com o Senhor Müller.
Emília foi mexer nos guardados de Pedrinho e trouxe uma pitada de pó de pirlimpimpim num pires.
— Vamos resolver esta questão dum outro modo — disse ela, ao voltar. — Tenho aqui este tabaco que vou dividir em duas porções. O senhor toma uma pitada e ali o “cara-melada...”
— Emília!... — repreendeu de novo Dona Benta.
— ... toma outra. Se não espirrarem, é que o rinoceronte é o mesmo que andam procurando.
O advogado e o alemão acharam muita graça naquilo e, sem desconfiança nenhuma, resolveram tomar a pitada de pó de pirlimpimpim, certos de que não espirrariam. Era dose pequena demais para fazer espirrar dois homões como eles, acostumados ao fumo forte. Tomaram a pitada, sorridentes e... fiunnn! — ninguém nunca soube onde foram parar! Sumiram-se no espaço...
A vitória da Emília foi saudada com berros e palmas. Até o rinoceronte aplaudiu com urros, contentíssimo do feliz desfecho do incidente.
Dona Benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Nastácia já estava escarrapachada dentro dele.
— Tenha paciência — dizia a boa criatura. — Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho/Hans Staden. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. III. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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