domingo, 1 de maio de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXIV - O Macaco, a Onça e o Veado


Uma vez uma onça convidou um veado para ir com ela à casa dum compadre. Foram. Como houvesse no caminho um ribeirão a atravessar, a onça enganou o veado, dizendo que não tivesse medo, pois era água rasinha. O veado meteu-se no ribeirão e quase se afogou.

Seguiram. Vendo umas bananeiras logo adiante, a onça propôs:

— Amigo veado, vamos comer bananas. Você sobe e pega as verdes, que são as melhores, e me atira as amarelas, que não valem nada.

O veado subiu, jogou as amarelas para a onça e ficou com as verdes, que não pôde comer. Desceu coro o estômago no fundo, enquanto a onça arrotava de gosto.

Seguiram. Adiante encontraram uns trabalhadores capinando a roca. A onça disse:

— Amigo veado, quem passa junto daqueles homens deve dizer: "Que o diabo os carregue!" É uma saudação que deixa os homens contentíssimos.

O bobo do veado foi e disse aos trabalhadores: "Que o diabo os carregue!" mas os homens, furiosos, soltaram-lhe os cachorros em cima e quase o pegaram. Já a onça ao passar por eles, o que disse foi: "Deus ajude a quem trabalha!" E os homens, muito satisfeitos com a frase, deixaram-na passar sossegadamente.

Adiante a onça viu uma cobrinha coral.

— Olhe, amigo veado, que lindo colar vermelho. Leve-o para pôr no pescoço de sua filha.

Assim que o veado foi pegar aquilo, a cobra deu-lhe um bote, que por um triz o não alcançou.

Finalmente chegaram à casa do compadre. Era quase noite, de modo que depois duma prosinha trataram de dormir. O veado armou uma rede a um canto e logo ferrou no sono. A onça, então, foi pé ante pé ao curral, comeu uma ovelha e trouxe uma cuia de sangue, que derramou em cima do veado. Depois deitou-se e dormiu regaladamente.

De manhã o compadre foi ao curral e percebeu que lhe haviam comido uma ovelha. Desconfiou logo da onça.

— Eu, comer sua ovelha, compadre?

Que idéia! Olhe como estou sem o menor sinal de sangue. Talvez fosse o veado... O compadre olhou para o veado e o viu todo sujo de sangue.

— Ah, ladrão! — e deu-lhe de cacete até matar.

A onça despediu-se do compadre e lá se foi, muito lampeira.

Dias depois convidou o macaco para outra visita ao compadre. O macaco aceitou. Foram. No ribeirão a onça veio com a mesma história:

— Passe sem medo, macaco. A água é rasinha.

Mas o macaco, que tinha sabido da história do veado, não foi na onda.

— Nada! — disse ele. — Passe você primeiro, para eu ver se a água é mesmo rasinha como diz — e a onça não teve remédio senão passar na frente.

Lá nas bananeiras o macaco subiu, mas comeu todas as amarelas e à onça só deu as verdes. Furiosa do logro, a onça foi pensando: "Ah, bicho duma figa! Eu ainda acabo lanhando esse lombo com as minhas unhas!"

Quando chegaram à roça dos trabalhadores, a onça avisou:

— Escute, macaco. A saudação que esses homens gostam é assim: "O diabo leve quem trabalha!" — mas ao passar por eles o macaco disse coisa diversa: "Deus ajude a quem trabalha!" — e os homens, deixaram-no passar.

Quando encontraram a cobrinha e a onça lembrou que era um ótimo colar para a mulher do macaco, este respondeu:

— Está me parecendo muito melhor para pulseira de uma filha de onça! — e não quis saber de pôr a mão na cobra.

Chegaram por fim à casa do compadre. Depois duma prosinha foram deitar-se. O macaco, sabidão, armou sua rede bem alto; deitou-se e fingiu dormir. A onça foi ao curral e comeu outra ovelha, vindo com a cuia de sangue lambuzar o macaco. Mas este arrumou com o pé na cuia, de modo que o sangue caiu em cima da onça.

Indo pela manhã ao curral, o compadre deu pela falta da ovelha.

— Que coisa esquisita! Sempre que a onça vem cá, desaparece-me uma ovelha...

È foi para casa, furioso da vida. Deu com a onça roncando — fingindo que dormia, mas lá do alto de sua rede o macaco apontava para ela, dizendo:

— Veja como está barreadinha de sangue.

— Desta vez me paga! — gritou o compadre, e apontando a espingarda, pum! — matou a onça.
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— Nas histórias populares — disse dona Benta—o papel da onça é sempre desastroso. Personifica a força bruta, a traição, a crueldade. Os contadores vingam-se dela ser assim, fazendo-a perder todas as partidas.

— Está claro — disse Emília. — Não tinha graça nenhuma se a onça acabasse vencendo. Ela é bruta, é má, é cruel; logo, tem de ser castigada — pelo menos nas histórias.

— E o pobre veado? — lembrou Narizinho.

— Já ouvi várias histórias de veado e até tenho dó. Uns bobinhos completos. Não há nenhuma em que se atribua a menor inteligência aos veados. Acabam sempre comidos.

— Veado, ovelha e outros animais não passam de carne com quatro pés — disse Pedrinho.

— Inteligência não existe em suas cabecinhas, nem para lograr a onça, que é o mais estúpido dos animais. Eu até me rio quando ouço uma ovelha fazer: Bé! Que bichos bobos! Só servem mesmo para dar lã e costeletas.

— Isso não — protestou Emília. — Quando os homens querem um símbolo de meiguice, de que se lembram? Dos cordeirinhos. S. João andava com um no braço.

— Bom, S. João era um santo, era diferente dos outros homens. Quando esteve no deserto só passava a gafanhotos, coisa que ninguém come. Juro que não comeu o cordeirinho que trazia no braço. Mas o resto da humanidade, nem é bom falar! Elogiam os cordeirinhos, sim, senhor. "Que beleza! Que encanto!" — mas passam-lhes a faca no pescoço e comem-nos.

— Ué! — exclamou tia Nastácia. — Pois para que serve carneiro senão para ser comido? Deus fez os bichos cada um para uma coisa. A sina dos carneiros é a panela.

Emília danou.

— Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. Facínora!...

— Emília, Emílial — ralhou dona Benta.

A boneca botou-lhe a língua.
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Continua… XX – O Veado e o Sapo
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
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