quarta-feira, 4 de maio de 2011

Monteiro Lobato (Histórias de Tia Nastácia) XXVI – A Onça e o Coelho


A onça havia plantado uma roça, onde nasceu muita urtiga. A onça ficou atrapalhada. Nem entrar na roça podia, porque a urtiga arde muito. Foi então e chamou os animais da floresta.

— Quem me capinar esta roça sem se coçar ganha um boi — disse ela.

O macaco se prontificou a fazer o serviço. Mas assim que deu começo à capinação, coçou-se tanto que a onça o tocou de lá.

Veio o bode, que também se cocou com o chifre. A onça tocou o bode.

Por fim apresentou-se um coelhinho. "Esta é boa!" — disse a onça. — "Se nem o macaco e o bode puderam capinar a roça, que espera fazer este bichinho?" Mas como o coelho insistisse, consentiu.

A onça ficou fiscalizando o serviço para ver se ele se cocava; depois cansou-se daquilo e deixou uma sua filha no lugar.

O coelho, que não podia mais de tanta comichão, teve uma idéia. Voltou-se para. a filha da onça e perguntou: "Escute: aqui, oncinha, o tal boi que sua mãe: prometeu não é um boi malhado, com uma mancha amarela aqui (e dizendo isso cocava a perna), e outra aqui (e cocava o lombo) e outra aqui (e cocava o focinho)?

A oncinha, muito boba, respondeu que era. O coelho prosseguiu no trabalho, e quando a comichão apertou demais veio novamente perguntar se o boi não tinha também urna mancha amarela em tal e tal parte — e cocava ali. E desse modo conseguiu capinar a roça inteira, ganhando o boi.

Mas a onça impôs uma condição.

— Compadre coelho, dou o boi, mas você só poderá matá-lo num lugar onde não houver moscas, nem galo que cante, nem galinha que cacareje.

O coelho, concordando, lá se foi com o boi em procura dum lugar onde pudesse matá-lo. Andava um pedaço, parava, escutava e sem tardança ouvia um cocoricocó!

— Aqui não serve. Tem galo — e seguia para adiante.

E foi andando até que chegou a um lugar onde não havia mosca nenhuma, nem se ouvia nenhum coricocó. Então matou o boi. Nisto surge a onça.

— Compadre coelho — disse ela — um boi é muita coisa para você. Passe para cá um pedaço.

O coelho deu-lhe um pedaço, que a onça devorou num segundo.

— Não chegou para matar a minha fome, compadre. Passe para cá outro pedaço — e o coelho deu outro pedaço. Por fim a onça devorou o boi inteirinho.

O coelhinho voltou para casa muito triste, com o facão na cintura. Ia pensando num meio de vingar-se da onça. Teve uma idéia. Entrou no mato e pôs-se a cortar cipó. Aparece a onça.

— Que está fazendo aí, compadre coelho?

— Estou tirando cipós. Como Deus vai castigar o mundo com uma tremenda ventania, preciso de cipó para me amarrar a um tronco de árvore.

A onça, amedrontadíssima, pediu:

— Nesse caso, amarre-me também, compadre.

— Não posso — disse o coelho fingida-mente. — Tenho de ir para casa amarrar meus filhinhos.

— Amarre-me primeiro, pediu a onça, e depois vá amarrar seus filhinhos.

O coelho cocou a cabeça; por fim disse:

— Está bem, comadre onça: como prova de amizade vou fazer esse grande favor — e amarrou-a com todos os cipós, deixando-a impossibilitada do menor movimento.

— Bom — disse ele ao concluir o serviço — a comadre está tão bem amarradinha que nem o maior dos furacões é capaz de arrancá-la daí — e foi-se embora, a rir.

Passado algum tempo a onça, vendo que não vinha vento nenhum, desconfiou. "Querem ver que fui tapeada pelo tal coelho? Como agora livrar-me deste amarramento?"

Vinha vindo um macaco.

— Amigo macaco, faça o favor de tirar de mim estes cipós.

Mas o macaco, sabidão que era, apenas disse: "Deus ajude a quem te amarrou", e foi-se embora.

Apareceu um veado.

— Amigo veado, faça o favor de desamarrar-me, pediu a onça.

O veado, apesar de burrinho, deu a mesma resposta do macaco, e lá se foi.

Veio o bode, e aconteceu a mesma coisa.

Passadas algumas horas, o coelho foi espiar como ia indo a onça.

— Compadre coelho, viva! O vento não aparece e eu estou que não posso mais. Venha desamarrar-me.

O coelho, com dó dela, pôs-se a desenrolar os cipós. Assim que a malvada se viu livre, nhoc! deu-lhe um pega. Mas o coelho alcançou dum pulo um buraco; mesmo assim a onça agarrou-lhe um pé. O coelho caiu na risada.

— Ah, como é tola a minha comadre onça! Agarrou uma raiz de pau e está pensando que é meu pé. Ah, ah, ah!...

A onça, desapontada, soltou as unhas, pensando mesmo que houvesse ferrado uma raiz de pau. O coelho afundou no buraco.

Uma garça veio pousar ali perto. A onça chamou-a.

— Comadre garça — disse ela — bote sentido nesta cova enquanto eu vou buscar uma enxada. Não deixe o coelho sair.

A garça ficou na árvore, com os olhos no buraco. O coelho disse:

— Que grande tola! Então é assim que garça toma conta de buraco onde está um coelho?

— Como devo fazer então? — perguntou a bobinha.

— Ora, ora! Tem de vir aqui e ficar com o bico dentro do buraco.

A garça desceu da árvore e enfiou o bico no buraco. O coelho atirou-lhe aos olhos um punhado de areia e escapou.

Nisto veio a onça com a enxada. Cavou, cavou até lá no fundo e nada de coelho.

— Comadre garça, que fim levou o coelho que estava aqui?

— Não sei — respondeu a tola. — Ele me mandou que enfiasse o bico no buraco. Assim que enfiei o bico, me botou nos olhos uma areia. Fiquei cega e nada mais vi.

A onça, furiosa, deu um bote na garça, que lá se foi voando, muito fresca da vida.
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— Boa, boa — disse Emília. — Estou gostando mais destas histórias de bichos do que das de reis e Joãozinhos.

— Estas histórias — explicou dona Benta — foram criadas pelos índios e negros do Brasil — pela gente que vive no mato. Por isso só aparecem animais, cada um com a psicologia que os homens do mato lhe atribuem. A onça, como é o animal mais detestado, nunca leva a melhor em todos os casos. É lograda até pelos coelhos.

— E há invençõezinhas engraçadas nessa história — observou a menina. — O jeito do coelho enganar a filha da onça, com tais perguntas sobre as manchas do boi, está muito interessante. Acho que tia Nastácia só deve contar histórias assim. Das outras, de príncipes, estou farta.

— Pois então vou contar a história do pulo do gato, — disse tia Nastácia— e contou.
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Continua… XXVII – O Pulo do Gato
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. SP: Brasiliense, 1995.
Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source

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