terça-feira, 10 de julho de 2012

Sylvia Orthof (Bruzundunga da Silva)

Cada livro tem uma história... mas este livro que você está começando a ler é um livro diferente. A começar pelo nome: Bruzundunga da Silva.

Você quer saber quem é Bruzundunga da Silva? Eu vou contar, só pra você, a vida dele. Bruzundunga nasceu numa casa em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Nasceu numa tarde de muito calor, no dia 6 de fevereiro de 1985. A mãe do livro, a escritora que o escreveu, ficou logo aflita quando Bruzundunga chegou neste mundo. Porque Bruzundunga chegou, olhou em volta... e ficou encharcado.

- Eu não sabia que livro chorava, eu não sabia! - disse a escritora, buscando um lenço para enxugar os olhos do seu filho-livro. - Por que você está chorando, hein? - perguntou pra ele.

- É que eu sou um livro, já nasci sabendo o que me espera.

Nasci, olhei aí para os meus irmãos-livros da sua estante, mamãe... buá, buá... eles estão com um ar tão sofrido! A mãe do livro entendeu o filho, botou no colo, ninou.

Bruzundunga foi crescendo: completou a primeira página.

Para comemorar um aniversário tão importante, a Dona Mãe de Bruzundunga fez uma festa, com bolo de letras, teatro de fantoches, bolas de soprar. O tio, Dicionário de Inglês, veio muito importante e cantou o "Parabéns", dizendo "Happy Birthday to You".

Mas, de repente... Bruzundunga pulou no colo da tia Enciclopédia e recomeçou a chorar:

- Buá, Buá!

- O que foi, filho meu? Mas o que será que aconteceu? perguntou a Dona Mamãe de Bruzundunga.

- Não sei, mãe... é uma aflição... tenho medo... medo... medo...

- Medo de fantasmas? - perguntou um livro de Hisórias de Botar Cabelo Em Pé, dando um susto em Bruzundunga, pois veio voando, vestido de lençol.

- Ui, ui... que susto, buá, buá! - berrou o livro.

Mamãe Dona Mãe de Bruzundunga não entendia o motivo da aflição de seu filho. Mas mesmo assim o compreendia, porque tentava entender, mas não entendia, entende? Não? Nem eu. Só sei que era assim.

O livro Bruzundunga cresceu, completou as páginas necessárias para ir ao encontro da luta pela vida. Cresceu meio magrela, sempre dando umas choradinhas. A Dona Mãe de Bruzundunga, ao contrário, nervosa com o nervosismo do filho, desatou a comer farofa com caldo de feijão. Era só o livro-filho demonstrar um nervosinho, Dona Mãe de Bruzundunga corria pra cozinha e desatava a comer, pra ficar calma. O livro ficou magrela, a Dona Mãe, ao contrário, já estava da grossura do NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, por parte de pai, e de ...E O VENTO LEVOU, por parte de mãe.

São livros gordíssimos, talvez porque tenham tido problemas e tenham começado a devorar feijão com farofa, sei lá!

Bruzundunga da Silva, enfim, nervosérrimo, foi para a luta pela vida, fora do escritório da mamãe. Ainda não estava bem com jeito de livro, tinha palavras risxxx, quero dizer, riscaxxxx, ora, tinha riscos e xxxxx, remendos...

enfim, era ainda um papel, ou melhor, várias folhas de papel, com cópias de papel carbono, devidamente numeradas e grampeadas.

Bruzundunga foi posto num envelope. A Dona Mãe de Bruzundunga escreveu o nome da editora no tal envelope e enviou as cópias das páginas escritas, aquelas que tinham sido copiadas com carbono.

A editora ficava em São Paulo. Bruzundunga iria pelo correio, lá do Largo do Machado, que é um correio que fica numa praça que tem de tudo: tem trinta e nove mil pombos, uma igreja, um buraco de metrô, bancos com namorados, desquitados, divorciados e amigos em geral. Tem também crianças, barulho de buzinas... e o tal correio.

Bruzundunga tremia dentro do envelope, chorando baixo. Chorou tanto, que o envelope derreteu, furando, e Bruzundunga fugiu. Logo que Bruzundunga escapuliu, a Dona Mãe de Bruzundunga, muito distraída, foi colocar o envelope no correio, mas jogou-o dentro do buraco do metrô, lá do Largo do Machado. Em vez de selo, Dona Mãe de Bruzundunga havia comprado uma passagem de metrô, que colara, com cuspe, no envelope.

Depois, Dona Mãe de Bruzundunga atravessou a praça, o tal Largo do Machado, para comer feijão com farofa num restaurante da esquina, por nervosismo.

Mãe quando se separa de filho fica assim, geralmente. Tem algumas que ficam aliviadas, dependendo do momento...porque nenhuma pessoa é igual a outra.

Bruzundunga da Silva, livre do seu envelope, que foi enviado de metrô pra não sei onde, ficou assim, fungando, no meio dos pombos do Largo do Machado.

Bruzundunga era branco. Veio um vento, abriu suas páginas... e de repente ele voou junto com os pombos.

Olhando de longe, cá de baixo, ninguém saberia dizer quem era pombo e quem era Bruzundunga. Bruzundunga ficou assustado, vendo a igreja lá embaixo... mas bateu suas asas de papel, voou e gostou.

Foi aí que Bruzundunga conheceu Bernardina, uma pomba roliça, bonitona. Dizem até que Bernardina e Bruzundunga tiveram um caso de amor, um caso rápido, porém lindo: coisa de muita asa e vôo.

A noite chegou. Todos os pombos foram comer milho.

No Largo do Machado tem uma velha, chamada Dona Pipoca, que todas as tardes leva milho para os pombos.

Bruzundunga, achando que era pombo, viu os pombos comerem milho e... nhoc! avançou, também. Mas não conseguiu engolir. Ficou tossindo, tossindo... até que Bernardina deu um tapa nas costas dele. O tapa foitão forte que Bruzundunga subiu, subiu, depois desceu, desceu... e foi planando, planando, até cair dentro de uma coisa escura e quente.

- Ui, ui... buá... buá... - choramingou Bruzundunga.

- Mas é o meu filho! - gritou a mãe, a Dona Mãe de Bruzundunga, pescando o lambuzado filhote de dentro do prato de caldo de feijão. Ela não saíra ainda do restaurante.

- Mãe! - exclamou o filho.

- Filho! - exclamou a mãe.

- Mãezinha queridinha! - reexclamou o filho.

- Filhotinhozinho queridozinho! - reexclamou a mãe.

Os dois, abraçadíssimos, voltaram para casa. As cigarras continuavam a cantar, porque ainda era verão.

Finalmente, depois de muito conversarem, depois de muito choro, feijão e farofa, os dois resolveram que tinham que crescer.

A mãe despediu-se do filho, levou-o para a caixa do correio mesmo.

O envelope tinha uma fralda dentro, que era para o caso de Bruzundunga chorar e evitar que o envelope ficasse molhado e tudo acontecesse de novo.

O editor leu o livro, ou melhor, o editor leu as páginas, fez um contrato com a escritora. Teve um momento em que a escritora pediu mais um dinheirinho, meio envergonhada... mas, afinal, escrever livros era a profissão dela, não é? E tudo ficou combinado.

Bruzundunga ficou conhecendo o ilustrador, que desenhou a história da sua vida. Depois, foi para a gráfica... e saiu assim, livro mesmo.

Aliás, ele virou milhares de exemplares iguais.

Quando ele está numa livraria, todo bonito, exposto para ser vendido, e alguém chega, olha pra ele, gosta e compra... aí, Bruzundunga fica feliz, feliz... e parece até que engorda, pois fica inchado.

Mas tem certas gentes que olham para um exemplar de Bruzundunga, torcem o nariz e dizem:

- Gastar dinheiro com livro? Para quê? Criança lê, depois não liga... É dinheiro jogado fora!

Quando isso acontece, Bruzundunga chora, se desmancha todo: molha a estante, desbota, encharca a livraria.

Vira um problema, dizendo:

- É por causa disso que eu já chorava, quando ainda era um bebê-papel-texto-e-pauta... buá... buá... Os meus irmãos livros, logo que eu nasci, me contaram das dificuldades pelas quais passa um livro... buá... livro sofre!

Quando Bruzundunga completou a segunda edição, aí ele já ficou menos chorão. Olhava bem pra cara das pessoas que não gastavam com livros, mas gastavam com sorvetes e sanduíches.

E quando uma daquelas gentes dizia:

- Comprar livro é besteira... A gente compra um livro para uma criança, depois a criança lê e joga pro lado...

Bruzundunga olhava bem pra cara dessas gentes, botava a língua de fora, fazia uma careta amassada e respondia, malcriado:

- É? É, não é? Quer dizer que livro é besteira, porque a pessoa lê e depois joga para um lado? E sorvete? A pessoa come... e depois? Depois... o que é que acontece com o sorvete e o sanduíche, hein? Depois de comido, digerido... vira o quê, hein? E quer saber de uma coisa? Você não merece livro, tá? Quem quiser gostar de mim, vai gostar de mim... e pode até, de vez em quando, me querer de novo, reler minha história. Falei e disse!

Bruzundunga não queria contar uma história assim, que diz que livro é importante, coisas de moral de história. Ele nem foi escrito para isso... mas é que, sem querer, livro também sente, né? E Bruzundunga resolveu falar bem dele mesmo, porque Bruzundunga resolveu, ora!

Mas neste instante Bruzundunga está inchando de felicidade!

Porque você é legal: gosta de sorvete, sanduíche... e livro... porque, se não gostasse, não ia querer saber de Bruzundunga até aqui, não é mesmo?

E a Dona Mãe de Bruzundunga?

Ela está com medo das críticas sobre Bruzundunga... está nervosa... e come feijão com farofa... e mais feijão com farofa... mas, nos intervalos, lê e escreve, ora! É isso aí.

E Bernardina, a pomba?

Ela não gosta de ler: come pipoca... e descome, come e descome... mas não liga pra livrarias. Sabe por quê?

Bernardina é míope, não usa óculos porque é vaidosa. E, sem óculos, ela só gosta de livro quando pensa que livro é pombo, como aconteceu com Bruzundunga.

Tem pomba que é assim, pombas!

FONTE:
A Garupa, e outros contos /Sylvia Orthof...[et al.]. São Paulo: Martins Fontes, 2002 - (Coleção literatura em minha casa ; v.2)

Um comentário:

Ronperlim disse...

Sylvia Orthof, com graça e humor, externa as atividades de um escritor; desde o fascínio nascituro até a maturidade.

É um conto com grandes lições que todo jovem escritor deveria ler, pensar sobre elas e seguir seu caminho literário.