sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Teixeira de Pascoaes (Livro D'Ouro da Poesia Portuguesa vol. 9) III



MINHA ALEGRIA

Minha alegria foi no teu caixão;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.

Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dor que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão,
Meu cântico esculpido em noite escura!

Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste após a morte.

Foste tu que m'a deste, meu amor;
Agora, dou-t'a eu: é a minha flor;
Eu quero que ela sofra a tua sorte.

TRISTEZA

O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lágrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...

Eis como a minha vida vai passando
Em frente ao seu Fantasma... E fico a ouvir
Silêncios da minh'alma e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando...

E fico mudo, extático, parado
E quase sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...

Só a longínqua estrela em mim atua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petrificada esfinge de saudade...

A MINHA DOR

Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh'alma que eu julgava
Já fora desta vida e deste mundo!

E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fosse livre e não escrava!

Meu espirito é treva e dor sem fim.
Todo eu sou dor e morte. Sou franqueza.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim

Pregar a noite, a lagrima, a incerteza,
A luz que, para sempre, anoiteceu...
Esta envolvente, essencial tristeza,

Tristeza original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Choro de ouro inundando terra e céu!

Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusório ser crucificado
Lembra um morto fantasma de Jesus...

E aos pés da minha cruz, no chão magoado,
A tua Ausência é a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.

Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-posto,
Se fez incerta, frágil e enganosa!

Em meu ser desenhou-se um novo rosto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgosto.

Vejo sombras á luz da minha dor...
Sombras talvez de eternas Criaturas
Que vivem na alegria do Senhor...

E quem sabe se os Mortos, nas Alturas,
Vivem na paz de Deus, em sítios ermos,
Entre flores, sorrisos e venturas?...

E quem sabe se as dores que sofremos
E nosso corpo e alma, não são mais
Que as suas vagas sombras irreais?...

Ah, nós somos ainda o que perdemos...

A MÃE E O FILHO

Teu ser tragicamente enternecido,
Em desespero de alma transformado,
Vai através do espaço escurecido
E pousa no seu tumulo sagrado.

E ele acorda, sentindo-o; e, comovido,
Chora ao ver teu espirito adorado,
Assim tão só na noite e arrefecido
E todo de ermas lágrimas molhado!

E eis que ele diz: "Ó Mãe, não chores mais!
Em vez dos teus suspiros, dos teus ais,
Quero que venha a mim tua alegria!"

E só nas horas em que a Mãe descansa,
É que ele inclina a fronte de criança
E dorme ao pé de ti, Virgem Maria!

AUSÊNCIA

Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!

Tua bendita e efêmera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa boa e maternal Paisagem,

Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Cor
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!

E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.

E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se ocultou.

Quando chego à janela, vejo o inverno;
E, à luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.

Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluídos
Traços da tua Imagem, arremedo

Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer...
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos...

Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não ver...

A voz da minha dor, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha

Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silêncio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!

E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausência trágica! E no fundo

De mim próprio que vejo? Acaso alguém?
Só vejo a tua Ausência, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!

A tua Ausência é tudo o que murmura,
E mostra a face triste á luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura...

Quem traz o outono ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?

É a tua Ausência, Amor, que vem turvar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!

O Sol é a tua Ausência que se abrasa,
A Lua é tua Ausência enfraquecida...
Da tua Ausência é feita a minha vida
E os meus versos também e a minha casa.

TRÁGICA RECORDAÇÃO

Meu Deus! meu Deus! quando me lembro agora
De o ver brincar, e avisto novamente
Seu pequenino Vulto transcendente,
Mas tão perfeito e vivo como outrora!

Julgo que ele ainda vive; e que, lá fora,
Fala em voz alta e brinca alegremente,
E volve os olhos verdes para a gente,
Dois berços de embalar a luz da aurora!

Julgo que ele ainda vive, mas já perto
Da Morte: sombra escura, abismo aberto...
Pesadelo de treva e nevoeiro!

Ó visão da Criança ao pé da Morte!
E a da Mãe, tendo ao lado a negra sorte
A calcular-lhe o golpe traiçoeiro!

Fonte:
Teixeira de Pascoaes. Elegias. 1912.

Vinicius de Moraes (Brotinho indócil)



A insistência daqueles chamados já estava me enchendo a paciência (isto foi há alguns anos). Toda a vez era a mesma voz infantil e a mesma teimosia: 

- Mas eu nunca vou à cidade, minha filha. Por que é que você não toma juízo e não esquece essa bobagem... 

A resposta vinha clara, prática, persuasiva: 

- Olha que eu sou um broto muito bonitinho... E depois, não é nada do que você pensa não, seu bobo. Eu quero só que você autografe para mim a sua Antologia poética, morou? 

Morar eu morava. É danadamente difícil ser indelicado com uma mulher, sobretudo quando já se facilitou um bocadinho. Aventei a hipótese: 

- Mas... e se você for um bagulho horrível? Não é chato para nós ambos? 

A risada veio límpida como a própria verdade enunciada: 

- Sou uma gracinha. 

Mnhum - mnhum. Comecei a sentir-me nojento, uma espécie de Nabokov avant la lettre, com aquela Lolita de araque a querer arrastar-me para o seu mundo de ninfeta. Não resistiria. 

- Adeus. Vê se não telefona mais, por favor... 

- Adeus. Espero você às quatro, diante da ABL. Quando você vir um brotinho lindo você sabe que sou eu. Você, eu conheço. Tenho até retratos seus... 

Não fui, é claro. Mas o telefone no dia seguinte tocou. 

- Ingrato... 

- Onde é que você mora, hein? 

- Na Tijuca. Por quê? 

- Por nada. Você não desiste, não é? 

- Nem morta. 

- Está bem. São três da tarde; às quatro estarei na porta da ABI. Se quiser dar o bolo, pode dar. Tenho de toda maneira que ir à cidade. 

- Malcriado... Você vai cair duro quando me vir. 

Desta vez fui. E qual não é minha surpresa quando, às quatro e ponto, vejo aproximar-se de mim a coisinha mais linda do mundo: um pouco mais de um metro e meio de mulherzinha em uniforme colegial, saltos baixos e rabinho de cavalo, rosto lavado, olhos enormes: uma graça completa. Teria, no máximo, treze anos. Apresentou-me sorridente o livro: 

- Põe uma coisa bem bonitinha para mim, por favor? 

E como eu lhe respondesse ao sorriso: 

- Então, está desapontado? 

Escrevi a dedicatória sem dar-lhe trela. Ela leu atentamente, teve-um muxoxo: 

- Ih, que sério... 

Embora morto de vontade de rir, contive-me para retorquir-lhe: 

- É, sou um homem sério. E daí? 

O "e daí" é que foi a minha perdição. Seus olhos brilharam e ela disse rápido: 

- Daí que os homens sérios podem muito bem levar brotinhos ao cinema... 

Olhei-a com um falso ar severo: 

- Você está vendo aquele Café ali? Se você não desaparecer daqui imediatamente eu vou àquele Café, ligo para sua mãe ou seu pai e digo para virem buscar você aqui de chinelo, você está ouvindo? De chinelo! 

Ela me ouviu, parada, um arzinho meio triste como o de uma menina a quem não se fez a vontade. Depois disse, devagar, olhando-me bem nos olhos: 

- Você não sabe o que está perdendo... 

E saiu em frente, desenvolvendo, para o lado da avenida.

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Ruth Farah (Jardim de Trovas)


1
A bonança desejada,
além da paz mundial,
é ver a fome zerada
com justiça social.
2
A cidade que conserva
o coreto do jardim,
seu patrimônio preserva
uma riqueza sem fim.
3
Amizade, realmente,
que faz a gente feliz
- saber o que um outro sente
e, humildemente, não diz...
4
A “muralha” mais temida
é o desprezo que se tem 
desgastando a nossa vida
pelos caprichos de alguém.
5
A necessidade faz
do cidadão um artista.
Na “corda bamba” é capaz
de ser um equilibrista.
6
Ante às agruras da vida,
não se entregue facilmente.
Após batalha vencida,
o “sol” brilha novamente.
 7
Ante o terror das queimadas
na floresta, com carinho,
as árvores abraçadas
tentam proteger os ninhos.
8
Antes de Cristo Jesus
tratamento era Doutrina.
E Hipócrates fez jus
ser o “Pai da Medicina”!
9
Ao contrário da humildade
que aceita sugestão,
todo orgulho, por vaidade,
não muda de opinião.
10
Ao contrário de um lamento
que uma lágrima alivia,
um magoado sentimento
só amor perdoaria.
11
As lágrimas cristalinas
são fantasias matreiras,
rompendo espessas neblinas
de uma ilusão passageira.
12
Assustado, vi no mar
dois carecas se afogando.
Mas sorri, ao constatar:
um nudista mergulhando...
13
Atingindo o apogeu,
é verdade bem sabida:
Noel Rosa não morreu:
 – mudou o estilo de vida...
14
A verdadeira amizade
aconselha o que convém:
despreza a comodidade
que a tudo só diz Amém!
15
Bem te vi, após cantares
de manhã no meu jardim,
vai alegrar outros ares,
mas não te esqueças de mim.
16
Casamento, na verdade,
se não for bom para os dois,
põe em risco a liberdade
e o mais triste vem depois.
17
Cidadania é saber
manter a honra constante,
ser sincero no dever
e servir ao semelhante.
18
Concedido por esmola
o perdão não traz fiança.
Dificilmente consola
tendo sabor de vingança...
19
Confirmando a aliança
de sonho e realidade,
o Sol é o pai da Esperança
e a Lua, mãe da Saudade... 
20
Contou vantagem o Zezé,
palestrante do Limeiras:
- Fui aplaudido de pé!!!
(Claro, não tinha cadeiras...)
21
Deixou-me louco, de vez,
o meu dentista Tinoco:
Sem precisar tirou três
dentes, por falta de troco...
22
Desejando muitos anos
de existência bem vivida,
esquivo-me dos enganos
 surfando as “ondas” da vida...
23
Disfarçando em lance astuto
minha vida amargurada,
eu mostro o olhar enxuto
com a alma despedaçada.
24
É crime fazer queimadas.
- a terra corre perigo:
vidas são ameaçadas
de fome ou de desabrigo.
25
Educação garantida
“vem do berço” - o próprio lar
 (melhor escola da vida).
Não há quem possa negar…
26
É mais amigo quem fala
a dura e cruel verdade
do que um outro que se cala
por mera comodidade.
27
É por Deus abençoada
a mãe que um filho gerou.
Porém, não menos louvada
aquela que o adotou.
28
Espelhando-se no Mar,
que ardentemente a deseja,
a Lua apaga o luar
para que o Sol não a veja....
29
Estando muito apertado,
não notei a porta errada.
Paguei um mico danado
aos gritos da mulherada.
30
Euclides em “Os Sertões”,
mostrou a realidade:
Canudos sob opressões
de fraterna crueldade...
31
Eu faço um pé de moleque,
de tão bom, não vejo igual.
Mas, por causa de um pileque,
troquei o açúcar por sal...
32
Fim de solo ressequido,
cai a chuva no sertão.
O caboclo agradecido
louva a Deus em oração.
33
Fraternidade  no lar
prova a presença do amor,
dando exemplo singular
de família de valor.
34
Havendo a chuva descido
fininha, qual branco véu,
o caboclo agradecido
rudes mãos eleva ao céu.
35
Idade não é velhice
 – poesia  nos comprova
quando idosos, com meiguice,
fazem da vida uma trova.
36
Longe de qualquer engano,
por ser gesto muito fino,
pedir perdão é humano,
mas perdoar é divino.
37
Meu amor pelo Brasil
somente Deus o comprova.
Mostrá-lo? Nem de perfil,
pois não cabe numa trova…
38
Mulher de rara beleza
não deve, jamais, pintar-se,
pois obra da natureza
não necessita disfarce.
39
Na minha Escola de samba
o enredo, por tradição,
são trovas de gente bamba
alegrando a multidão.
40
Não lhe dou o meu perdão
porque, mais que insensatez
é achar que ainda tem razão
depois do que você fez...
41
Não se deve macular
a inocência da criança
proibindo-a de sonhar
por maldade ou por vingança.
42
Natal! É rico o menu...
Mas, por ser justo, não calo:
Quem sempre morre é o peru,
por que a Missa é do Galo?
43
Nem sempre nós percebemos,
mas disto ninguém duvida:
somos, enquanto vivemos,
artistas da própria vida...
44
No enterro do Geraldão
joguei flores no defunto.
Dando um tropeço no chão,
por bem pouco não fui junto...
45
Nosso amor é tão sublime
que até nos leva à loucura:
as nossas almas redime
e faz da vida... doçura!
46
No velório do Tião,
por causa de uma topada,
caí dentro do caixão.
Só ele não deu risada...
47
Num arbítrio de questão,
é amigo de verdade
quem, de fato, dá razão
usando sinceridade.
48
O amor faz passar o tempo
- não há quem possa negar.
Mas, se o amor é passatempo,
o tempo é que o faz passar.
49
O belo na juventude
traz orgulho, por costume.
Mas beleza sem virtude
é qual rosa sem perfume.
50
O galo foi defender
sua honra na cozinha:
depois de tanto cozer,
vira caldo de galinha.
51
O Deus Pai, só por bondade,
manda Hipócrates, de Cós,
tratar da humanidade
pensando, talvez, em nós.
52
Ó Deus Pai, todo bondade,
cessai a guerra voraz
fazendo da humanidade
celeiro de amor e paz.
53
O galo foi defender
sua honra na cozinha:
depois de tanto cozer...
vira caldo de galinha?!!!
54
O indivíduo sem virtude
não se faz acreditar,
pois caráter não ilude:
o nobre tem seu lugar...
55
Oprimido na gaiola,
lamentando a escravidão,
o sabiá cantarola
para o algoz sem coração.
56
O silêncio, embora mudo,
quando bem interpretado,
nada diz mas fala tudo
decidindo qual jurado.
57
O uso dos celulares
tornou-se prioridade,
pois até em nossos lares
não há mais fraternidade.
58
O vento, por peraltice,
leva folhas pelo espaço.
Que bom se um dia o sentisse
levando as trovas que faço...
59
Para selar nosso amor
melhor quesito não vejo:
ter nos lábios o calor
e a delícia do teu beijo.
60
Penetrando, lentamente,
na choupana esburacada,
banha a cabocla dolente
tênue raio da alvorada.
61
Perdoe compadecido
qual o sândalo, coitado,
que deixa, embora ferido,
seu perfume no machado.
62
Pessoa sem segurança
que faz promessas a esmo,
não merece confiança
e prejudica a si mesmo.
63
Portadora de elegância
e esmerada equilibrista,
a garça exibe arrogância
na tela do grande artista.
64
Qual a brisa, calmamente,
ou ligeira ventania,
passa o tempo indiferente
dia e noite... noite e dia...
65
Quando o amor é verdadeiro,
não importa a “estação”.
Os amantes, por inteiro,
vivem num só coração.
66
Quando o jovem tem, por norma,
ser um homem de valor,
seu próprio caráter forma
sendo um exímio escultor.
67
Quando o poeta falece
junto à Lua vai ficar
mergulhado em doce prece
eternamente a sonhar.
68
Quando o prêmio é merecido,
tem doce sabor de glória;
por trapaça recebido,
não é nenhuma vitória.
69
Quando o santo é de madeira,
no velho estilo barroco,
não encontra rezadeira
que tenha fé em pau oco.
70
Quando povos e nações
se consideram irmanados,
não há discriminações
- direitos são respeitados.
71
Quem não procura plantar
o que deseja colher,
não deve se lamentar
do que pode acontecer.
72
Quem não tem superstição
faz da crença privilégio:
não corre de assombração
nem receia sortilégio.
73
Que sonhos não sejam mais
as esperanças de outrora:
ver o mundo em plena paz
e a miséria indo embora...
74
Salário Mínimo faz
do cidadão um artista
na corda-bamba capaz
de ser bom equilibrista!
75
Se acaso a justiça humana
cai nas mãos de um canalha,
pensa que a todos engana,
mas a divina não falha!
76
Se alguém lhe fizer um mal,
mesmo sem justa razão,
pessoalmente ou virtual,
abrace-o, de coração...
77
Seja de frente ou perfil,
jamais consegue o pintor
mostrar o quanto é sutil
a beleza interior.
78
Se na vida tudo passa,
da diferença me esgueiro.
Não importa a cor ou raça
quando o amor é verdadeiro.
79
“Sorrir é o melhor remédio”
- é receita garantida.
Não respire o próprio tédio;
abra a cortina da vida!
80
Sorriso simples, sincero,
contagia e dá prazer.
Até um indivíduo austero
se deixa corresponder.
81
Surgindo meiga, serena
e por muitos esperada,
tão formosa, a Lua Plena
em serenata é cantada.
82
Tive um trabalho danado
com a vaca, hoje cedinho:
não deu leite empacotado
nem quis sentar no banquinho...
83
Toda honestidade tem
o grande e forte poder
que faz o brio de alguém
bom crédito merecer.
84
Um céu de rara beleza,
a invejar o mundo inteiro,
nos dá a plena certeza
de que Deus é brasileiro.
85
Uma praça sem coreto,
mesmo pintada em painel,
é não ter rima em soneto
ou a pedra num anel.
86
Um dentista experiente
quis da sogra se vingar:
quando foi tirar-lhe o dente,
tentou a língua aparar.
87
Um disfarce satisfaz
até que chegue a verdade,
provando ser eficaz
manter autenticidade.
88
Um título de nobreza
garante reputação.
Entanto, é maior riqueza
ser nobre de coração.
89
Vencendo o mar e procelas,
veio Cabral confiante
nas mais rudes caravelas
tomar posse de um “gigante”!
90
Vi em sonho a Mãe do Céu
ostentando alvissareira
na cabeça, em vez do véu,
a Bandeira Brasileira!

Ruth Farah (1932 - 2017)


Ruth Farah Nacif Lutterback nasceu em Cantagalo/RJ, em 11 de abril de 1932 e faleceu em Nova Friburgo/RJ, a 21 de fevereiro de 2017. Filha dos libaneses Assad Miguel Nacif e Anna Farah Nacif.

Foi Rainha dos Estudantes e Rainha da Primavera de Cantagalo. Estudou em Cantagalo e fez vários Cursos de Especialização para o Magistério Primário em Niterói e Rio de Janeiro. Lecionou e dirigiu várias Escolas do Município,vindo se aposentar com 39 anos de efetivo exercício. 

Participou do Colóquio Internacional “Caminhos da Memória” a convite da UNESCO. 

Fez parte da Coletânea “DEVEMOS VER COM OS OLHOS LIVRES” da ABL e FD (75º lugar dos 6000 professores concorrentes) e de várias Antologias Literárias, entre as quais,“BRAZILA ESPERANTO PARNASO”, de Syla Chaves
e Neide Barros Rego. 

Obteve aproximadamente duzentas premiações em prosa e verso.

Delegada da UBT (União Brasileira de Trovadores), realizava anualmente os Jogos Florais de Cantagalo.

Responsável pelo Departamento Cultural da ASSEXCA (Associação dos Experientes de Cantagalo) em parceria com a JUVENTROVA, promovia concurso para estudantes a fim de despertar novos talentos trovadorescos.

Escreveu “Um pingo de OS SERTÕES” a fim de facilitar o entendimento do fato que deu origem à grande obra de Euclides da Cunha.

Em sua homenagem, a biblioteca da escola municipal Ewandro do Valle Moreira foi batizada com o nome "Sala de Sonhos Ruth Farah Nacif Lutterback".

Fontes:
União Brasileira de Trovadores - Seção Porto Alegre/RS. Trovas de Ruth Farah e Milton Nunes Loureiro. 
Coleção Terra e Céu LIV. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.


Mario Quintana em Prosa e Verso 7



A BELA E O DRAGÃO

As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos... Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLÍ, o dragão te seguirá por toda parte como um cachorrinho...

APARIÇÃO

Tão de súbito, por sobre o perfil noturno da casaria, tão de súbito surgiu, como um choque, um impacto, um milagre, que o coração, aterrado, nem lhe sabia o nome: a lua! - a lua ensanguentada e irreconhecível de Babilônia e Cartago, dos campos malditos de após-batalha, a lua dos parricídios, das populações em retirada, dos estupros, a lua dos primeiros e dos últimos tempos.

EPÍLOGO

Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade.

ESTUFA

Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo...

INFERNO

Em suave andadura de sonho, sob uma infinita série de arco-íris celestiais, anjos me conduziam num palanquim dourado, entre um curioso povo de profetas e virgens, que formavam alas para me ver passar. Mas eu me debruçava inquieto a uma e outra janela: faltava-lhe alguma coisa. Faltava... Faltavam os meus desafetos. Eu só queria era ver a cara deles, ver a cara que eles fariam quando me vissem passar, tirado por anjos num palanquim de ouro!

O ESPIÃO

Bem o conheço. Num espelho de bar, numa vitrina ao acaso do footing, em qualquer vidraça por aí, trocamos às vezes um súbito e inquietante olhar. Não, isto não pode continuar assim. Que tens tu de espionar-me? Que me censuras, fantasma? Que tens a ver com os meus bares, com os meus cigarros, com os meus delírios ambulatórios, com tudo o que não faço na vida!?

TRÁGICO ACIDENTE DE LEITURA

Tão comodamente que eu estava lendo, como quem viaja num raio de lua, num tapete mágico, num trenó, num sonho. Nem lia: deslizava. Quando de súbito a terrível palavra apareceu, apareceu e ficou, plantada ali diante de mim, focando-me: ABSCÔNDITO. Que momento passei!... O momento de imobilidade e apreensão de quando o fotógrafo se posta atrás da máquina, envolvidos os dois no mesmo pano preto, como um duplo monstro misterioso e corcunda... O terrível silêncio do condenado ante o pelotão de fuzilamento, quando os soldados dormem na pontaria e o capitão vai gritar: Fogo!

Fonte:
Mario Quintana. Sapato florido. São Paulo: Globo, 2005.

Vinicius de Moraes (Batizado na Penha)



Eu sou um sujeito que, modéstia à parte, sempre deu sorte aos outros (viva, minha avozinha diria: "Meu filho, enquanto você viver não faltará quem o elogie..."). Menina que me namorava casava logo. Amigo que estudava comigo, acabava primeiro da turma. Sem embargo, há duas coisas com relação às quais sinto que exerço um certo pé-frio: viagem de avião e esse negócio de ser padrinho. No primeiro caso o assunto pode ser considerado controverso, de vez que, num terrível desastre de avião que tive, saí perfeitamente ileso, e numa pane subsequente, em companhia de Alex Viany, Luís Alípio de Barros e Alberto Cavalcanti, nosso Beechcraft, enguiçado em seus dois únicos motores, conseguiu no entanto pegar um campinho interditado em Canavieiras, na Bahia, onde pousou galhardamente, para gáudio de todos, exceto Cavalcanti, que dormia como um justo. 

Mas no segundo caso é batata. Afilhado meu morre em boas condições, em período que varia de um mês a dois anos. Embora não seja supersticioso, o meu coeficiente de afilhados mortos é meio velhaco, o que me faz hoje em dia declinar delicadamente da honra, quando se apresenta o caso. O que me faz pensar naquela vez em que fui batizar meu último afilhado na Igreja da Penha, há coisa de uns vinte anos. 

Éramos umas cinco ou seis pessoas, todos parentes, e subimos em boa forma os trezentos e não sei mais quantos degraus da igrejinha, eu meio céptico com relação à minha nova investidura, mas no fundo tentando me convencer de que a morte de meus dois afilhados anteriores fora mera obra do acaso. Conosco ia Leonor, uma pretinha de uns cinco anos, cria da casa de meus avós paternos. 

Leonor era como um brinquedo para nós da família. Pintávamos com ela e a adorávamos, pois era danada de bonitinha, com as trancinhas espetadas e os dentinhos muito brancos no rosto feliz. Para mim Leonor exercia uma função que considero básica e pela qual lhe pagava quatrocentos réis, dos grandes, de cada vez: coçar-me as costas e os pés. Sim, para mim cosquinha nas costas e nos pés vem praticamente em terceiro lugar, logo depois dos prazeres da boa mesa; e se algum dia me virem atropelado na rua, sofrendo dores, que haja uma alma caridosa para me coçar os pés e eu morrerei contente. 

Mas voltando à Penha: uma vez findo o batizado, saímos para o sol claro e nos dispusemos a efetuar a longa descida de volta. A Penha, como é sabido, tem uma extensa e suave rampa de degraus curtos que cobrem a maior parte do trajeto, ao fim da qual segue-se um lance abrupto. Vínhamos com cuidado ao lado do pai com a criança ao colo, o olho baixo para evitar alguma queda. Mas não Leonor! Leonor vinha brincando como um diabrete que era, pulando os degraus de dois em dois, a fazer travessuras contra as quais nós inutilmente a advertimos. 

Foi dito e feito. Com a brincadeira de pular os degraus de dois em dois, Leonor ganhou momentum e quando se viu ela os estava pulando de três em três, de quatro em quatro e de cinco em cinco. E lá se foi a pretinha Penha abaixo, os braços em pânico, lutando para manter o equilíbrio e a gritar como uma possessa. 

Nós nos deixamos estar, brancos. Ela ia morrer, não tinha dúvida. Se rolasse, ia ser um trambolhão só por ali abaixo até o lance abrupto, e pronto. Se conseguisse se manter, o mínimo que lhe poderia acontecer seria levantar voo quando chegasse ao tal lance, considerada a velocidade em que descia. E lá ia ela, seus gritos se distanciando mais e mais, os bracinhos se agitando no ar, em sua incontrolável carreira pela longa rampa luminosa. 

Salvou-a um herói que quase no fim do primeiro lance pôs-se em sua frente, rolando um para cada lado. Não houve senão pequenas escoriações. Nós a sacudíamos muito, para tirá-la do trauma nervoso em que a deixara o tremendo susto passado. De pretinha, Leonor ficara cinzenta. Seus dentinhos batiam incrivelmente e seus olhos pareciam duas bolas brancas no negro do rosto. Quando conseguiu falar, a única coisa que sabia repetir era: "Virge Nossa Senhora! Virge Nossa Senhora!" 

Foi o último milagre da Penha de que tive notícia.

Fonte:
Vinícius de Moraes. Para uma menina com uma flor. 
Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

Nilto Maciel (O Fim do Mundo de Sinhá)


A peste havia levado para a terra dos pés juntos quase todo o povo do lugar. Menos os filhos ingratos, sem amor ao chão, e os mais duros, de corpo fechado. Muita carniça para os urubus. Uma praga de bicho morto. Plantação nenhuma resistiu. A terra se esturricou. Quem escapou e não esperou pela morte, fugiu para bem longe, tomou o oco do mundo. Menos Sinhá. Essa ficou para enfrentar o cão. Comia raiz, qualquer coisa da terra nascida. Gafanhoto, formiga, besouro. Depois apareceram, não soube ela como, pés de pau, porco, galinha, toda sorte de bicho. Porém de quase nada disso ela se servia. Continuava a enfiar as mãos trêmulas na terra, à cata de comida do chão. Se enxergava ainda? Divertia-se a espiar as galinhas comerem minhocas, os porcos fuçarem a lama e os frutos apodrecerem em cima da terra. Sozinha no sitiozinho, na choupana velha, dos bons tempos, conversava com os bichos, a chuva, os ventos, a noite, os meninos que malinavam no terreiro e metidos no mato. Não haverá de abandonar a terrinha, porque, o que de que carecia, ela dava em abundância. Dava e levava. Nas suas falas, porém, Sinhá muito se queixava de abandono e rogava pragas aos que a deixaram só, como se estivesse leprosa. Maldizia-se dia e noite, a gritar e blasfemar em miúda voz. Talvez não a ouvissem. Certamente viviam por ali, enfiados nas cabanas escondidas ou nas roças distantes. Tangiam porcos e galinhas, que não cessavam de fuçar o chão, em tempo de derrubar as casas. Ouvia de madrugada o canto dos galos. Sim, eles viviam por ali. E nunca se mostravam. Tinham medo da lepra que ela não carregava. Orgulhosos! A terra havia de papar um a um amanhã, antes da safra, depois de São João.

Passo manso e torto, olhos nas pontas dos pés, amaldiçoava os bichos que a perseguiam, encostada na bengala lisa e ensebada. Pela primeira vez, depois de tanta solidão, pisava novos rastros. Vontade doida de dar um passeio, conversar de frente, recordar o antigamente, até aquela peste danada e tão passada, falar da chuva que sempre vinha e sempre ia. Buscou as veredas cobertas de mato, para cá e para lá, avistou a cabana de Meranda. Por que aquela criatura nunca mais havia aparecido? Oi de casa. Nem um só pio. Apurou os ouvidos. Pio, pio, pio. Escancarou a porta, passou, passou, trambecou, perguntou pelo café, nada de fogo nem de lenha. Decerto o povo andava na roça ou na cidade a comprar fazenda por mor de fazer roupa para os meninos. O mofo no canto da cozinha cobria o pote. Fogão apagado, panela nenhuma. De tamborete só a sombra. Esburacadas as paredes, furado o céu no telhado.

Sem jeito, saiu pela porta dos fundos, a tropeçar no passado. Essa Meranda! Cansada de carregar o tino, grudou-se à bengala lisa e vergou o corpo, murcho e leve, e só não conseguia voar, feito os passarinhos que beliscavam a mata branca de sua cabeça, porque nada a despegava da terra. Nem mesmo o abandono de parentes e aderentes. Fugir também? Não, não sentia medo de nada. Ora, se já ninguém existia no mundo, nada de fazer medo havia. Tudo morto, até o tempo. Fim de mundo, sim senhor. Pois donde nascer curumim, se não se via mais homem nem mulher? Ela? Não, nada daquilo era, nem mulher nem homem. Nem nunca tinha sido. Então só queria a fianga para se estender, descansar e dormir. Bem muito.

Fonte:
Nilto Maciel. Babel (contos). Brasília/DF: Editora Códice, 1997.