“Nada nele era aparente. Não mostrava nada”, diz o narrador, com o amante agonizando nos braços. É quase o contrário do que poderia ter dito sobre o novo romance de Bernardo Carvalho, onde tudo se expõe, tudo é aparência, mas nada também se revela, exceto em momentos privilegiados, epifanias que explodem ao longo da narrativa. Em seu terceiro livro, depois do bem acolhido Aberração (1994) e dos contos de Onze (1995), Bernardo Carvalho vem nos propor riscos ainda maiores, nessa ficção disposta, praticamente contra si mesma, a testemunhar as aberrações absolutas do amor e da morte.
Nada mais difícil para um autor tão consciente das possibilidades e ainda mais das impossibilidades do seu meio. Sua desconfiança traduz-se, desde logo, numa linguagem quase sem pathos, numa profusão de pequenas histórias narradas em registro neutro. Mas essa neutralidade é ainda mais suspeita para um autor que, apesar de tudo, está sempre do lado da experiência. Sua condição, nada invejável, mas que ele compartilha com alguns dos melhores escritores da atualidade, é precisamente a de reconhecer a natureza do afeto e do sofrimento, sem que a empatia descambe em identificação. O resultado é um romance duplo, onde melodrama e testemunho vão se mascarando e revelando um ao outro.
A duplicidade, aliás, é a alma fugidia desta seqüência de histórias dentro de histórias, onde autor e narrador se confundem, pensadamente, com homônimos e narradores de narradores; onde as vozes dividem-se entre países e continentes; e onde a vontade de “não mais ser o que eu era” ressoa como um bordão do início ao fim. E a duplicidade – com ecos demoníacos de Shakespeare e Poe – assume aqui também caráter de gênero, neste romance assumidamente homossexual. Cabe apontar, quanto a isto, a atualidade de um contexto internacional mais amplo, no qual se enquadram escritores como Aldo Busi, Reynaldo Arenas, Alan Hollinghurst e Edmund White, e à luz do qual um romance desses será forçosamente lido. Bernardo tem ambições menos programáticas que a de outros autores brasileiros como Alberto Guzik e Jean-Claude Bernardet; têm também ambições mais altas, nem sempre ao alcance do livro.
Fica difícil recontar ordenadamente o xadrez refinado da forma sem estragar as surpresas de quem não leu. Uma simples lista será o suficiente para sugerir os seus cenários. Há o caso da operação de tumor cerebral da mãe – homenageada traiçoeiramente na dedicatória (verdadeira ou falsa?), como fonte sigilosa da história que não se deveria contar. Há o caso da testemunha acidental, que viu uma mulher sair, com uma criança no colo, das águas da baía, no Rio, depois de um desastre de avião. Há o caso dos pintores cariocas da virada do século, que pintavam uns aos outros como “modelos vivos”, depois de mortos. Há o estranho caso do emissário do Museu Metropolitan, que veio tratar desses quadros no Brasil e o caso ainda mais estranho, retomado ao longo dos anos, desse emissário com o narrador. Há o caso do executivo americano, aparentemente seqüestrado durante uma festa no Rio de Janeiro em 1969, e da sua mulher, que ficou. Há o caso do “repatriamento sanitário” do psicólogo louco, encontrado em Los Angeles, Chile (a Paris, Texas do livro). Há o caso do narrador que contou todos esses casos e que domina a segunda parte, supostamente verdadeira, e o caso de como esses casos se ligam, admiravelmente dobrados e redobrados em si.
A habilidade narrativa pode ser o maior trunfo ao autor, mas não é sua maior cartada. Todo o seu esforço é o de não se deixar vencer pelas histórias. O excesso mesmo desses casos, multiplicados em outros tantos episódios parentéticos, sugere que o que interessa está noutro lugar – no inatingível reino que as histórias parecem ocultar. “A consciência é uma armadilha”, diz o psicólogo louco, autor de uma série de diagnósticos “como pequenas fábulas”. Em seus momentos mais frágeis, porém, é o próprio romance que, inversamente, ameaça se transformar numa série de fábulas como pequenos diagnósticos.
Que o controle das aparências seja calculado para a explosão das paixões – como se a vida toda fosse uma placa sísmica, perpetuamente ameaçada por tremores e erupções – é algo que funciona melhor como instrumento de ritmo do que como lição. E mesmo esse ritmo tende a se tornar insistente demais, uma alegoria do recalcado. O livro, porém, é mais forte que as suas falências e essas imagens recuperadas acabam descrevendo uma outra figura, no limite apenas da compreensão, lá onde o que se sabe ecoa incompreensivelmente. “Os poetas estavam lá antes de nós”, escreveu Freud; e Bernardo Carvalho, à sua maneira, chegou antes de nós no terreno do trauma e do testemunho, questões candentes da literatura e da teoria literária contemporânea – mas não (até agora) entre nós.
Neste domínio, não é mais possível afirmar, como Jean-Claude Bernardet em A Doença, uma Experiência, que a ironia é “um valor acima de qualquer outro”; e Bernardo é mesmo um escritor sobriamente feroz, indisponível para as alegrias. Sua literatura é mais do jejum que da festa, mais do magro consolo que da reconciliação. As inúmeras coincidências que vão dirigindo a narrativa tem menos de humor do que de paranóia e a tensão da voz só relaxa, artificiosamente, em quase piadas sobre o poder antecipatório da literatura, ou na presença fugaz dos coadjuvantes Henry Kissinger e Emma Thompson, ou em um ou outro registro da comédia (mais geralmente o transe, ou apuro) sexual.
A ferocidade tem sua dose de sentimentalismo, por certo, mas o melodrama, aqui, foi roubado do melos, que só ressoa inaudivelmente, em tudo o que não foi dito. E nos dois momentos de clímax, no final da primeira parte e em seu espelho parcial, no fim, quando o autor, virtuosisticamente chegado até lá, abdica então do controle e deixa que a literatura – ou que outro nome se dá para o que não é nem bebedeira, nem sonambulismo – tenha a palavra, e seja capaz, afinal, de dizer o que importa.
Nestes momentos, Bernardo Carvalho transcende os limites que ele mesmo se criou, nessas narrativas tão ensimesmadas e obsessivas. Daqui para a frente, como diz um narrador, tudo é verdade e o livro completa um retrato do morto que fica fora daquelas pinturas cariocas. É um morto que o livro traz de volta à vida: o último duplo, testemunha e objeto, sobre cujo rosto o romance vem desenhar, com a força de uma compulsão, as feições amorosas e aberratórias de cada leitor.
Fonte:
Revista USP, n. 36, fev./1998.
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