terça-feira, 20 de novembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 31 de dezembro de 1854: Conto Fantástico


Antes de tudo, preciso contar-vos um caso singular que me sucedeu há dois dias.

Tinha acabado de ler os contos de Hoffman, sentei-me à mesa, cortei as minhas tiras de papel, e ia principiar o meu artigo, quando chegou-me uma visita inesperada.

Se algum dia fordes jornalista, haveis de compreender como é importuno o homem que vem distrair-vos, justamente no momento em que a primeira idéia, ainda em estado de embrião começa a formar-se no pensamento e quando a pena impaciente espera o primeiro sinal para lançar-se sobre o papel.

Haveis de ver que não há nada neste mundo que se lhe compare; nem mesmo o sujeito que vem interromper-vos precisamente na ocasião em que ides fazer uma declaração de amor, ou o maçante que vos agarra e vos faz perder a hora do ônibus ou da barca.

Por isso, podeis imaginar com que mau humor, e com que terrível disposição de espírito, me prepararei para receber a tal visita, que escolhera uma hora tão imprópria, a menos que não fosse uma mulher bonita, para quem estou persuadido que não se inventaram os relógios.

A porta abriu-se; e entrou-me um homem já idoso, vestido em trajes de pretendente, de calça, casaca e colete preto. Havia naquele carão um não sei que, um certo ar de ministro demitido, de deputado que não foi reeleito, ou de diplomata em disponibilidade.

Trazia debaixo do braço um maço enorme de jornais, de planos de estrada de ferro, de projetos de navegação fluvial e de regulamentos e leis brasileiras. Quando dei com aquela papelada, fiquei horrorizado e com a idéia de que o sujeito se lembrasse de a desenrolar.

Enfim o homem chegou-se, fez as duas cortesias do estilo, temperou a garganta, e dirigiu-me a palavra.

- É ao Sr. Al. que tenho a honra de falar?

- Um se criado.

- Pois, senhor, eu sou o Ano de 1854.

- O quê?

- Eu sou o Ano de 1854.

Desta vez não havia que duvidar; tinha ouvido bem. O tal homem dos papéis ou era um hóspede que se tinha escapado do Hospício de Pedro II, ou então queria caçoar comigo. Em qualquer dos casos, não ganhava nada com zangar-me; por conseguinte, tomei o bom partido de aceitar a minha visita por aquilo que ela se anunciava.

- Muito bem, senhor; respondi-lhe eu, queria ter a bondade de sentar-se, e dizer-me o que me dá a subida honra de ser visitado pelo Ano de 1854.

- O senhor não ignora que estou breve a concluir a minha carreira política, e a retirar-me de uma vez dos negócios.

- Não, senhor, não ignoro: depois de amanhã, creio que é dia de São Silvestre, dia em que todos os membros de sua família costumam abdicar.

- É verdade, replicou-me o sujeito com um suspiro; depois de amanhã terei cessado de reinar!

- Mas creio que não foi para me dar esta grande novidade que tomou o incômodo de procurar-me?

- Decerto: o que me trouxe aqui foi especialmente pedir-lhe a sua benevolência.

- Como; a minha benevolência?

- Pois o senhor não é folhetinista?

- Tenho esta honra. 

- Ora, os folhetinistas costumam sempre fazer a despedida ao ano que finda, e emitir o seu juízo a respeito dos seus atos.

- Não me lembrava dessa! Assim...

- Vinha suplicar-lhe toda a indulgência para comigo, visto a boa vontade que sempre manifestei de bem servir, não só a este país, como a toda a humanidade.

- Meu amigo, a boa vontade só não basta. Os homens estão hoje muito positivos; exigem fatos.

- Passo a apresentá-los.

- Então vamos a isso: espere, deixe-me preparar o papel para tomar meus apontamentos. Agora estou às suas ordens.

- Em primeiro lugar, senhor, mencionarei a estrada de Mauá, o primeiro caminho de ferro que se construiu no Brasil. Isto é uma glória que ninguém me pode roubar; um fato pelo qual a posteridade  me abençoará.

- Concordo, sim, senhor; mas que contas me dá das promessas brilhantes da estrada de ferro do Vale do Paraíba, que já se devia estar construindo?

- A culpa não é minha; foi herança que recebi e negócio que já vinha um pouco transtornado. Entretanto, eu organizei a companhia do Juazeiro, e dei começo aos seus primeiros trabalhos.

- Bem, escrevo cá nos meus apontamentos as estradas de ferro; passemos ao mais.

- O senhor lembra-se que fui eu que primeiro empreguei toda a solicitude no asseio e limpeza da cidade...

- Basta, basta!... Por aí advirto-lhe que vai mal. A respeito de limpeza e de asseio da cidade, temos contas a ajustar; o senhor comprometeu-me horrivelmente.

- Eu, senhor! Não é possível!

- Escute-me; quando o senhor começou com as suas azáfamas de asseio das ruas, de regulamentos, etc., eu julguei que o negócio era sério, fiz-lhe o meu elogio, e defendi-o contra aqueles que o atacaram; mas hoje vejo que tudo aquilo quase que não passou de palavras, e que as ruas continuam a ser charcos de lama.

- Mas, senhor...

- Tenha paciência, deixe-me acabar. Há aí uma pretendida rega, que o senhor pôs em voga, e que só serve de enlamear os passeios todas as tardes: ao meio-dia tudo está seco; quando ameaça chover, aí temos as carrocinhas a refrescarem as ruas, provavelmente para que a chuva não as constipe.

- Já vejo que neste ponto o senhor está prevenido contra mim.

- Prevenido, não. O senhor caçoou completamente conosco; não tem desculpas.

- Bem, não insisto mais sobre isso; mas creio que não me poderá negar a iluminação a gás.

- Ah! a iluminação a gás! Não estou bem certo, mas tenho uma lembrança vaga de que já é idéia do 53. Entretanto concedo que seja sua. Como se defende o senhor contra as acusações que se lhe têm feito de nos ter roubado o encanto dos belos  luares, e de haver privado os namorados daquelas noites escuras tão favoráveis a uma conversinha de rótula, ou a um passeio de Rua do Ouvidor?

- Ora, senhor, esses homens não sabem o que dizem: todo o namorado, toda a mocinha – é coisa sabida – precisa de um pouco de gás. Quanto à lua, é já tão antiga que era bem tempo de acabar com ela. Entretanto esses ingratos, que falam de tudo, não se lembram que lhes fiz um grande benefício, livrando-os da lua.

- E esses eclipses não anunciados na folhinha, a má qualidade do gás, o preço exorbitante dos combustores, o cálculo excessivo da quantidade consumida! Como se defende desta e outras censuras graves que lhe têm feito os jornais?

- A falar a verdade, eu carreguei um pouco a mão; mas, além de outras razões, era preciso não desacreditar o gás, vendendo-o muito barato logo em começo.

- Bela teoria! Mas, como eu não possuo ações da companhia do gás, há de permitir que tome uma nota nos meus apontamentos: “iluminação à gás, ainda não satisfatória e muito cara”.

- Porém...

- É negócio decidido: que mais temos?

- A Rua do Cano.

- Isto é, o projeto da Rua do Cano.

- Eu não tenho culpa que o tempo não me chegasse para leva-lo a efeito.

- Mas tem culpa de haver demorado perto de quatro meses a incorporação da companhia; durante este tempo, se o senhor não se andasse divertido com questões de prerrogativas municipais, podia ter ao menos dado começo àquela obra importante.

- De maneira que o senhor não me concede nem a Rua do Cano?

- Concedo-lhe o projeto, e nada mais: a idéia creio que foi de 53.

- Pois bem, passemos agora a uma outra ordem de coisas. Fui eu que iniciei na Câmara dos Deputados diversos projetos importantes; que efetuei a reforma da instrução pública e reorganizei a Academia das Belas-Artes. Parece-me que esses fatos são títulos à estima pública.

- Certamente, sou o primeiro a confessar; é verdade que eu tenho minhas dúvidas sobre alguns desses melhoramentos; mas isto são coisas que eu tratarei de deslindar com o seu sucessor, que amanhã deve-se mandar o seu bilhete de faire part.

- É preciso não esquecer as condecorações do dia dois...

- O quê? O senhor toma-me por algum oficial da secretaria do Império?

- Como! O senhor mesmo já não me elogiou por ter tido a idéia deste fato?

- Está enganado; elogiei-o  por ter cumprido o legado dos cinco anos passados; e, de mais, isto é uma coisa que pode dar glória a um dia como o 2 de dezembro, mas nunca a um ano como o senhor.

- Finalmente esta cidade não pode deixar de agradecer-me o não ter querido imitar aquele  malvado 1850.

- Parece sepultis, meu caro.

- Perdão, senhor: não quero falar mal de ninguém; mas, à vista daquele ano, acho que se deve levar-me em conta a ausência da febre amarela e de outra qualquer epidemia.

- Ora, é boa! Nisso não fez o senhor mais do que cumprir o seu dever.

- Entretanto...

- Espere... espere... lembra-me agora; e aquele grande medo que o senhor nos meteu com o cólera!

- Ora, senhor! Retorquiu-me o sujeito com um risozinho malicioso!

- Explique-se.

- Aqui em segredo; aquilo foi um negócio com os médicos.

- Não se zangue, senhor; lembre-se do que eu fiz pelos advogados com a questão das sociedades comanditárias; do que fiz pelos jornalistas, à quem presenteei com uma boa quantidade de pufs; lembre-se, finalmente, que esse mesmo receio do cólera deu-lhe matéria para um folhetim em ocasião em que o senhor estava bem apertado.

- Bem; o dito por não dito. A respeito da salubridade pública pode ficar descansado.

- Agradeço infinitamente a V. S.

- Não se apresse tanto; talvez no fim tenha muito que agradecer-me. Até aqui tem o senhor alegado os seus direitos; agora há de permitir-me que capitule as minhas queixas. Trate, portanto, de defender-se, bem.

- Farei o que puder.

Havia algum tempo que me parecia que o tal sujeito ia emagrecendo de uma maneira espantosa, e tornando-se delgado como um varapau; mas, como era alta a noite, atribuí isto à alucinação da vista, efeito talvez da fadiga e dos raios amortecidos da luz, que mal esclarecia o vasto aposento. Não fiz, portanto, muito caso disto, e tratei de continuar a minha singular conversação.

- Meu caro senhor, sinto dizer-lhe que o senhor, embora me desse alguns momentos de prazer, contudo fez-me muitos males, e um principalmente que eu não lhe posso por maneira alguma perdoar.

- Qual, senhor?

- O ter-me feito mais velho um ano.

O homem ficou fulminado. Eu continuei:

- Roubou-me uma boa parte daquelas ilusões dos primeiros anos da mocidade; desfolhou-me algumas dessas flores que nascem nos seios d’alma, orvalhadas com as primeiras lágrimas do coração, e que perfumam os sonhos mais belos desta vida.

Cada dia, cada hora, cada momento que passa, rouba-nos um pouco dessa poesia sublime, que embeleza os nossos prazeres e consola as nossas dores. Lá vem tempo em que a alma perde as suas asas de ouro, asas que Deus lhe deu para voar ao céu.

O que há neste mundo que valha os nossos sonhos cor-de-rosa, as nossas noites de plácida contemplação, os idílios suaves de nossa imaginação a conversar com alguma estrela solitária que brilha no céu, semelhante a essas amizades santas.

Qui se cachent parfois em nos heures d’azur,
Et reviennent à nous em entendant nos plaintes?

Quando todas essas flores murcham, que resta para encher o vácuo que fica em nossa alma? Nada: o tempo foge rapidamente, e apenas deixa uma ruga na face, alguns cabelos brancos na cabeça, e um número de mais à soma dos nossos dias.

- Não, Com os anos aí vem os pensamentos sérios, as grandes coisas, a glória, a ambição, a política, as honras, os estudos graves. Confesse que isto vale mais do que todas estas frivolidades que preocupam o espírito da mocidade, e com as quais se gasta o tempo inutilmente.

Chama a isso frivolidades? O que é então que há neste mundo de sério e de real? A glória, porventura? É interessante; trata-se de bagatela o amor, as verdadeiras afeições, as mais belas expansões de nossa alma, zomba-se do homem que segue por toda parte em vestidinho de uma certa cor, que se mataria por um sorriso, e que guardaria preciosamente uma flor murcha que caísse de um buquê.

Entretanto vós, homem sério e grave, que calculas refletidamente, que do alto da vossa importância lançais um olhar de desprezo para essas futilidades do mundo, que fazeis vós?

Sacrificais a vida, a preguiça, o prazer, como diz Alfonse Karr, para um dia atar à gola da casaca uma fita de uma certa cor. Enquanto nós suplicamos um sorriso de uma bela mulher, vós daríeis um dedo da mão pelo sorriso do ministro ou do conselheiro de Estado.

Desprezais a moda; é uma coisa ridícula, mas sonhais noite e dia com a farda bordada. Se nós esquecemos tudo para, em um momento de expansão, colher numa linda boquinha rosada duas palavras que nos abrem o céu, vós renegais os amigos, prostituís a consciência unicamente para ter o prazer de ouvir (qu glória!) um passante dizer-vos – Sr.Barão.

Oh! se tudo é ilusão e quimera neste mundo, meu Deus, deixai-me os lindos sonhos da mocidade, deixai-me as visões poéticas de meus vinte anos, as minhas horas de cismar, deixai-me todas estas futilidades, e reservai para outros as coisas sérias, calmas e refletidas. Mas isto é um vão desejo. Daqui mais a alguns anos tudo terá passado, e também entraremos, como os outros, na luta dos homens graves e sisudos, e, como eles, lançaremos um olhar de desdém para essas páginas douradas da nossa vida. Apenas, nas horas da solidão, nos virá encantar a doce recordação desses belos dias em que tínhamos, como diz Lamartine:

     Um flot calme, um vent dans as voile;
     Toujours sur as tête une étoile,
      Une espérance devant lui.

Não sei se dizia, ou se unicamente pensava todas estas coisas. Tinha-me esquecido do meu hóspede.

Deu meia-noite. Senti um estalar de juntas. Voltei os olhos para o sujeito. À última pancada do relógio, um outro homem se destacou do primeiro e desapareceu.

Obstupui, steteruntque comae, et vox faucibus hoesit. Fiquei pasmo. Decididamente passava-se naquele momento alguma coisa de fantástico e de sobrenatural.

Entretanto o sujeito, calmo, mas repentinamente emagrecido, olhava-me  com um semblante tranqüilo, um pouco melancólico.Compreendeu o meu espanto, e respondeu à pergunta muda que lhe fazia o meu olhar espantado:

- É o dia 29 que acabou, e que se foi embora. Só me restam agora dois dias de vida.

Esta resposta ainda mais me atordoou. Mas afinal, como o meu companheiro esperava pacientemente a continuação da conversa, tomei uma resolução; acendi o meu charuto na vela que estava quase a apagar-se, e fui por diante, disposto a não me admirar de mais coisa alguma.

Palestramos muito tempo. Dissertamos sobre a guerra do Oriente, sobre a Europa, e mais largamente sobre os futuros destinos do Brasil. Contou-me algumas crônicas escandalosas, que presenciou, referiu-me muita anedota engraçada e muita história galante.

Viemos a falar do teatro; e ele confessou-me francamente que, a princípio, tentou deita-lo a baixo com o negócio das tesouras, e mesmo com algumas chuvas e  com a grande ventania do mês passado. Que infelizmente não o conseguiu; e por isso assentou de torna-lo a coisa mais ruim e a mais desenxabida, para ver se assim se resolvem cuidar da ópera lírica, e a construir um edifício digno desta corte.

Por fim, já pela madrugada, comecei a fechar os olhos insensivelmente, e não sei o que mais se passou.

Agora, meu leitor, se vos destes ao trabalho de ler o que ai ficou escrito, talvez desejeis saber a explicação disto. É muito simples. Tinha, como vos disse, acabado de ler alguns contos de Hoffman. Suponde que, como eu, folheais uma daquelas páginas, e segui a regra da antiga sabedoria – Nihil admirari.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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