terça-feira, 27 de novembro de 2012

Teatro de Ontem e de Hoje (Bugiaria - O Processo de João Cointa)


Com dramaturgia formada por fragmentos de documentos históricos, Moacir Chaves concebe uma linguagem que confronta dois tipos de estética para falar de colonizadores e colonizados.

A pesquisa histórica que dá origem ao espetáculo parte do processo movido pela inquisição brasileira contra o luterano João Cointa.

Os documentos selecionados são de basicamente duas fontes: os arquivos do processo, que relatam depoimentos e procedimentos - como a tortura, por exemplo - com relatos de historiadores sobre o Brasil Colônia. O diretor Moacir Chaves vê neste material a possibilidade de confrontar duas éticas: a dos selvagens brasileiros e a das instituições colonizadoras. A cada trecho histórico corresponde uma cena independente, cada cena com sua própria técnica de teatralização. Esta diversificação cênica ajuda a delinear uma narrativa, na medida em que o texto do espetáculo é desprovido de ação dramática e a linguagem dos documentos se repete. O contraste entre uma cena e outra faz com que a platéia passe por vários modos de fruição.

Há sempre dois discursos em curso, o da palavra e o da ação, que nunca são uníssonos. O texto que se ouve pertence a um português de muitos termos em desuso e de termos técnicos do meio judiciário. A história de João Cointa se oculta em vários momentos por trás de textos que não dão pistas da trajetória do dito protagonista. Ao mesmo tempo, o discurso da ação traz um alto grau de teatralidade - seja por meio do circo, do elemento musical, da comicidade rasgada, do humor chulo, do histrionismo do ator. O resultado deste confronto é que a maior parte do público tende a desistir de extrair uma história daquilo que se passa em cena - e se diverte com as macaquices (bugiarias) dos atores. Para o público que insiste e, além de perseguir a história, procura extrair um sentido do confronto entre o texto e a cena, o espetáculo oferece algumas surpresas. Um exemplo dos mais claros é a cena em que a única atriz do elenco, Josie Antello, no meio de uma roda de homens, é inesperadamente erguida do chão e rodopiada no ar. O texto descreve o processo de tortura. O susto da atriz se repete. Até que ela começa a temer a repetição. Mas tudo se realiza sem nenhum clima de seriedade. Pelo contrário, toda a cena é preparada de forma a se tornar o mais hilariante possível. Os movimentos da atriz a fazem parecer uma boneca; seu grito agudíssimo no final, surpreende e faz rir pela sua impotência.

Em alguns poucos momentos o contraste se inverte - a palavra passa a ser a portadora da bugiaria enquanto a cena é construída com solenidade. O exemplo mais evidente é a música pornográfica cantada com arranjo vocal e posição empostada de quem entoa um madrigal; ou o hino nacional tocado em um serrote. 

Enfim, a linguagem de Bugiaria se forma pela investigação das possibilidades de confronto entre o grotesco e o elevado, por meio do texto e da interpretação. O desempenho dos atores é o que dá sustentação a uma proposta que necessita ser francamente cômica e teatralmente irresistível para atingir seu objetivo. Alberto Magalhães, que também atua como pianista, e Cláudio Baltar, que assina a preparação corporal, se encarregam dos trechos circenses e de virtuosismo físico. Cândido Damm, Cláudio Mendes e Orã Figueiredo compõem os vários tons de comicidade do espetáculo. O cenário de Fernando Mello da Costa acompanha a proposta da direção, construindo um espaço caótico, composto de pedaços de outros cenários, de restos de objetos, de volumes sem identificação.

O crítico Macksen Luiz observa que: "Os hábitos antropofágicos dos índios, o processo contra o francês João Cointa, julgado pela simpatia pelo luteranismo, e os rituais de execução da Santa Inquisição saltam dos relatórios para o palco sem qualquer preocupação de torná-los atuais ou com linguagem acessível. Conservam-se a terminologia empolada e o detalhamento de minudências, e apenas quando uma palavra soa desconhecida recorre-se a uma pausa didática, sempre bem-humorada, para revelar seu significado. É a única concessão ao "didatismo", já que Bugiaria deixa tudo evidente sem recorrer a explicações desnecessárias sobre os ritos de aniquilação dos índios e dos europeus".[1]

O espetáculo recebe o Prêmio Governador do Estado do Rio de Janeiro.

Notas
1. LUIZ, Macksen. Relatório irreverente e empolado. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 dez. 1999.

Fonte:

Nenhum comentário: