quinta-feira, 29 de novembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 18 de março: Semana de Aniversários


A semana que passou foi a dos aniversários felizes.

Domingo festejaram-se os anos da nossa Princesa, que trocou a bela terra do Brasil pelo poético céu da Itália.

Quarta-feira teve lugar a solenidade do aniversário da nossa Imperatriz, que deixou as lindas ribeiras de Nápoles pela majestosa baía do Rio de Janeiro.

Assim, logo após da saudade, veio uma lembrança prazenteira. Se perdermos por algum tempo uma flor graciosa da nossa coroa imperial, ganhamos para sempre um anjo de bondade, um exemplo das belas virtudes.

E isto me faz lembrar do quanto somos devedores àquela boa terra de Itália, que nos confiou com tanto prazer a filha de seus reis, e acolheu com tanto amor a irmã do nosso monarca.

Sem falar dos artistas que daí nos têm vindo, e das belas noites de teatro que devemos à sua escola e aos seus gênios musicais, lembremo-nos que é lá, nessa terra clássica das artes e do belo, que muitos brasileiros se têm ilustrado e adquirido os conhecimentos que atualmente são aproveitados em bem do país.

Foi ainda no meio dessas ruínas seculares de tantas gerações que passaram, no solo onde viveu o povo rei, na terra em que nasceu Virgílio, que um poeta brasileiro foi beber as últimas inspirações do seu poema nacional, como que para imprimir-lhe esse cunho de grandeza e de sublimidade que o tempo tem deixado na história daquele povo.

Tudo isto  deve o Brasil à Itália; porém mais que lhe devesse o pagaria com o amor e a dedicação que consagra à sua Imperatriz, e da qual ainda quarta-feira deu uma prova bem solene.

Todo este  dia foi votado às graças. De manhã apareceu a lista daqueles cujos serviços a munificência  imperial, julgou dever remunerar. Logo depois vieram as graças daqueles que, não vendo seus nomes contemplados, motejavam dos outros e especialmente dos ministros. Á noite tiveram os dilettanti as graças do D. Pascoale, que é de crer fossem engraçadas.

Estive alheio inteiramente a tudo isto; mas uma coisa me deu que pensar seriamente. Acho o direito de agraciar uma das mais belas instituições da monarquia; compreendo que os homens possam ser crismados em barões, condes e marqueses; mas há uma coisa a que decididamente não me ajeito, e é como se poderá fazer um sujeito feio, desengraçado e sem elegância, um gentil-homem.

Está bem entendido que isto se refere a nenhum dos últimos agraciados, que são perfeitos cavalheiros, servidores antigos, e que todos mereciam o favor do monarca. É uma simples hipótese que por ora não tem aplicação, e que o espírito e bom-senso imperial repelem para não haver ocasião de se parodiar o dito de D. Pedro I a respeito do cavaleiro.

Um sujeito, contando-me ontem os festejos do dia quatorze, disse-me: “Houve graças, des-graças, e sem-graças. As graças os jornais publicaram; as des-graças sabem os que ficaram logrados; e as sem-graças foram as daqueles que esperavam uma coisa e tiveram outra”.

Até que ponto isto é exato não sei; apenas me lembro que já os nossos antigos diziam que não podia haver graça sem sal; razão esta porque naturalmente se inventaram os emolumentos, que algumas vezes são bem salgados.

Já é tempo de passar adiante e acabar por hoje com as graças, tanto mais quando já me saí mal por ter tido o arrojo de dizer que o país devia dar justiça de graça.

Como me escapou semelhante blasfêmia? Pois num tempo em que tudo se compra e se vende, em que até se trafica com o pensamento e com a consciência, é possível fazer-se coisa alguma gratuita?

Tudo tem um preço. A honra, a probidade, o dever, a reputação essas coisas sagradas que Deus confiou ao coração humano, têm a sua cotação. Porque a justiça sairá da regra geral, e deixará de receber a sua espórtula?

Já se vê que foi um absurdo em caí. Não há coisa mais razoável e mais sábia, como disse um correspondente do Jornal do Comércio, do que obrigar-se as partes a pagarem aos magistrados e oficiais de justiça, visto que estes empregados são instituídos para utilidade pública.

Ora, os ministros de estado, os presidentes de província, os militares, todos os funcionários públicos enfim são criados para utilidade pública; por conseguinte, em vez de ordenado, dêem-se-lhes custas. O ministro ganhará dois mil réis por cada nomeação, privilégio, ou graça que conceder; dez tostões por cada aviso ou portaria, etc..

Não vêem como simplifica-se de repente todo este mecanismo administrativo, que a França e a Prússia – nações ignorantes e atrasadas – tanto têm estudado, e tanto se esforçam para regularizar? Deixará de haver tesouro, repartição de fazenda e leis de orçamento, e sistema de impostos, e receita e despesa pública. Tudo isto é burla. Quem precisar do empregado que o pague; o governo o nomeia, o país o tolera, e nisto já fazem muito.

Quem diria que a ciência administrativa, tão desenvolvida na Europa, tinha de ser completamente aperfeiçoada por um gênio brasileiro que oculta modestamente o seu nome com receio de assombrar o mundo?

Que força de dialética, que lógica de aço! Os franceses têm as epices; logo nós devemos conservar as custas. Pobre genuense! Que eras tu à vista deste portento?

E eu animei-me a tocar na arca santa, no sagrado paládio, no regimento das custas? Uma obra elaborada pelas sumidades pretorianas pode ser discutida aí por qualquer moço que ainda não tem, e nem quer ter, o cHarlatanismo necessário para se fazer alguma coisa?

Fechem-se as câmaras; mandem-se os senadores e deputados passear à Europa em missão especial ou geral; acabe-se de uma vez com a imprensa e com a tribuna. Não percamos o tempo, que é precioso. O ministro fará as leis, e, tendo-as feito, não haverá que retrucar, magister dixit.

Santo regime! Quando te veremos em inteiro vigor, para felicidade do país, para sossego e a paz do governo? Então a marcha da administração se aperfeiçoará. Os ministros serão os únicos que terão o direito de saber alguma coisa; e, depois deles, só os que estiverem dispostos a defende-los cegamente, sem critério e sem consciência.

Os outros, aqueles que julgam do seu dever expor francamente  uma opinião contrária, mas que nada tem de ofensiva ao caráter do ministro, aqueles que entendem que a censura leal é a prova mais evidente da sinceridade de uma aliança de idéias e de princípios, estes serão classificados no rol dos ignorantes, porque não receberam de algum gênio engarrafado o placet da ciência e do estudo.

Assim, pois, o dito por não dito. O regimento das custas é uma obra perfeita, tão perfeita, que, sendo publicado a cinco deste mês, no dia oito, isto é, três dias depois, o presidente da relação se viu obrigado a oficiar três vezes ao ministro da justiça sobre a inteligência de algumas de suas disposições.

A razão disto não é a que muita gente supõe, não é o sentido dúbio e confuso das palavras empregadas. Qual! os homens são imperfeitos; e por isso não podem compreender toda a sabedoria daquele novo mandamento do monte Sinai, daquela lei das Doze Tábuas.

Querem ver outra perfeição do regimento de custas, que é  muito sublime para ser compreendida por inteligência como a nossa?

Diz o art.169 que o porteiro dos auditórios perceberá meio por cento sobre o valor dos objetos arrematados. Suponhamos que o mínimo das arrematações civis e comerciais feitas nesta corte seja dois mil contos, o que é um cálculo muito restrito. Temos uma percentagem de dez contos de réis, que por três porteiros dá só por si um ordenado três vezes superior ao que tem qualquer juiz municipal, qualquer deputado, qualquer juiz de direito ou oficial de secretaria.

Pode-se duvidar da sabedoria de semelhante disposição?

É possível ainda negar a conveniência, a necessidade das custas, que produzem tantas vantagens práticas?

Lede o Art. 61, e comparai-o com o Art. 167. O presidente da relação tem por cada sentença que transitar pela chancelaria o mesmo que seu porteiro, isto é 300 rs. Como é belo para a justiça e para o prestígio da magistratura este exemplo de igualdade, que manda que o chanceler e o seu porteiro – os dois elos quase extremos da hierarquia judiciária – se toquem e estendam a mão para receber seis ou oito moedas de cobre!

Que emblemas, que símbolos inventados pelos povos da antiguidade valem semelhante lição? Que invenção moderna pode substituir a harmonia e a uniformidade desta sublime instituição das custas, que alguns vindouros querem que se reforme?

A princípio, quando comecei a escrever sobre o regimento tinha a idéia de que se deviam acabar com as custas, os emolumentos, e dar-lhes o caráter de uma contribuição percebida, como qualquer imposto, pela repartição competente. Assim, sobre as causas se cobraria, em vez de dízimos de chancelaria, uma percentagem que se julgasse acertada, e que a parte pagaria no ato de levantar o dinheiro da execução; e com isto remunerasse o Estado os seus empregados de justiça.

Hoje já nem me lembro de tal coisa. Era uma extravagância, que me passou, apenas pude  apreciar as inúmeras belezas que formigam no regimento das causas.

E por hoje basta de tanta maçada; não achais, meu benévolo leitor? Deixemos em paz a justiça, que irá tranqüilamente fazendo seu negociozinho aos duzentos e trezentos réis, e vamos falar de outras coisas, tristes e alegres, por que esta é a ordem do mundo.

Já deveis saber que o Sr. Conselheiro Eusébio de Queirós foi acometido, na noite de segunda-feira, de uma moléstia grave, da qual felizmente já se acha melhor. S. Ex.ª tem sido visitado por seus numerosos amigos, que deram ainda mais uma prova de grande consideração que votam ao distinto estadista brasileiro.

Desejamos de coração o pronto restabelecimento de S. Ex.ª tanto mais quando também acabamos de curtir à beira de um leito de dor todos  os transes cruéis de sofrimento e de angústia.

São páginas negras do livro da nossa vida, que devemos voltar com paciência e resignação, para chegar às folhas brancas e douradas, às imagens risonhas de dias mais felizes e mais tranqüilos. A dor, disse Lamartine, remoça o homem, dá-lhe nova força, novo vigor. Tu fais l’homme, ô douleur! 

Parece que, depois de uma crise de sofrimento, a  alma se apura, adquire um tato finíssimo, capaz de sentir as mais delicadas impressões, uma sensibilidade esquisita para os menores prazeres.

A enfermidade tem um quer que seja das viagens.

É uma viagem um pouco perigosa, muito incômoda, e que, em lugar de ser feita em um vapor ou em um vagão, o é sobre um leito ou sobre uma enxerga. Às vezes naufraga-se, salta-se com explosão do vapor; mas, se chegamos ao porto, se saltamos em terra, tudo nos parece novo, tudo nos sorri, tudo é cor-de-rosa e perfumado. A água é uma bebida do céu, o pão é um manjar dos deuses, o dia é uma festa de reis, o sono é uma voluptuosidade do paraíso, sibaritismo do sultão.

Talvez seja por esta semelhança que se dá a coincidência de cair no mesmo tempo a quadra das moléstias e das viagens. Tudo parte, tudo vai mar em fora, ver novos climas, correr terras, para ter na volta o que contar.

Queixam-se por aí que tudo vai para a exposição. De Paris, menos os nossos produtos. Quem sabe? Talvez que a par da Estrela do Sul apareçam na exposição muitos outros produtos brasileiros, muitas raridades dignas de menção.

Os novos viajantes vão achar em Paris uma verdadeira epidemia bailante. Tem havido para mais de 500 bailes. A febre é geral: dança-se nos palácios, nas embaixadas, nos hotéis, nas casas, nos salões e nos prados, sobre a relva e sobre os tapetes.

Além da dança, a única coisa em que os franceses presentemente se ocupam é na conjugação do verbo fiar e seus compostos.

Assim, os homens fiam seu dinheiro por subscrição; as mulheres desfiam pano para os feridos da Criméia; o imperador confia nos seus generais e no seu exército; a gente timorata desconfia do feliz êxito da guerra; Bosquet enfia balas pelo corpo dos russos; Canrobert porfia no seu projeto de arrasar  Sebastopol.  

A guerra pode dizer-se que está reduzida a fios. Onde passou o fio da espada, aplicam-se fios de linho. Os homens incumbiram-se do primeiro; as mulheres do segundo. Que fases não tem tomado essa luta de gigantes?!

Antes de vos deixarmos, temos ainda um triste dever a cumprir. Celebrou-se a missa por alma do Deputado Aprígio, e, apesar de tantos amigos que o finado tinha nesta corte, aquele ato foi muito pouco concorrido.

Não é fácil explicar-se semelhante fato, pois que o aviso para a missa foi feito pela folha oficial, que a anunciou nas suas colunas como um holocausto do governo. É verdade que, não tendo os membros do gabinete feito um convite em seu nome, talvez entendessem os amigos do falecido que se tratava de uma solenidade muito particular, a que só deviam assistir as sumidades; e por isso guardaram a conveniente reserva, e não compareceram.

Não há remédio, pois, senão reunirem-se os amigos do Dr. Aprígio, e pagarem à sua memória o devido tributo de saudade e de estima, fazendo dizer uma missa solene, ou um ofício sem caráter político, sem reserva de pessoas; a este ato estamos certos que assistirá um numeroso concurso das pessoas mais distintas desta corte.

Acabamos por onde começamos, pelas graças. Temos algumas pequenas observações a fazer sobre os estilos oficiais em voga neste ponto.

Assim, nos parece mais regular desenglobar os despachos e cometer a cada ministério a referenda das graças concedidas por serviços feitos nas suas respectivas repartições, ou em objetos que lhe são anexos.

Conviria igualmente criar-se uma ordem destinada exclusivamente a premiar o merecimento literário, assim como existe uma para os serviços militares. Chame-se esta ordem a Estrela do Sul, à imitação do Cruzeiro, ou a Plêiade Imperial; demos-lhe enfim um nome que tenha alguma significação, e acabemos com o costume de premiar a inteligência com a mesma graça com que se remuneram serviços de uma ordem muito diversa.

Esta idéia, realizada com a sabedoria e a prudência que é de esperar, traria grandes vantagens, porque excitaria os estímulos, criaria, uma emulação salutar, e daria assim  incremento ao nosso progresso literário. Apreciamos todos os serviços feitos ao país, qualquer que seja a sua natureza; estimamos que todos sejam galardoados; mas desejamos que se dê ao talento, à inteligência, às ciências e às artes essa nobreza e essa distinção, que lhes cabe por todos os títulos.

E deixai-me dizer-vos uma coisa. Esta idéia me sorri ainda mais, porque o grão-mestre da ordem merecia sê-lo, ainda quando não tivesse uma coroa. Quanto aos dignitários, que seriam sete, no caso de adotar-se o título de Plêiade Imperial, deviam ser escolhidos de entre os que temos de mais distinto e de mais ilustre.               

Para dar à condecoração maior merecimento e para tirar-se dela grande utilidade, podia fazer-se com que formasse uma verdadeira ordem, trabalhando em sessões regulares como o Instituto de França, e sob a presidência de Sua Majestade como grão-mestre, ou do dignitário mais antigo. Quem sabe daqui a alguns anos que importância não teria semelhante instituição, e que glória não daria ela ao nosso país?

Agora é que me lembro! Estou a perder o meu tempo! Não há dúvida que esta minha idéia é bela, é digna de um monarca erudito, e de um povo que tanto se distingue pela sua aptidão literária; mas não foi lembrada por um homem que já tenha alguns cabelos brancos e uma dose de importância e de morgue; portanto  não presta decididamente.     

Dizem que aos vinte anos se pode pensar assim por si, nem ter uma boa idéia. Entendem que a inteligência vigorosa e ardente dos moços deve estar ao serviço dos velhos, os quais brilham como essas flores parasitas que sugam das árvores novas e robustas a seiva com que alimentam a sua vegetação raquítica.

De que servem esses lampejos brilhantes, essas centelhas de fogo, que passam às vezes pelas almas jovens e iluminam de repente um mundo de idéias, ou desenham um horizonte vasto e imenso? É preciso que estas faíscas do talento sofram o bafo frio e enregelado dos velhos? Por que esta chama da inteligência, em vez de expandir-se livremente, há de ser condenada a aquecer a alma gasta e consumida de um corpo vergado pelos anos?

Não foi deus que estabeleceu esta tutela despótica e sem limites que a idade quer exercer. Não: Deus mandou respeitar os velhos, como as mulheres, porque são fracos; Deus mandou consultar aos velhos, como aos livros, porque neles se encerra a história da experiência; porém Deus deu à mocidade a força, a esperança, a ambição, confiou dela o trabalho, a ação, o progresso, e apontou-lhe o futuro.

Ninguém venera mais a velhice do que eu; ninguém sabe melhor compreender o que há de respeitável numa grande inteligência que alimenta ainda um corpo gasto pelos anos; mas o que acho irrisório é que pense que toda a ruga é um poço de ciência, que todo o cabelo branco é um título de capacidade.

Felizmente o tempo dos desenganos aí vai chegando; o círculo de ferro já se quebrou; e o país já começa a aborrecer-se dessas patentes de capacidade e de ilustração dadas num salão de baile, ou numa antecâmara de ministro.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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