sábado, 10 de novembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 3 de dezembro: Os Grandes Dias da Pátria


Um dos mais belos traços que apresenta a história da humanidade é o culto respeitoso que votam os grandes povos aos grandes dias de sua pátria. A influência misteriosa que exerce o passado sobre o futuro tem o que quer que seja de grande e de sublime.

Há um sentimento nobre nessa força irresistível que de ano a ano, de século a século, num momento determinado, obriga as gerações que se vão sucedendo a irem por sua vez depositar no livro dos fatos nacionais o testemunho de uma justa veneração pelas suas antigas tradições, renovando, com o exemplo, a fé e a crença nas instituições do país.

As datas memoráveis figuram na vida das nações como esses marcos que se colocam à beira do caminho para designar o espaço percorrido, e ao pé dos quais o viandante vem descansar, refazendo-se das fadigas e cobrando novas forças para continuar a jornada.

Assim, quando o historiador, elevando-se pelo pensamento acima das condições materiais da existência humana, lança os olhos sobre o quadro da humanidade, pode ver cada povo, cada nação, percorrendo seu caminho através dos séculos, como o indivíduo que transpõe dia por dia o curto espaço da vida.

Como o indivíduo, a nação passa por todas as vicissitudes da experiência, vai da infância à velhice, do mal ao bem, sofre todas as alternativas da fortuna. Como o homem tem o germe de todos esses nobres sentimentos que vivem no coração, fortifica-os pela união, engrandece-os pelo entusiasmo e os transmite pela tradição.

Como nós, o povo sente todos os afetos, curte todas as dores, experimenta todos os estados da vida. Como nós, ama, odeia, chora, ou ri; é um pai ou um filho, um amigo ou um inimigo; é um menino frágil que precisa ser guiado, um delinqüente a quem se inflinge o castigo, e muitas vezes um soberano que dita a sua vontade e impõe a lei.

Por isso há vinte e nove anos, no dia de ontem, a nação brasileira vinha aos pés de um berço saudar o nascimento de um menino com toda a efusão do homem que contempla o seu primeiro filho. Durante quinze anos serviu-lhe de pai; e em todo esse tempo nem uma só vez se desmentiu esse amor paternal que a nação votava ao seu Imperador ainda na infância.

Veio o ano de 1840. À infância segui-se a juventude; o berço foi substituído por um trono. A nação brasileira veio então, não mais como um pai e sim como um depositário fiel, restituir a coroa e o cetro que lhe foi confiado. A cena ia mudar-se: o amor,que um dia fora paternal, começava a envolver-se do respeito que inspira o poder e a majestade.

Deixemos ainda correr o tempo; cheguemos ao dia de ontem; vinte e nove anos apenas nos separam, porém a mudança é completa. Sabeis o que significam essas festividades que por toda a extensão do país celebram o dia 2 de dezembro? Sabeis que sentimento exprimem essas manifestações espontâneas da nação, por ocasião do aniversário do seu monarca?

É o povo brasileiro que, como um filho reconhecido, veio aos degraus do trono para beijar a mão ao pai da nação, para agradecer-lhe os benefícios recebidos e pedir-lhe ainda a direção, a paz, o trabalho, a instrução, a indústria, a colonização, e todos esses germes da civilização, que o país encerra no seu seio, e que serão um dia fecundados pelo pensamento criador do seu governo.

A esta grande manifestação do seu povo, o Imperador respondeu agraciando-o na pessoa daqueles brasileiros cujos serviços entendeu mereciam ser remunerados. Algumas dessas mercês não são unicamente uma graça, mas uma antiga dívida que S.M. pagou em nome da nação a alguns velhos servidores do nosso país. Entre estes há especialmente alguns nomes que, para fazer-se o seu elogio aos brasileiros, basta despi-los do seu título e repeti-los.

Havia cinco anos que não se realizava esse poético costume das monarquias, de fazer a distribuição das graças nos dias aniversários de algum acontecimento feliz. Sempre uma contrariedade qualquer vinha obstar aquele ato. Este ano, porém, as circunstâncias favoráveis de uma atualidade calma e serena permitiram.que a munificência imperial pudesse ao mesmo tempo pagar as dívidas da nação e auxiliar a realização do pensamento de união e concórdia, que é o programa de governo do Sr. D Pedro II e o seu voto o mais ardente como Brasileiro e como soberano.

Este ano já a tolerância tinha passado a esponja por sobre todos estes nomes de guabiru e de praieiro, de luzia e de saquarema, de exaltado e conservador, aos quais outrora os ódios políticos fizeram representar na luta encarniçada dos partidos o papel de guelfos e gibelinos. S.M. por conseguinte podia lançar os olhos pela união brasileira, e ver unicamente cidadãos que se distinguiam pelo seu mérito e pelos seus serviços, sem que uma necessidade dolorosa do seu governo viesse, como nos anos anteriores, batiza-los de ministeriais, de descontentes, ou de oposicionistas. O preceito constitucional começou enfim a ser para os brasileiros uma verdade benéfica, precursora de novos melhoramentos.

Além desses fatos, que se prendem necessariamente ao dia 3 de dezembro, tiveram ontem lugar alguns extraordinários, que foram reservados para este dia, para assim receberem maior realce e se realizarem sob os auspícios felizes de uma data memorável para o Brasil.

Às dez horas do dia a Câmara Municipal desta corte inaugurava na sala de suas sessões, em presença de um grande concurso, o novo retrato de S.M. O salão está pintado com todo o apuro. O teto representa um quadro alegórico da indústria e do comércio, trazendo a abundância ao Brasil; aos lados estão os bustos de D. João VI e de D. Pedro I, do conde de Bobadela, de D. Luís de Vasconcelos, de Estácio de Sá e de José Bonifácio.

Todo o trabalho de pintura, executado por R, d’Agostini e Júlio Lechevrel, debaixo da direção dos Srs. Porto Alegre e Costa Ferreira, é digno de atenção pelo bem acabado e pelo risco do desenho; merece com efeito ser examinado pelas pessoas que sabem apreciar essas obras de arte, ainda bem raras em nosso país.

Depois desta solenidade teve lugar na Academia das Belas Artes, por volta do meio-dia, a inauguração da Pinacoteca Imperial pelo Sr. Ministro do Império. A medalha da inscrição gravada na casa da moeda, com o busto de S.M. numa face e o nome do fundador na outra, é um trabalho que mostra os progressos que vamos fazendo neste ramo de arte.

A fundação da Pinacoteca Imperial, destinada à exposição das obras dos artistas nacionais, vai dar um salutar impulso ao desenvolvimento da pintura, da escultura e da estatuária no nosso país. É com as suas grandes exposições anuais, com os seus prêmios de honra, que a França, promovendo uma nobre emulação entre os artistas e criando o bom gosto na população, tem conseguido elevar a arte a um grau de perfeição e desenvolvimento qu atualmente nada tem que desejar à Itália, a terra das obras primas, a pátria dos grandes pintores, dos grandes estatuários, dos grandes arquitetos.

O dia que começara tão artisticamente  devia acabar da mesma maneira, e de fato acabou com a representação do Roberto do Diabo no Teatro Lírico. Apesar de estarmos conversando hoje, creio que compreendeis bem a razão por que não vos conto alguma coisa dessa representação que se deu ontem: são coisas da imprensa.

Contudo, como estamos no teatro, suponde que houve na cena uma mutação rápida, e que vos achais de repente num salão iluminado, no meio de música, de perfume, de flores, de espelhos, de moças, e de velhas também. Dança-se... Adivinhai o quê?

Não é nem quadrilha diplomática, nem a valsa estonteada, nem a schottish com os requebros, ou a polca com os seus pulinhos. É uma coisa que tem um pouco de tudo isto, é que me faz lembrar o meu bom tempo de colégio, porque há uma espécie de marcha que se executa ao som de palmas, tal e qual como nas classes. Chama-se esta dança Ril da Virgínia, terra donde eu sabia que vinha bom fumo, donde não me consta que nunca se despachassem danças na alfândega.

O caso é que, pela alfândega ou por contrabando, dança-se hoje no Rio de Janeiro o Ril da Virgínia, que os velhos bailarinos aborrecem de morte, pela razão muito simples de não admitir canelas de cinqüenta anos passados. Os moços, porém, adoram-no; e isto também por uma razão muito simples: porque cada um, embora tire seu par, nem por isso deixa de danças com todas as moças, e de ser ao mesmo tempo par de todos os pares dos outros.

De maneira que agora já não há risco de se ir tarde para o baile, e não encontrar o par que se deseja; nem de andar a catar pelo meio, e não encontrar o par que se deseja; nem de andar a catar pelo meio da casa moças bonitas e espirituosas. Outra vantagem ainda: como a dança é uma roda-viva, estamos dispensados de  estar ai a inventar motivos de conversa, e de levarmos uma boa meia hora a esgrimir-nos contra um sim ou um não, que se encastelam nalguma boquinha arrebitada, donde não há força tira-los.

Ao menos se o sim fosse constante, eu começava logo por pedir alguma coisa que me conviesse. Mas qual! O sim e o não se revezam como duas sentinelas sempre alerta e prontas a impor o respeito à menor infração da disciplina. Por conseguinte, o melhor é tomar-se o expediente de que uso – fazer-lhes a continência, e passar de largo.

Mas onde já ando eu? Comecei num salão de baile, e parece-me que estou nalgum corpo de guarda. Eis aí o risco de escrever ao correr da pena. Se eu tivesse um compasso e um tira-linhas, não me havia de suceder semelhante coisa. Riscaria primeiramente o meu papel, escreveria o meu artigo letra por letra, pensando maduramente sobre cada palavra, refletindo profundamente na colocação dos pontos e vírgulas; depois convocaria um conselho de sábios, e, discutido o artigo em conclusões magnas, entrega-lo-ia ao compositor, quando se findassem os nove anos de correção que impõe o preceito da Arte Poética. Então, cheio de entusiasmo ao contemplar o meu artigo metido entre quatro gravuras de pau, exclamaria como Sanzio: Anch’io son pittore!  Agora já posso aspirar à honra de escrever um artigo ilustrado!

O que é verdade é que já não sei onde deixei a nossa agradável soirée, na qual se dançava com tanto prazer e animação o Ril da Virgínia, dança que daqui a alguns dias deve estar com muita razão no galarim da moda. E sobre isto desejo comunicar aos diretores das sociedades uma observação que fiz a propósito deste dançado. Tenho notado que, depois de um ril, cada um daqueles turcos transforma-se num cossaco temível; e então não há empadas nem chocolate que os farte. A respeito de gelo não falemos; seria necessário algum Himalaia ou Chimborazo feito sorvete. Por isso a moda tem muito razoavelmente destinado a dança para o fim da noite.]Com tudo isto, ainda não vos disse em que lugar da cidade nos achamos; mas contentai-vos em saber que estamos num dos nossos lindos arrabaldes, numa excelente casa de campo. E como já é perto de duas horas e as estrelas começam a fugir com as claridades precursoras do dia, segui o meu exemplo, dizei adeus a esses salões, a essas horas de prazer, que tão cedo não voltarão, e ide fazer poeticamente ao vosso travesseiro as íntimas confidências de algum segredo do coração.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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