Escrevo num computador
instalado num móvel polido que tem uma prateleira que se puxa. Muito
vulgarizados, tais móveis podem encontrar-se em qualquer loja informática das
grandes. Menciono este dado pessoal porque ele estabelece o cenário de
desconfortáveis ocorrências, há pouco mais duma hora, aqui no meu escritório.
Possuir um móvel destes não é coisa de que alguém se gabe, e eu preferiria
ocultar o facto, se não fosse necessário confessá-lo.
Estava a premir a tecla F 11,
quando um homenzinho magro, de fato escuro completo e chapéu fora de moda
emergiu atrás do teclado e começou a fazer esforços para se içar para o tampo
superior, onde se agigantam monitor e impressora. Levantava os braços, numa
gesticulação que me pareceu desesperada e dava grandes saltos, em cima da
consola. Calçava sapatos ferrados que tiravam do plástico x sons fortes
lembrando bicadas repetidas de catatua.
Não foi esta a primeira vez
que me vi assediado por personagens. Acontecia-me, não raro, quando ia passear
para o Jardim Constantino, depois do jantar, em certos plenilúnios. Saíam-me ao
caminho por detrás das árvores e quase sempre eram mais altas e encorpadas do
que eu. Algumas mostravam-se pouco benignas e chegavam a maçar-me. Essa a razão
por que evito o Jardim Constantino e, quando tenho de passar por ali, sigo numa
corrida e oculto a cara como posso. Nunca estou bem certo do plenilúnio.
Agora, uma personagem de doze
centímetros de altura, magrita, a saltar ao alcance dos meus dedos é que nunca
me tinha acontecido. Alguma vez havia de ser a primeira. O que pensei logo foi
«com este posso eu bem». Apesar de parecer bastante ginasticado, capaz daqueles
pulos todos, não me deu para ter medo dum homenzinho que me cabia na palma da
mão. E se ele estivesse armado? Pelo aspecto não parecia.
Mas havia já outra personagem.
À claridade do monitor, uma jovem loura, de blusa rosa e saia preta, passeava
ao comprido pelo tampo do móvel, esfregando uma na outra as mãos ansiosas.
Parecia estar muito preocupada. Usava bandós e calçava saltos altos. Podia
estragar-me o verniz. Aproximei a cara. Tranquilizei-me. O peso dela não era
bastante para que os saltos de agulha perfurassem a mobília. A mulherzinha não
deu por mim. Continuava a andar, de um lado para o outro, fazendo soar, ao de
leve, no móvel o tique-tique dos saltos. Ao debruçar-me, pareceu-me ouvir,
muito sumidamente, uma vozinha angustiada: «Oh, Augusto, Augusto!» Mas não
garanto.
O homem, entretanto, conseguia
pendurar-se no tampo, e depois de um esforço complicado de braços e cotovelo içava
o corpo, com dificuldade. Demorou que tempos nisto. Sobreveio a tentação de lhe
dar uma ajuda com os dedos. Mas resolvi não interferir. Se ele me desabasse
sobre o teclado, então poria a mão debaixo, não fosse danificar-me algumas
teclas ou ficar entalado entre elas. Seria um tanto ridículo, aparecer na loja
de informática a explicar que tinha um fulano esprimido entre as teclas, e que
fizessem o favor de mo tirar com aquelas pinças largas que os especialistas
usam.
Mas, enfim, o homenzinho lá se
levantou, sacudiu o pó do fato, num manifesto exagero, ou num reflexo habitual
(injusto porque eu posso comprovar que não há pó neste móvel) teve uma
hesitação, e fez qualquer coisa de absolutamente inesperado.
Em vez de se dirigir à mulher,
como eu erradamente previa, encaminhou-se para o velho do tambor.
O velho, de barba branca e
barrete frígio, estava sentado na borda do cinzeiro, e tocava permanentemente
tambor. Não se ouvia um som. Mas eu notava que às vezes aplicava as baquetas
com grande energia. E a mulher lá continuava, dum lado para o outro,
tique-tique, a arrepelar as mãos. Notei que teve um sobressalto, talvez um
susto, e recuou um passo. Mas quando o homem desapareceu por trás do cinzeiro,
fora do seu alcance, voltou à perturbada deambulação anterior.
A mulher estava, de certeza, à
espera de alguém, provavelmente do tal Augusto, que não era o do chapéu. Eu
comecei a enternecer-me e quase a desejar que o Augusto se mostrasse. O velho
do tambor suspendeu a batida e olhou para o homem de chapéu que o tirou, num
repelão, e tornou a colocá-lo. Era educado. O velho do tambor rodou a cabeça,
repetidamente, numa obstinação negativa e recomeçou a rufar.
Mas o receio de que pudessem
surgir mais personagens inquietou-me. Qual Augusto! Não me apetecia nada que a
casa se me enchesse de cavaleiros, de ciclistas, de pugilistas e meninas do
can-can. Ou de tropa. Não, é que podia perfeitamente aparecer um pelotão, a
formar, em ordem unida, no braço do meu sofá orelhudo...
Em circunstâncias difíceis
como esta, não há nada como recorrer a um perito. Telefonei a um amigo, que é
escritor. Atendeu mal-disposto, porque foi acordado. É um escritor dos diurnos,
nove às cinco.
«Ouve, meu caro, desculpa lá,
mas estão a aparecer-me personagens em volta do computador. O que é que eu
faço?»
O meu amigo formulou muitas
perguntas sábias. É um grande especialista de personagens. Se eram pesadas ou
leves, grandes ou pequenas, silenciosas ou barulhentas, sentimentais ou secas.
«Têm máscara?», inquiriu. «Não? Então são de grau inferior...» Quando eu o
informei de que eram pequenas e silenciosas, ele sugeriu-me com um tonzinho
superior de quem enuncia uma evidência: «Agarra nas três e atira-as pela
janela.»
«E se atinjo alguém? Estás a
ver-me em tribunal por defenestrar personagens, com dano para os utentes da via
pública?» «Então, conduta do lixo com elas.» «Não posso fazer uma coisa dessas,
sempre são gente.»
Do lado de lá do telefone o
meu amigo fez um «ts» de rabugice. Desconfio de que trata as personagens dele
com uma certa dureza. É o que dá a experiência.
«Escuta, não andas agora a
escrever umas crónicas, uns comentários, ou lá o que é?» Como é que ele sabia?
Isto é uma cidade muito bem informada. Admiti.
«Então, faz o seguinte:
aprisiona-as no texto.»
Fonte:
Mário de Carvalho. Contos
Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho,2000.
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