A notícia da tomada de Sebastopol, a abertura das academias, a
representação da Linda de Chamounix, duas procissões de quaresma, e a chuvinha
aborrecida de todas as tardes, são os fatos mais importantes da semana.
Resta saber, entre tanta coisa interessante, por qual delas
começaremos.
Pela notícia da Criméia, ou antes da Bahia – não. Estou pouco
disposto hoje a fazer conjeturas e suposições sobre a probabilidade deste fato. Pelas procissões – ainda menos. A chuva declarou-lhes guerra
este ano; e os anjinhos, com receio do tempo, encolheram as asas, e não
desceram do céu onde habitam.
Ora, para mim, procissões sem anjinhos é coisa que se não pode
ver. Os outros pensarão o contrário: estão no seu direito: cada um é livre de
ter mau gosto.
Deixando, pois, de parte as procissões, não há remédio senão
irmo-nos sentar nalguma das cadeiras do Teatro Lírico, e passar três ou quatro
horas bem agradáveis a ver a Linda de Chamounix, ou qualquer outra linda mesmo
aqui da nossa bela terra.
O primeiro ato é uma música simples e encantadora, que traduz
as impressões da vida tranqüila da ladeia, e que termina com o belo dueto do
baixo e da barítono, e com a despedida de LINDA.
Esperemos, porém, pelo segundo ato; deixemos passar algumas
cenas cômicas; cheguemos ao momento terrível em que a palavra de maldição
expira nos lábios paternais. LINDA, a pobrezinha inocente, a menina iludida,
que se ajoelhara para implorar o perdão, ergue-se louca.
Vede como lutam naquele espírito desvairado as recordações
alegres de um belo tempo, com a lembrança tremenda da maldição paterna, e com a
ameaça terrível da cólera celeste.
De repente esta voz suave e harmoniosa, cuja doçura todos nós
conhecemos, estala num grito de dor, numa agonia atroz; mas bo fundo da alma
brilha um raio de luz, uma idéia risonha, uma reminiscência de gozos passados;
e, quando pensais que aquela angústia chega ao seu último paroxismo, lá se
desprende dos lábios, de envolta com um sorriso, uma melodia graciosa, umas
notas feiticeiras, que vêm brincar docemente com o vosso ouvido arrebatado.
Vem afinal o terceiro ato, o desenlace feliz desta história
simples da vida de uma moça.
A filha torna ao lar paterno; e a graça de Deus faz voltar a
alegria, a paz e o sossego ao coração de toda esta pobre gente, que
experimentara por algum tempo todas as provanças da fortuna. O final é
magnífico, como vos dirá com toda a sua graça costumada o folhetim lírico de
terça-feira.
Eis o que é para mim a representação da Linda Chamounix; uma noite de emoções deliciosas, e
mais positivamente, uma ou duas páginas de revista em uma semana, sobre a qual
sou obrigado a confessar que não há muito de tratar.
Além de ser tempo de quaresma, tempo de provações, de jejum, de
expiação de pecados, ainda em cima aí vêm todos os dias uma chuvinha miúda,
umas nuvens cinzentas e carregadas tirar-nos o belo azul do céu, os raios do
sol, e as lindas noites de luar que a folhinha nos tinha prometido.
Quem não está disposto a ser regado pelas águas do céu como as
ruas desta heróica cidade, ou como as flores dos jardins, passa o dia inteiro a
resolver a importante questão, se deve sair ou ficar em casa. Afinal vem uma
estiada, decide-se, veste-se, e chega-se à porta, justamente quando começa de
novo a chover. Não há remédio senão despir-se e resignar-se a desfiar as horas
e os momentos sozinho, e a conversar com os seus botões.
Ora, se há tempo em que a solidão seja insuportável, é este de
agora, em que não se fala, não se trata, nem se pensa senão em companhia.
Janta-se em companhia dos amigos, passa-se a noite em boa companhia, e ganha-se
dinheiro em companhia.
Nada hoje se faz senão por companhia. A iluminação a gás, as
estradas, os açougues, o asseio público, a construção de ruas,tudo pe promovido
por este poderoso espírito de associação que agita atualmente a praça do Rio de
Janeiro.
Se encontrardes por aí algum sujeitinho de chapéu rapado, de
laço de gravata à bandida, roendo as unhas, ou coçando a ponta da orelha, não
penseis que é um poeta ou um romancista à cata de uma rima ou de um desfecho
para seu último romance. Nada! o tempo destas bagatelas já passou. Podeis
apostar que o tal sujeitinho rumina o projeto de uma empresa gigantesca, e
calcula na ponta dos dedos o ganho provável de uma companhia qualquer.
E assim tudo o mais. Vê-se hoje pelos salões, pelas ruas a cada canto, certos indivíduos a segredarem,
a trocarem palavras ininteligíveis e a falar à mezza você uma linguagem
incompreensível, cabalística. Um homem pouco experiente tomá-los-ia por
carbonários ou membros de alguma sociedade invisível de alguma confraria secreta. Qual! são finórios que
farejam a criação de uma companhia, e que tratam de se arranjarem para não
ficarem sós, isto é, sem dinheiro.
Até a nova empresa lírica, que se criou nesta corte há coisa de
dois meses, assentou de organizar uma companhia para a construção de um novo
teatro apropriado à cantoria, e conta-nos que já pediu ao governo a competente autorização.
Com a facilidade que há atualmente em conceder-se semelhante
favor, parece-nos que o governo não deixará de autorizar a incorporação de uma
companhia para fim tão útil e tão vantajoso para esta corte.
Somente lembraríamos a necessidade de exigirem-se para a
construção do edifício condições de grandeza e capacidade proporcional à
população desta corte. O Teatro lírico que possuímos presentemente não pode
durar muito; e, se outro não o substituir, breve teremos de nos vermos reduzidos
ao acanhado salão de S. Pedro de Alcântara.
Assim como neste, podia o governo aproveitar em muitos outros
objetos de serviço público o espírito de empresa e associação que tão
rapidamente se desenvolveu no nosso comércio.
Porque, em vez de esperar que os interesses individuais
especulem sobre a utilidade pública, não promove ele mesmo a criação das
companhias que entender convenientes para o pais?
A limpeza pública, as postas, os correios urbanos, e muitos
outros objetos de interesse vital, exigem essa solicitude da administração.
Uma coisa, por exemplo, de que ainda não vimos o governo se
ocupar seriamente é da carestia progressiva dos gêneros alimentícios, tanto
nacionais como estrangeiros. O trigo está por um preço exorbitante, segundo
dizem. O pão diminui, e diminui no século de progresso em que tudo vai em
aumento, em que as menores coisas tomam proporções gigantescas. Quanto ao pão
de rala, célebre em outros tempos, este desapareceu do mercado: pertence hoje à
história.
Os ministros, os grandes, os ricos, não sabem disto; mas o
pobre o sente, o pobre que, no meio de toda essa agitação monetária, de todo
esse jogo de capitais avultados, vê as grandes fortunas crescerem e
formarem-se, absorvendo os seus pequenos recursos, e elevando o preço dos gêneros
de primeira necessidade a uma taxa quase fabulosa.
Se os capitais são para o país um poderoso agente de progresso
e desenvolvimento, cumpre-nos não esquecer que em todos os países é na classe
pobre que se encontram as grandes inteligências, as grandes almas e os grandes
espíritos.
A Providência parece tê-los lançado no mundo sem recursos para
prova-los e fortalecê-los com essa luta constante da fortuna, na qual, ou
morrem sacrificados como mártires, ou se elevam às sumidades da hierarquia
social para comunicarem ao país a atividade do seu espírito e as forças de sua
inteligência.
Tão desprezível, tão digna de compaixão, como parece esta
classe aos ricos enfatuados que rodam no seu cupê, a ela pertence o futuro; nela
está a alma, a força, a inteligência, a esperança do país.
Quereis saber o que são e o que valem esses cresos modernos, ou
esses capitais amontoados, essas somas de dinheiro de que o rico tanto blasona
e tanto se desvanece? Uma matéria brutal, uma alavanca inerte a que um dia
algum homem sem fortuna, mas cheio de ambição e de talento vem dar o impulso de
sua atividade, e fazer trabalhar para um grande fim.
Esta classe, pois, merece do governo alguma atenção; o que hoje
é apenas carestia e vexame, se tornará em alguns anos miséria e penúria. É
preciso, ao passo que o país engrandece, prevenirmos a formação dessa classe de
proletários, dessa pobreza, que é a chaga e ao mesmo tempo a vergonha das
sociedades européias. Apliquem-se os nossos espíritos econômicos a este estudo
digno de uma grande inteligência e de um grande povo.
Porque a Europa ainda não conseguiu chegar à solução deste
grande problema social, não é razão para desanimarmos. Somos um país novo; o
progresso espantoso da atualidade deve ter reservado alguma coisa para nós; o
mundo velho eleva a indústria a um desenvolvimento admirável; talvez que os
segredos da ciência tenham de nos ser revelados na marcha da nossa própria
sociedade.
O que é verdade é que não devemos deixar de concorrer com as
nossas forças para essa obra
filantrópica da extinção da pobreza proletária. E isto, não porque receemos tão
cedo a existência deste cancro social, mas porque semelhante estudo deve-se
guiar nos meios de prevenir os vexames e misérias por que pode passar a classe
pobre no nosso país.
Agora é que percebo que este folhetim vai muito grave demais;
porém lembro-me também que não devo distrais as minhas leitoras do seu exame de
consciência para a próxima confissão da quaresma.
Que interessante coisa não deve ser o exame de consciência de
uma menina pura e inocente, quando à noite, entre as alvas cortinas de seu
leito, com os olhos fitos numa imagem, perscruta os refolhos mais profundos de
sua alma à cata de um pecadinho que lhe faz enrubescer as faces cor de...
Arrependi-me! Não digo a cor. Reflitam e adivinhem se quiserem.
Tenham ao menos algum trabalho em lerem, assim como eu tenho em escrever.
Mas, voltando ao nosso exame de
consciência, estou certo que, se algum dos anjos que cercam o trono de
Nossa Senhora pudesse descer do céu nesse momento, viria beijar aquele rostinho
adormecido, e dizer-lhe em sonho que os anjos não pecam.
Fonte:
José de Alencar. Ao
Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário