terça-feira, 20 de novembro de 2012

Mário de Carvalho (Vaudeville)


(Foi mantida a grafia original)

Como de costume, à hora do almoço, Gilberto entrava no gabinete de Isabel, a directora de serviços, com papéis graves na mão, ávidos de boa ponderação e despacho, e logo fechava a porta à chave, atrás de si. Isabel recebia-o com um brando sorriso e indicava-lhe o grande sofá, forrado de napa castanha.

O edifício estava vazio, zumbiam as moscas, o pessoal almoçava, e os dois amantes iniciavam o seu ritual, rápido, às vezes tumultuoso, sempre com o travo picante da transgressão e o risco de escandaloso processo disciplinar, no caso de serem reduzidos a auto os rumores que já circulavam em todo o departamento.

Gilberto tinha a suspeita insidiosa de que partilhava Isabel pelo menos com metade da população masculina ao norte do Tejo, e a consciência do carácter caprichoso e efémero daquela relação. Mas o que havia começado de um modo um tanto indiferente, descontraído e relaxado, absorvia-o neste momento por completo, com o sabor da passagem triunfal dos limites. Durante aquela hora em que prevaricavam, Isabel queimava pauzinhos de incenso, cujos vapores tinham depois de expulsar pela janela aberta, numa azáfama divertida e excitada. Pelo resto do dia, tratavam-se com um «senhor doutor», «senhora doutora», cerimonioso e distante, a propósito de assuntos de serviço. Ao fim da tarde, partia cada qual para seu cônjuge, na fila dos funcionários em regresso.

E, assim, imperceptivelmente, mais e mais se fora firmando o empenho de Gilberto naquela ligação, estimulado pela sua própria escassez, celeridade e incompletude.

Mas Gilberto mostrava-se hoje tenso e enervado. Não fechou a porta à chave, recusou o sofá grande, atirou com os papéis para uma cadeira, aplicou ambas as mãos sobre a secretária e exclamou, dramaticamente:

«Estamos perdidos!»

Isabel não se alterou. Com uma suave compostura de gestos, acendeu um cigarro, deu um jeito ao cabelo e perguntou, num tom levemente zombeteiro:

«Credo! Então?»

«Já sabes quem vem substituir o Emanuel?7»

«Já... É uma tal Elsa Gonçalves, das Contribuições e Impostos. Tenho para aí o processo em qualquer lado...»

«É que, minha querida, a Elsa é a melhor amiga da minha mulher. E, sobre isso, a maior coscuvilheira e contadeira de coisas da Função Pública.»

«Hum...», inquietou-se Isabel.

«Se ela suspeita de alguma coisa vai logo a correr contar à minha mulher. E agora?»

«E agora é preciso sangue-frio, meu querido», sussurrou Isabel, sorrindo. E aproximou-se, depois de esmagar o cigarro no cinzeiro.

No dia seguinte, Elsa já ocupava, alegremente, a sua secretária, frente à de Gilberto. Em sinal de posse, instalara sobre o tampo uma caixa de lápis, uma moldura com fotografias e um relógio de calendário. Por parte de Isabel a recepção foi reservada e cortesmente distante, como era de esperar do desnível hierárquico. Já Gilberto foi expansivo e ruidoso nos cumprimentos e colaborou, zelosamente, com o meticuloso arrumar das gavetas de Elsa.

«Onde é que almoças?», perguntava Elsa às tantas.

«Ah, fico até mais tarde e depois talvez vá almoçar com uns tipos conhecidos, da Associação dos Amigos dos Castelos. Não esperes por mim. Olha, há por aqui uns restaurantes baratos, do tipo come-em-pé...»

Foi desesperado que, uma hora depois, Gilberto entrou no gabinete de Isabel com as pastas costumadas na mão:

«É o fim... Imagina que agora até quer almoçar comigo. Inventei uma desculpa, mas, bem vês, a situação é embaraçosa...»

«De facto, preferia não me envolver em mexerufadas», respondeu Isabel, tranquilamente, enquanto ia sublinhando a vermelho os períodos mais significativos de um longo documento em papel pautado. «Imagina que a tua mulher vinha aí fazer-me uma cena... ou que o meu marido acabava por saber ê àparecia a pedir-te contas... Desagradável, hem? Burlesco...»

Isabel arrumou cuidadosamente o papel azul e só então levantou os olhos para Gilberto:

«Quer-me parecer, meu querido, que vais ter de usar de muita diplomacia...»

«E se nos passássemos a ver mais tarde, depois do serviço? À noite, sei lá... Sempre tenho a desculpa dos Amigos dos Castelos...»

«Bem sabes que é impossível. Então, e o Raul?»

Compenetradamente, ambos estudaram a situação. Isabel serenamente sentada à secretária, e Gilberto medindo o gabinete a grandes passadas e expelindo túrgidas baforadas de fumo. Dessa vez, ninguém se lembrou dos pauzinhos de incenso.

«Há só um processo», acabou por dizer Isabel com alguma hesitação. «Rouba-lhe a amizade da tua mulher. Trata-a bem, liga-a a ti, enfim, corteja-a...»

Gilberto irritou-se. Falou alto:

«Mas cortejar, como? Aquela voz áspera, aquele corpo desengonçado... Minha querida, é seduzir a Olívia Palito, é namorar um gafanhoto...»
«Não se pescam tmitas a bragas enxuitas», replicou Isabel secamente. «Amanhã vais almoçar com ela. Depois, veremos...»

Elsa, durante o almoço, falou, falou... Tinha um assunto predilecto: a família e os filhos; e um inimigo favorito a quem chamava «as pessoas»: «as pessoas» eram tão ruins, «as pessoas» eram tão maledicentes, «as pessoas» eram tão incompreensivas.. .

Gilberto notou que ela vestia com um gosto apurado e que não era de todo deselegante aquele gesto de cigarro abando nado entre os dedos, com a mão descaída.

Já de volta, dizia-lhe Elsa:

«Ah, creio que me vou dar bem por aqui...»

E, durante a tarde, assediou a secretária de Gilberto, pedindo informações, pedindo dados, pedindo documentos... Por várias vezes Gilberto teve que esconder com a mão o bilhete, destinado a Isabel, em que dava conta de algum desespero, muita impaciência e sofredoras saudades.

A mensagem terminava com um post-scriptum imperativo: «E vê se consegues remetê-la para uma reunião, para um encontro, para um congresso, de preferência no estrangeiro...»

À saída, em resposta, Isabel passou por ele e segredou-lhe, com um sorriso:

«Vamos, vamos, porta-te bem...»

Mas no dia seguinte, a meio da manhã, Elsa perguntava-lhe, muito jovialmente:

«Então, almoça-se?»

Gilberto, sem levantar os olhos dos papéis, resmoneou que não dava jeito, que tinha de ir a despacho com a chefe.

«Não faz mal, eu espero.»

«Olha que posso demorar e, depois, sabes, os restaurantes ficam cheios...»

«Não tem importância, eu espero. Sempre é melhor que almoçar sozinha.»

Isabel estendeu-lhe a cara, quando entrou no gabinete, à hora habitual, mas Gilberto ficou-se por um beijo silencioso e fugaz:
«Ela está lá fora à minha espera...»

«Irritante, hã?»

«Ouve, temos de arranjar maneira de nos vermos noutro lado. Podíamos, talvez, uma destas tardes...»

«Impossível, com este serviço. O director-geral não me larga. Estás a ver?» E Isabel apontava as resmas de papel, em cima da secretária. «Além disso, não quero, nem de longe nem de perto, que o Raul desconfie de nada, percebes?»

Gilberto deixou-se cair no sofá com irritação: «Bolas! »

Com alguma impaciência, Isabel arrumou os óculos-de-ver-ao-perto, dispôs o pesa-papéis, figurando a Vitória de Samotrácia, sobre um monte de ofícios e voltou-se, maternalmente, para Gilberto:

«É como te disse: só há uma solução. Tens de lhe ganhar a confiança, ou melhor, a cumplicidade, entendes? A cumplicidade.»

«Mas olha, Isabel, por que não ganhas tu a cumplicidade dela? És a directora, podias, enfim, convidá-la para almoçar, chamá-la mais ao teu gabinete...»

«Ingénuo, meu pobre ingénuo...», sorria-se Isabel, «mas as razões são mais que óbvias... És tu quem pode defender esta relação, não eu.»

Foi de sobrolho derribado que Gilberto partiu para aquele almoço. A frustração, o sentimento de injustiça por ter deixado Isabel mais uma vez sozinha (mas ficaria mesmo sozinha?) amarguravam-no e induziam-lhe nas réplicas um sarcasmo contumaz.

Mas Elsa era totalmente invulnerável à ironia e indiferente a semblantes sombrios. Aparentava, contra todas as evidências, uma exuberante felicidade por se encontrar de novo em companhia de Gilberto:

«A tua mulher? E os miúdos?», perguntava. «Pensar que somos vizinhos, que nos conhecemos há tantos anos e que praticamente não nos vemos. Não tarda, vamos fazer-vos uma visita, está bem?»

«Com todo o gosto», respondia Gilberto. «Assim eu esteja em casa. Sabes, há aquelas reuniões dos Amigos dos Castelos...»

Mas já Elsa, mordiscando uma azeitona, faceiramente, mudava de assunto e inquiria:

«Olha lá, a nossa chefe, que tal?»

«Que tal, o quê?»

«Parece-me que não gosta muito de mim. Trata-me com rispidez, com secura. E eu ainda mal cheguei...»

«É isso, tu mal chegaste. São imaginações tuas. Ela é uma excelente pessoa, trabalhadora, justa... Não ligues, vais ver que não há-de ser nada...»

Elsa encarava-o agora, a face pousada nas palmas das mãos, o olhar penetrante:

«Mais uma gotinha de vinho?», queria saber Gilberto.

, «Só um tudo-nada», respondia Elsa. «É que depois posso ficar tonta...»

Mas Gilberto já pedia para dentro mais um jarro de branco, bem fresco.

Estavam ambos muito animados, à sobremesa. Gilberto despejou um imenso repertório de histórias vagamente brejeiras. Elsa ria, ria. Em dado momento, como para pedir tréguas, pousou a mão na de Gilberto, que achou a pressão magneticamente vibrátil.

«Ai, as horas que são!», assustou-se Elsa.

Fingiram que se apressavam, no caminho para o serviço.

Gilberto brincava: ora estugava o passo, ora o abrandava, com uma moleza indolente, ora parava numa montra, ora dava corridinhas breves. EIsa ralhava e ria.

Já à porta, Elsa estacou e empurrou-o, muito faceira: «Sabes, não é por nada, mas estou convencida de que a nossa chefe gosta muito de ti...»

Quando Gilberto reagiu, já Elsa tinha fechado a porta do elevador e subia, fora de alcance.

Ao outro dia, Elsa faltou.

Eram dez horas, onze, onze e meia, não tinha ainda chegado.

Gilberto foi esperando e retardando o momento de entrar no gabinete de Isabel com um pretexto qualquer, sempre sobraçando um molho de documentos:

«A Elsa falta! Podemos ver-nos à hora do almoço?»

«Não és obrigado! », respondeu Isabel com rispidez, sem despegar olhos dos papéis.

Gilberto mostrou-se estupefacto. Quis protestar. Tossiu e ia replicar quando Isabel o despediu:

«Até mais logo, meu querido, até logo, agora tenho que trabalhar...»

Mas à hora do almoço desarmava toda a fúria acumulada por Gilberto com uma exuberante demonstração de ternura. Queimaram incenso, nessa tarde. E dispersaram os cheiros, infantilmente, aos gritinhos.

Mas Isabel amuou, de repente, de braços cruzados sobre o peito, sentada no sofá. Que tinha?

«Oh, nada», respondeu. E, depois, abraçando-se a Gilberto: «Por favor, não estragues esta relação, toma cuidado...»

Quando Gilberto, um pouco mais tarde, de mente confusa, saía do gabinete de Isabel, já Elsa trabalhava à secretária, muito atenta, alinhando números com a máquina de calcular.

Durante largo espaço, Elsa foi lidando com os seus papéis. Volta e meia, atardava-se, de lápis na boca, a procurar ideias nas volutas do cigarro, e logo mergulhava na elaboração frenética de um relatório.

Desta vez, nada perguntava a Gilberto, contra os hábitos já instituídos. Afectando uma distracção distante, este não a perdia dos olhos, um tanto impaciente, na espera de ser, enfim, interpelado.

Considerava uma vez mais a graciosidade daquele gesto de cigarro desamparado entre os dedos e, sobretudo, admirava a vivacidade do belo vestido cor de cereja que EIsa trazia naquela tarde.

Superficial? Um pouco desengonçada? Talvez... mas um gafanhoto... era exagero. E, depois, aquele voltear da mão...

Só muito tarde, próxima a saída, Elsa rompeu o atarefado silêncio:

«Esta manhã fui buscar o carro à garagem. O meu marido vai para a Holanda e eu quis o carro afinado antes de ele se ir embora. Dou-te boleia?»

Quando Elsa, nesse fim de tarde, o ajudou a abrir a porta do carro do seu lado, Gilberto não se distraiu do corpo dobrado sobre o seu, nem do perfume silvestre, nem da maciez da pele. Durante o percurso, manteve-se imperturbável, conversando serenamente sobre banalidades. Mas, mais tarde, pela noite fora, aquele vestido cor de cereja veio-lhe repetidamente àideia.

«Bom, ao fim e ao cabo tenho instruções a cumprir: devo seduzi-la», ria-se de si para si. Mas não tinha muito a certeza de estar a brincar...

No dia seguinte, Isabel mostrava-se ocupadíssima, enervadíssima:

«O índice de preços? Põe aí...»

Depois, suspendendo o gesto:

«A tua nova conquista, como vai?»

«Preciso urgentemente de estar contigo.»

«Bem queria eu... Mas olha», e volteava as páginas da agenda, «vê bem, às dez com o director-geral, às onze e meia com os tipos de Trás-os-Montes, às duas, outra vez com o director-geral. Hoje é impossível, meu querido.»

«E depois do serviço?»

«Nada a fazer. Tenho de estar no emprego do Raul às seis. Jantamos hoje em casa dos meus sogros.»

E ao dizer isto, já Isabel se levantava, arrepanhando papéis de cima da mesa.

Sentado agora sozinho em frente de Elsa, Gilberto sabia que Elsa dava por estar a ser observada. O silêncio era apenas roçado pelo leve sinal da máquina de calcular dela. O cigarro sempre abandonado na mão, um ar de serena reflexão, um vestido amarelo, não tão vistoso como o de cor de cereja, mas, ainda assim...

Num sorriso intercalado entre duas baforadas de fumo: «Almoçamos?», perguntou Elsa.

«Decerto...»

E durante o resto da manhã continuaram enfronhados nas suas rotinas.

«Vamos?», interpelou Gilberto, olhando para o relógio: «Meio-dia e meia...»

Mas Elsa, debruçada do parapeito da janela, olhava agora o Tejo:

«Já viste já a luminosidade deste rio? Chega a ser agressiva...»

Gilberto aproximou-se, considerou que o Tejo corria, de facto, luminoso, mas, agressivo, seria exagero... E, sem perceber como, viu-se enlaçado com Elsa que exclamava, com voz alterada:

«Não sei, não sei como isto pôde acontecer...»

EIsa, ao almoço:

«Temos de arranjar um tempo e um espaço só para nós. Estou farta de te ver entre papéis.»

«Mas só lá vão três dias...»

«Não importa, estou farta! Quero ter-te só para mim. Faltamos uma destas tardes, está bem?»

«E a chefe?»

EIsa sorriu, dobrou e alisou o guardanapo, hesitou, titubeando um pouco, e disse:

«Não leves a mal o que vou dizer, mas... há ocasiões em que é preciso agir com tacto. Tu sempre és homem, percebes? Tens de procurar insinuar-te mais, seduzi-la um pouco. Enfim, obter-lhe a cumplicidade. A cumplicidade, estás a compreender?»

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

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