Estamos na véspera do Natal.
À meia-noite começa esta festa campestre, a mais linda e a mais graciosa da religião cristã. Vítor Hugo confessa que não há nada tão poético como esta legenda das Mil e Uma Noites escrita no Evangelho.
Com efeito, tudo é encantador nesta solenidade da igreja, nesses símbolos que comemoram a poética tradição do nascimento de um menino sobre a palha de uma manjedoura. A missa do galo à meia noite, os presepes de Belém, as cantigas singelas que dizem a história desse nascimento humilde e obscuro, tudo isto desperta no espírito uma idéia ao mesmo tempo risonha e grave.
Não é porém, na cidade que se pode gozar deste idílio suave da nossa religião. Censurem-me embora de um lirismo exagerado; mas afinal de contas hão de confessar comigo que no meio do prosaísmo clássico da cidade, entre essas ruas enlameadas, de envolta com o rumor das seges e das carroças, a festa perde todo o seu encanto, todo esse misterioso recolhimento que inspira a legenda bíblica.
É no campo, no silêncio das horas mortas, quando as auras apenas suspiram entre as folhas das árvores, quando a natureza respira o hálito perfumado das flores, que o coração estremece docemente, ouvindo ao longe o tanger alegre de um sinozinho de aldeia, que vem quebrar a calada da noite.
Daí a pouco, luz das estrelas, no meio dessa sombra mal esclarecida, distinguem-se os ranchos de moças, que se encaminham para a igrejinha rindo, gracejando, cochichando, bisbilhotando, como um bando de passarinhos a chilrear em tarde de outono.
A porta da capelinha está aberta de par em par; e a luz avermelhada dos círios, os vapores perfumados do incenso, os sons plangentes do órgão, o murmúrio das preces recitadas à meia voz, enchem todo o corpo do templo. De vez em quando um rumor do campo, o esvoaçar de alguma andorinha despertada de sobressalto pela claridade, vêm interromper alegremente a calma e placidez da festa.
Se quereis tomar o meu conselho, minha amável leitora, não ide à missa do galo nas igrejas da cidade.. Escolhei algumas capelinhas dos arrabaldes, a beira do mar, como a São Cristóvão, cercada de árvores, como a do Engenho Velho, ou colocada nalguma eminência, como a igrejinha de Nossa Senhora da Glória, tão linda com as suas arcadas e o seu vasto terraço.
Ouvi a vossa missa devotamente, isto é, olhando apenas uma meia dúzia de vezes para os lados, e estou certo que voltareis com a alma cheia das mais suaves e mais risonhas inspirações. Sentireis que o culto da religião, quando verdadeiro e sincero, é uma fonte rica de emoções doces, e não traz os dissabores deste outro culto do amor, no qual vós sois algumas vezes o anjo, e muitas a serpente do paraíso.
Bem entendido, se vos dou este conselho, é persuadido que não aspirais aos foros da alta fashion, porque neste caso deveis ficar na cidade e ir ouvir missa nalguma igreja bem quente e bem abafada, para pilhardes uma boa constipação na saída.
A diretoria do Teatro Lírico, que tem o bom gosto de conservar o teatro aberto neste tempo, não devia deixar de dar algum espetáculo na noite de hoje, a fim de vos preparar por um banho russiano, para a visita das estufas nas igrejas.
É pena que não se lembrassem de repetir o Roberto do Diabo que acaba justamente às 2 horas, tempo em que cantam os galos.
Tudo neste mundo depende das ocasiões, disse-me um dilettante que vós conheceis: - Se a diretoria tivesse sabido aproveitar a noite de hoje, o Roberto do Diabo estaria apenas no purgatório donde naturalmente o conseguiria tirar algum artigo hieroglífico, maçônico ou brâmine, escrito unicamente para os espíritos sublimes. Então não se veria na dura necessidade de conservar o teatro aberto, recordando atrasados e obrigando os acionistas e os assinantes a pagarem as diabruras, não do Roberto, mas de algum São Bartholomeu que não conhecemos.
Eu não concordo com esta opinião. Julguei a princípio que convinha interromper-se os espetáculos por um mês, ao menos, porém hoje estou convencido que o teatro presta uma tão grande utilidade a esta corte, que a polícia devia intervir para que houvesse representação todas as noites. Se duvidam, vou enumerar-lhes as enormes vantagens econômicas, higiênicas, políticas e morais que resultam do teatro.
Em primeiro lugar, cura constipações pelo sistema homeopático, alivia o reumatismo dos velhos, e dá às mocinhas do tom uma cor baça e amarela, do melhor efeito, a qual os poetas têm convencionado chamar – a palidez romântica. No fim de uma semana ou quinze dias, uma bela menina, viva e rosada, começa a definhar; desmaiam-lhes as cores, os olhos tornam-se febricitantes, o corpo toma um ar de lânguida morbidez.
Para o médico, homem positivo, isto é o sintoma funesto de alguma consunção; mas o poeta, espírito elevado, que tem a pretensão de viver de ar como os camaleões, extasia-se em face desse rosto macerado pelas vigílias satisfeito por achar uma ocasião de aplicar a sublime comparação do pálido lírio languidamente reclinado sobre a haste delicada.
No fim de contas, o médico faz um diagnóstico importante; o poeta escreve algumas centenas de versos no estilo de Byron, ou do Alfredo de Musset. O boticário avia receitas sobre receitas; e o tipógrafo tira duas edições do volume de poesias. Faz-se uma consulta de médicos, enquanto os folhetins e as revistas críticas dissecam e fazem a autópsia dos versos novamente dados à luz. Trava-se a discussão, e no momento justo em que os médicos enchem de cáusticos e cataplasmas a heroína do romance, o país atônito reconhece que surgiu alfim o seu Petrarca, seu Dante, o seu Tasso.
Eis aí, o Teatro Provisório concorrendo para o desenvolvimento literário, e fazendo aprofundar o estudo da medicina. Isto, porém, não é tudo. A diretoria, que empreendeu a regeneração da nossa ópera lírica, visa também a outros resultados mais reais e positivos.
A Charton é a cantora predileta do público, é o rouxinol das belas noites pintadas por Bragaldi, é a rosa perfumada em cujo cálice bubul fez o seu ninho gracioso, e onde se reclina soltando nos ares as ricas melodias de suas notas. Pois bem, a Chaarton continuará a representar pelo verão, sem ter nem sequer um mês de descanso; bubul cantará todo o estio como uma cigarra importuna; a flor se fanará exposta ao tempo, sem sombra e sem abrigo.
Um belo dia a Charton ficará com a voz cansada como a Zecchini; e este público caprichoso e exigente ficará ensinado, e aceitará aí qualquer comprimária que lhe queiram impingir na qualidade de cantora de cartelo.
Então, como a guerra do Oriente e a exposição de Paris não permitirão novos engajamentos na Europa, a empresa, livre de reclamações exageradas, poderá fazer importantes economias, contratando nesta corte algumas cantoras de modinhas para coristas, e promovendo por antiguidade as coristas e comprimárias e as primas-donas: teremos neste caso espetáculos baratos, a pataca e a quinhentos réis. O público tomará o seu banho de vapor pela quinta parte do que paga hoje.
Pouco tempo depois que a diretoria tiver obtido este grande resultado, o público se convencerá que se a música (do teatro lírico), como disse alguém, é o mais suportável dos barulhos, o teatro é o mais insuportável dos suadores.
Os espetáculos, pois, serão abandonados, o dilettante começará a ser uma espécie de mastodonte anti-robertiano, objeto do estudo dos arqueólogos e antiquários, e o barracão terá um destino muito semelhante ao que tem hoje, e ficará sendo uma dependência do Museu.
Não se pode, portanto, deixar de tributar todos os elogios a quem empreendeu e trata de executar com tanta habilidade a útil empresa de desacreditar a era italiana e de nos fazer aborrecer o teatro lírico. Todo o público desta corte deve auxiliar este projeto, por todas as razões, até mesmo porque é de melhor gosto, e mais elegante, nestas noites de calma ir suar no Provisório, do que tomar fresco no Passeio Público.
No teatro olha-se para um camarote, procura-se uma feição mimosa e acetinada, umas faces que são de suave cor-de-rosa, um colo alvo de jaspe, e tem-se o desprazer de ver um rosto açodado, vermelho, mudando de cores, um seio arfando dificilmente sem aquelas doces palpitações que lhe dão tanta graça e tanta sedução; vê-se enfim um belo quadro, uma tela amarrotada cheia de dobras.
Ao contrário, no Passeio Público o quadro realça com a luz do gás, que, ao longe, entre as árvores, semelha um pouco a claridade da luz; todas as noites, mas especialmente nos domingos, a concorrência é numerosíssima. Às nove horas a multidão se retira, o passeio torna-se mais agradável, e começa-se a encontrar-se de espaço a espaço uma ou outra família conhecida, das que freqüentam ordinariamente os nossos salões.
Não nos enganamos, pois, quando dizíamos há tempo que a iluminação a gás concorreria muito para a concorrência do Passeio, e daria ao público desta corte um ponto agradável de reunião. Resta, porém, que se trate de outros melhoramentos, como de reparar ao menos as grades da rua principal, de ceder-se aos dois pavilhões do terraço para neles se estabelecerem cafés decentes que possam servir às famílias, e de fazer-se com que haja música aos domingos, das oito até às dez horas.
Faça-se isto, faça-se alguma coisa mais que or conveniente; e todas as noites em que houver espetáculo lírico, durante a força do verão, eu terei o prazer de ver os mais entusiásticos dilettanti sentados nos bancos de pedra do círculo que forma a rua principal do Passeio, vendo, como eu, passarem os grupos das lindas passeadoras, enquanto apenas um ou outro melomaníaco, com os cabelos pregados na testa, contemplará heroicamente o holocausto lírico da voz da Charton, do Bouché e do Gentile, condenados à rouquidão para assegurar o futuro da ópera italiana, que ficara comprometida nesta corte, se não se cantar nos meses de dezembro e janeiro.
O natal, o teatro, o passeio me iam fazendo esquecer das questões sérias que este ano se guardaram para o tempo das festas, justamente para não deixarem nem um dia de férias ao jornalista. O livro do Sr. De Angelis sobre o Amazonas e ultima,mente o decreto do governo sobre as sociedades comanditárias vieram agitar a imprensa da corte, e fazê-la sair da rotina editorial. Sobre a primeira questão deveis ter lido não só a obra do Sr. P. de Angelis, como os artigos que publicou nesta folha um nosso patrício, conhecido pelo seu talento. Quanto à segunda, esperai mais alguns dias, e vereis sob que aspecto importante ela vai apresentar-se; não vos falo mais largamente a respeito, porque deveis saber que os advogados estão de férias, mais felizes nisso do que os folhetinistas, que não as têm.
Finalmente vou dar-vos uma boa nova. Como a festa é tempo de muita indigestão, podeis contar já com mais trinta e dois médicos, que no dia 18 deste mês receberam o seu grau na Academia Militar, em presença de SS. MM. e de um brilhante e numeroso concurso de pessoas gradas desta corte. O digno diretor da escola recitou um belo discurso e um dos doutorandos, designado pelos seus colegas, agradeceu em nome deles o grau que acabavam de receber, fazendo nesta ocasião acertadas considerações sobre o estudo da anatomia e da fisiologia.
Terminando a sua carreira, vão dar agora o primeiro passo no mundo, e trabalhar para um futuro que a esperança, companheira inseparável da mocidade, lhes aponta tão risonho e tão feliz. Deus os fade bem por interesse seu e da humanidade; e possam um dia, repassando na memória esta primeira página de sua vida, sentirem essas doces recordações do homem feliz que se revive no seu passado.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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