terça-feira, 27 de novembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 25 de fevereiro: Foi-se o Carnaval


Foi-se o carnaval. Passou como um turbilhão, como sabá de feiticeiras, ou como um golpe infernal.

Nesses três dias de frenesi e delírio a razão fugiu espavorida, e a loucura, qual novo Masaniello, empunhou o cetro da realeza.

Ninguém escapou ao prestígio fascinador desse demônio irresistível: cabeças louras, grisalhas, encanecidas, tudo cedeu à tentação.

Entre as amplas dobras do dominó se disfarçava tanto o corpinho gentil de uma moça, travessa, como o porte grave de algum velho titular, que o espírito remoçava.

Dizem até que a política – essa dama sisuda e pretensiosa – se envolveu um momento nas intrigas do carnaval, e descreveu no salão uma parábola que ninguém talvez percebeu.

Deixemos, porém, dormir no fundo do nosso tinteiro esses altos mistérios que se escapam à pena do folhetinista. Já não estamos no carnaval, tempo de livre pensamento – tempo em que se pode tudo dizer – em que é de bom gosto intrigar os amigos e as pessoas que se estimam.

Agora que as máscaras caíram, que desapareceu o disfarce, os amigos se encontram, trocam um afetuoso aperto de mão e riem-se dos dissabores que causaram mutuamente uns aos outros.

O nosso colega do Jornal do Comércio, que se disfarçou com três iniciais que lhe não pertenciam, compreende bem essas imunidades do carnaval.

Hoje, que o reconhecemos, não é preciso explicações: ele tem razões de sobra para acreditar que sinceramente estimamos o seu valioso auxílio na realização de uma idéia de grande utilidade para o país.

Nunca desejamos o monopólio; ao contrário, teríamos motivos de nos felicitar, se víssemos geralmente adotada pela imprensa do nosso país uma tentativa, um ensaio de publicação, cuja falta era por todos sentida.

Quando deixamos cair do bico da pena um ligeiro remoque à publicação do colega, não era que temêssemos uma imitação;não era porque receássemos uma emulação proveitosa entre os dois mais importantes órgãos da imprensa da corte.

Esta luta, mantida com toda a lisura e toda lealdade, nós a desejamos em bem do pais, embora nos faltem os recursos para sustenta-la com vantagem. É dela, é do calor da discussão, do choque das idéias, que têm nascido e que hão de nascer todos os progressos do jornalismo brasileiro.

O que nós receávamos era a reprodução de uma dessas lutas mesquinhas, indignas de nós ambos, e das quais a história da nossa imprensa apresenta tão tristes exemplos. Era um desses manejos impróprios de jornalistas, e aos quais o mecanismo complicado da nossa administração tanto favorece. Era enfim uma representação dessa ridícula farça de publicidade tão em voga nas nossas secretarias, nas quais se dão por favor as cópias dos atos oficiais ao jornal que quer fazer um favor publicando-as.

Temíamos uma luta desta natureza, porque não estamos ainda afeitos à chicana; porque, do momento em que ela se tornasse necessária, seríamos forçados a abandonar uma idéia, pela qual trabalhamos com todo o amor que nos inspira a nossa profissão.

É tempo, porém, de voltarmos ao carnaval, que preocupou os espíritos durante toda a semana, e deu matéria larga às conversas dos últimos dias.

Entre todos os festejos que tiveram lugar este ano cabe o primeiro lugar à sociedade Congresso das Sumidades Carnavalescas, que desempenhou perfeitamente o seu programa, e excedeu mesmo a expectativa geral.

No domingo fez esta sociedade o seu projetado passeio pelas ruas da cidade com a melhor ordem; foi geralmente recebida, nos  lugares por onde passou, com flores e buquês lançados pelas mãozinhas mimosas das nossas patrícias, que se debruçavam graciosamente nas janelas para descobrirem entre a máscara um rosto conhecido, ou para ouvirem algum dito espirituoso atirado de passagem.

Todos os máscaras trajavam com riqueza e elegância. Alguns excitavam a atenção pela originalidade do costume; outros pela graça e pelo bom gosto do vestuário.

Nostradamus – uma das mais felizes idéias deste carnaval – com o seu  longo telescópio examinava as estrelas, mas eram estrelas da terra. Um Merveilleux dandinava-se na sua carruagem, repetindo a cada momento o seu c’est admirable! quando a coisa mais incrível deste mundo é a existência de um semelhante tipo da revolução francesa.

Luis XIII, livre do Cardeal de Richelieu, tinha ao lado uma Bayadère, e parecia não dar fé do seu rival Lord Buckingham, que o seguia a cavalo no meio de um bando de cavaleiros ricamente vestidos.

Esquecia-me dizer que ao lado do Merveilleux ia um Titi de marinha, que atirava concetti em vez de confetti. Era o mais fácil de conhecer, porque a máscara dizia o que ele seria se as moças que o olhavam fossem cordeirinhos.

Em uma das carruagens iam de companhia Temistovles, Soulouque, Benevenuto Cellini, Gonzalo Gonzáles, quatro personagens que nunca pensaram se encontrar neste mundo, e fazerem tão boa amizade.

Se fosse  possível que Temístocles e Benevenuto Cellini passassem esta tarde por uma das ruas por onde seguiu o préstito, estou persuadido que o artista florentino criaria uma nova Hebe mais linda que a da Canova; e que o general antigo rasgaria da história a página brilhante da batalha de Salamina por um só desses sorrisos fugitivos que brincam um momento numa boquinha mimosa que eu vi, e que apenas roçam os lábios como um sopro da aragem quando afaga o seio de uma rosa que se desfolha.

Quanto a Van Dick – que seguia-se logo após – este quebraria o seu pincel de mestre, desesperado por não achar na sua paleta essas cores suaves e acetinadas, essas linhas puras, esses toques sublimes que o gênio compreende, mas que não pode imitar.

Eram tantos os máscaras e os trajes ricos que se apresentaram, que me é impossível lembrar de todos; talvez que aqueles que agora esqueço sejam os mais geralmente lembrados; e, portanto, está feita a compensação.

Como foi este o primeiro ensaio da sociedade, de propósito evitamos fazer antes algumas observações a respeito do seu programa, com receio de ocasionar, ainda que involuntariamente, dificuldades e embaraços à realização de suas idéias. Hoje, porém, essas reflexões são necessárias, a fim que não se dêem para o futuro os inconvenientes que houve este ano.

O entrudo está completamente extinto; e o gosto pelos passeios de máscaras tomou este ano um grande desenvolvimento. Além do Congresso, muitos outros grupos interessantes percorreram diversas ruas, e reuniram-se no Passeio Público, que durante os três dias esteve literalmente apinhado.

Entretanto, como os grupos seguiam diversas direções, não foi possível gozar-se bem do divertimento; não se sabia mesmo qual seria o lugar, as ruas, donde melhor se poderia aprecia-lo.

A fim de evitar esse dissabor, a polícia deve no ano seguinte designar com antecipação o círculo que podem percorrer os máscaras, escolhendo de preferência as ruas mais largas e espaçosas, e fazendo-as preparar convenientemente para facilidade do trânsito.

Desta maneira toda a população concorrerá para aqueles pontos determinados: as famílias procurarão as casas do seu conhecimento: os leões arruarão pelos passeios; e o divertimento,  concentrando-se, tomará mais calor e animação.

Tomem-se estas medidas, preparem-se as ruas com todo esmero, e não me admirarei nada se no carnaval seguinte aparecerem pelas janelas e sacadas grupos de moças disfarçadas, intrigando também por sua vez os máscaras que passarem, e que ficarão desapontados não podendo conhecer através de um loup preto o rostinho que os obrigou a todas estas loucuras. 

Se o Sr. Desembargador chefe de polícia entender que deve tomar essas providências, achamos conveniente que trate quanto antes de publicar um regulamento neste sentido, designando as ruas por onde podem  circular os máscaras, e estabelecendo as medidas necessárias para a boa ordem e para a manutenção da tranqüilidade pública.

Estas últimas medidas são fáceis de prescrever, quando se tem um povo sossegado e pacífico, respeitador das leis e da autoridade, como é o desta corte. Nestes três dias que passaram, o divertimento e a animação foi geral; e entretanto numa população de mais de trezentas mil almas não tivemos um só desastre a lamentar. Exemplos como estes são bem raros, e fazem honra à população desta cidade.

Na terça-feira sobretudo houve no Passeio Público uma concorrência extraordinária. Grande parte das Sumidades Carnavalescas aí se achava; e a curiosidade pública não se cansava de vê-los, a eles e a muitos outros máscaras que também tinham concorrido ao rendez-vous geral deste dia.

Às oito horas da noite o Teatro de São Pedro abriu os seus salões, nos quais por volta de meia-noite passeavam, saltavam, gritavam ou conversavam perto de cinco mil pessoas; era um pandemônio, uma coisa sobrenatural, uma alucinação fantástica, no meio da qual se viam passar figuras de todas as cores, de todos os feitios e de todos os tamanhos.

Muitas vezes julgareis estar nos jardins do profeta, vendo brilhar entre a máscara os olhos negros de uma huri, ou sentindo o perfume delicioso que se exalava de um corpinho de lutin que fugia ligeiramente.

Foi numa dessas vezes que, ao voltar-me, esbarrei face a face com Lorde Raglan, que acabava de chegar da Criméia e que deu-me algumas balas, não das que costuma dar aos russos; eram de estalo. Conversamos muito tempo; e o nobre deixou-me para voltar de novo à Criméia, onde naturalmente não deram pela sua escapula.

À meia-noite em ponto serviu-se no salão da quarta ordem uma bela ceia, que o Congresso ofereceu aos seus convidados e sócios. A mesa estava brilhantemente preparada; e no meio das luzes, das flores, das moças que a cercavam, e dos elegantes trajes de fantasia dos sócios, apresentava um aspecto magnífico, um quadro fascinador.

Bem queria vos dizer todas as loucuras deste último baile até as derradeiras arcadas do galope infernal; mas na quarta-feira de cinzas esqueci tudo, como manda a religião. Por isso ficais privados de muita crônica interessante, de muito segredo que soube naquela noite, mas que já não me lembro.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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