quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Érico Veríssimo (Uma entrevista, 2 anos antes de sua morte)


Pintura de Tânia Hanauer
*Esta entrevista foi publicada originalmente no jornal Opinião (SP), de 05/02/1973, com o título: Sou contra a censura, e republicada em VERÍSSIMO, Érico. A liberdade de escrever: entrevistas sobre literatura e política. São Paulo: Globo, 1999, de onde foi extraída. 

 Porto Alegre, Érico Veríssimo falando ao Opinião:

"Quero começar com um elogio (...). Agora vem a reclamação. Quase todas as perguntas que vocês me fazem na realidade exigem como resposta um longo ensaio. Ora, não sou ensaísta. Um romancista é antes de mais nada um intuitivo. Quando ele se aventura a analisar seus próprios livros, a fazer a sua exegese, mete os pés pela mãos. Se há uma coisa que não me preocupa nem me ocupa agora é a interpretação dos livros que já escrevi e publiquei. Dados esses esclarecimentos, vamos às respostas".

- A História é a matéria básica da sua ficção em pelo menos dois livros seus: O tempo e o vento e Incidente em Antares. Qual a importância da realidade histórica para a sua literatura? 

Ninguém pode fugir à História... e lá se foi o primeiro lugar-comum. Clara ou oculta, essa "senhora", está presente em todos os meus romances. Sempre considerei importante. Não só ela mas também esse cavalheiro, mais misterioso ainda, sem o qual ela não poderia existir: o Tempo. Como é possível desenvolver, fazer viver um personagem, um grupo social, fora do tempo e da História? Como se poderia contar uma fábula num vácuo temporal e espacial? Claro, com artifícios de linguagem, com refinamento de técnica, é possível dar ao leitor a impressão de que o romance não tem quando nem onde. Acho que qualquer autor tem o direito de escrever o que entende, o que sabe, esquivando-se do que lhe pode confundir o espírito. O importante é que o livro seja bom. É preciso não esquecer que a História não é sinônimo perfeito de Política ou que a política não pode ou deve ser sempre partidária. No meu caso particular, tenho sido naturalmente levado em minhas ficções para problemas políticos que vivi, em geral, como espectador. Graças aos meios de comunicação modernos, hoje em dia os acontecimentos nos chegam de todos os quadrantes do mundo com mais rapidez e força.

- No Prefácio de O reino deste mundo, Alejo Carpentier postula para o romancista latino-americano a necessidade de incorporar à sua ficção a "realidade mágica". O senhor o faz, em certa medida, em Incidente em Antares. Acha que esse também é um caminho para a nossa ficção?

Conheci Alejo Carpentier em 1954, quando ele estava exilado na Venezuela por causa da ditadura do sargento Batista. É um grande romancista (Alejo, não Batista). Concordo com ele quanto à fatalidade, digamos assim, que nos impeliu para o "realismo mágico". Note-se que o adjetivo "mágico" aqui significa também "absurdo". Nossa América Latina é um território de prodígios, de maravilhas e misérias, de sustos e êxtases. Nela tudo pode acontecer. Seu tamanho, suas selvas e cordilheiras, sua gente sofrida e estranha, sua História nos induzem a uma realidade que pouco tem a ver com o "normal" cotidiano. Principalmente a América espanhola. Todos os "impossíveis" que nos narra o incomparável Gabriel Garcia Márquez em "Cem anos de solidão" tornam-se uma realidade que o leitor aceita. Não creio que tenha feito propriamente "realismo mágico" em "Incidente em Antares". O realismo mágico verdadeiro é o desses romancistas hispano-americanos (Cortázar, Carpentier, Borges...e quantos outros mais?). É todo um clima que pervaga o romance ou o conto do princípio ao fim. Se acredito que esse "realismo mágico" pode ser um caminho para a nossa ficção? Ora, todos os caminhos nos estão aberto. É muito perigoso traçar roteiros definitivos para qualquer literatura. Pensemos, por exemplo, no Rio Grande do Sul, na nossa paisagem verde e desafogada, na nossa população de origem européia, na nossa pobreza folclórica, na nossa quase ausência de "mistério à flor da terra" e havemos de concluir que o realismo mágico aqui seria algo postiço. Mas está claro que temos muitos assuntos ainda inexplorados no nosso Estado. Josué Guimarães acaba de atirar-se corajosamente a um deles em "A ferro e fogo", primeira parte de uma trilogia sobre a colonização alemã no R.G. do Sul, e da qual nos deu recentemente o primeiro volume: "Tempo de solidão". Recorrendo aos que me leem, esse romance é feito com grande economia verbal, eu diria mesmo escrito em preto e branco, Josué Guimarães consegue nele criar uma atmosfera, o que me parece das coisas mais difíceis em ficção.

- De Clarissa a Incidente em Antares haverá, certamente, uma evolução na sua literatura. Quais as linhas-mestras dessa evolução?

Eu lhe pediria que eliminasse, de saída, a expressão linhas-mestras, que me assusta um pouco e pode me embrulhar o espírito. Usando de uma simplificação que os psicólogos não aprovam, direi que tenho dentro de mim um poeta, um romântico em turras permanentes com um realista dotado de veia satírica. Em Clarissa predominou o poeta, ou se preferirem, o pintor aquarelista. Logo depois o satirista chutou o poeta e escreveu Caminhos cruzados. A seguir, ambos se uniram e produziram Um lugar ao Sol. Pode-se passar a vida escrevendo novelinhas-poemas como Clarissa se fecharmos os olhos a certos aspectos sórdidos e negativos da vida. Gosto muito do ditado anglo-saxão segundo o qual " é preciso um pouco de tudo para fazer-se um mundo". É preciso saber que as condições econômicas de minha vida pessoal, particular, influenciaram muito os romances que escrevi entre 1933 e 1940. Observe-se como meus personagens dos livros dessa época preocupavam-se com as contas a pagar no fim do mês. Eu trabalhava longa e duramente durante mais de 12 horas por dia. Traduzia livros de várias línguas para o português (mais de 40), inventava histórias para programas de rádio para a infância, armava páginas femininas para o Correio do Povo, tudo isso enquanto trabalhava na revista e na editora da Livraria do Globo. Isso explica a pressa com que escrevi meus próprios romances naquela década de 30. Considero essa fase de minha carreira um período de exercícios em que me preparei, consciente ou inconscientemente, para a obra com que comecei a sonhar depois de 1935 e que acabou sendo publicada a partir de 1949 sob o título geral de O tempo e o vento. Depois de Olhai os lírios do campo, romance cheio de defeitos, mas com grande carga emocional, comecei a ganhar royalties que melhoraram minha situação econômica. Pude trabalhar mais devagar e tive mais tempo para ler... e para me ver e julgar.

- Na publicidade de Incidente em Antares usou-se a frase: "Num país totalitário este livro seria proibido". O senhor submeteria um livro seu à censura? Por que?

Já disse muitas vezes que jamais submeterei um livro meu à censura prévia. Acho isso degradante, além de absurdo. Se André Gide, que leu a grande obra de Marcel Proust ainda em originais, não recomendou a sua publicação à editora Gallimard, que esperança podemos ter num comité de críticos literários improvisados e composto de membros da polícia federal ou de qualquer outra polícia, ou mesmo da Academia Brasileira de Letras. Repito que sou contra a censura, mas devo qualificar essa minha posição. Só merece liberdade quem tem consciência de sua responsabilidade profissional.

- Ao escrever Incidente em Antares o senhor se apoiou, naturalmente, numa certa interpretação histórica da realidade brasileira contemporânea. A seu ver, quais os fatos decisivo que conduziram ao movimento militar de 1964?

A revolução de 1964 de certo modo começou nos tempos em que se tentou impedir que Juscelino Kubitschek, legalmente eleito, tomasse posse. Atingiu um momento de alta periculosidade quando Jânio Quadros renunciou. Desse momento em diante, os dados estavami irremediavelmente lançados: o resto era questão de oportunidade, e essa oportunidade foi fornecida pela inabiidade de políticos da situação como, por exemplo, Leonel Brizola, que dizia muitas coisas certas, mas com a entonação errada e de maneira estabanada e inoportuna. Os políticos profissionais têm - não esqueçam - sua grande dose de culpa em todo esse processo que levou à revolução de 1964 e que começou pouco antes da proclamação da Repúbica. Nos anos que se seguiram, o Exército foi tantas vezes chamado a intervir nas revoluções tramadas pelo políticos (que mandavam soldados para a caserna mal conquistavam o poder) que, como era de se esperar, um dia arraigou-se a idéia na cabeça dos militares.

- Vargas é personagem de Incidente em Antares. A seu ver, o varguismo como ideologia e estilo político está completamente morto?

O varguismo está em "artigo de morte", como diria Manuel Bernardes. (Não confundir com o Presidente Arthur Bernardes). Isso não quer dizer que a imagem de Getúlio esteja apagada de todas as mentes. Mas não creio nem desejo que o varguismo como estilo político volte a vigorar entre nós. Digo isso sem rancor, pois gostava pessoalmente do homem Getúlio, embora reconhecendo os erros que cometeu. Acho que foi dos personagens mais dramáticos da Hsitória do Brasil em todos os tempos. Sinto ainda uma ponta de tristeza quando o imagino (como fazia Dona Quita Campolargo, em Incidente em Antares) em sua última noite de solidão e abandono no Palácio do Catete.

- A última cena de Incidente em Antares é um estudante que vai escrever a palavra "liberdade" num muro e é baleado pela polícia. De que maneira o senhor encara as restrições atuais à participação política da classe estudantil?

Pensei que essa cena tivesse deixado bem claro o meu pensamento a respeito do assunto. Sou favorável à participação, não só da classe estudantil, como também de todas as outras classes do Brasil na nossa vida política, através do sufrágio universal e da possibilidade de candidatar-se a um cargo público. Nunca fui partidário do terrorismo, que não leva a nada de construtivo, mas por outro lado, sempre repudiei a tortura cmo método (ou como esporte) e sou positivamente contrário à condenação de quem quer que seja por "delitos de opinião". Ninguém é criminoso por ter idéias... a não ser que se trate de idéias que levem deliberadamente ao niilismo, ao crime, ao caos.

- O seu estilo sempre foi dos mais despojados da literatura brasileira, aproximando-se bastante do jornalístico. O senhor considera isso uma fórmula peculiar sua ou uma normativa a ser seguida por todos os escritores que buscam maior comunicação com o público?

É a minha maneira de ser. Mas acho que cada escritor deve ser o que é, escrever como entende, usar mais ou menos adjetivos, frases mais curtas ou mais longas. Acredito também que às vezes é o assunto de um livro que dita o seu estilo. Comunicar-se a gente com o público é muito importante. Há em literatura duas coisas igualmente perniciosas e nem sei qual a pior. Uma é tornar-se vulgar, chulo, chão, sensacionalista para conquistar um público mais vasto. A outra é fazer-se hermético para ser entendido somente pelas elites, pelos eleitos. Mas repito que os escritores são como são. Cada qual deve ser dono de seu nariz: errar ou acertar por conta própria.

- Um balanço da cultura brasileira em 1972 demonstra que esse não é um momento particularmente criador, seja na música popular, no cinema, no teatro e na ficção, terrenos em que nos mostrávamos férteis há dez anos. A seu ver, a que se deve essa inibição generalizada?

Não sei com certeza se em matéria de criatividade estamos atravessando um período pobre na música popular, no cinema, no teatro e na ficção. Mas o que posso dizer claramente é que a censura não ajuda em nada o criador, e que a pior censura é aquela que acaba infiltrando-se aos poucos nas nossas cabeças, como um cavalo, ou melhor, um burro de Tróia. A criação é um ato de amor e de liberdade. Houve na História, eu sei, escravos que produziram obras de arte, mas isso não quer dizer que se possa trabalhar num ambiente de "não pode", "é proibido", "dá cadeia". Olhem para os países que têm censura e me digam o que aconteceu à sua arte e à sua literatura. Vejam o que se está fazendo na Rússia com Soljenitzyn e outros escritores. É uma indignidade. E quem faz isso são os homens que cresceram, tornaram-se adultos durante os regime stalinista de terror e obscurantismo, isto é, gente que nunca conheceu a liberdade de pensar e de criar. E a extrema direita é tão má quanto a extrema esquerda. Sim, vocês têm razão, a inibição que perturba nossos artistas plásticos e nossos escritores, compositores, pensadores, jornalistas é causada pelo clima criado pela censura. Pessoalmente não fui ainda censurado, mas isso não me faz feliz, pois não quero, como meia dúzia de outros escritores, ser exceção num país de quase cem milhões de habitantes.

- Mais ou menos a partir de 1968 vivemos em clima de euforia, "em ritmo de Brasil grande", na fórmula oficial. A seu ver, se justifica esse clima de otimismo?

Acho que se justifica. Nesses últimos anos, o Brasil tem crescido e em alguns setores as melhoras são visíveis a olho nu. Está claro que só temos estatísticas oficiais e nunca sabemos ao certo do que se passa nos bastidores da política. Não posso negar a Transamazônica, a melhor qualidade dos serviços postais e muitos outros empreendimentos. O que eu acho é que tudo isso se poderia fazer num regime democrático, dentro da velha Constituição, contanto que ela fosse realmente cumprida a rigor.

- O primeiro livro da trilogia O tempo e o vento descreve a incorporação do índio à civilização luso-brasileira. A seu ver, através de que formas se deu essa integração?

Não sei. Desculpe-me. Não sei. Façam essa pergunta a um especialista.

- O gaúcho valente e altivo parece historicamente desaparecido há muito tempo, embora o rio-grandense de hoje tenha herdado alguma coisa dele. Quais os traços dominantes na psicologia e no comportamento do rio-grandense médio em 1972?

O gaúcho altivo, valente, varonil, nobre, bom amigo, generoso é um arquétipo. Hoje em dia alguns (ou muitos?) rio-grandenses procuram viver de acordo com essa imagem idealizada. Ouço de turistas que o gaúcho é hospitaleiro, simpático, serviçal. Os Centros de Tradições Gaúchas deviam procurar estimular essas qualidades, dando menos atenção ao aspecto da indumentária gauchesca. A mistura de sangue é muito grande entre o nosso povo. O contingente de sangue italiano e alemão é considerável nos habitantes deste Estado. A incidência do tipo humano de pele e cabelo claros é grande entre nós. E não preciso dizer que nossa maneira de falar é inconfundível: quadrada, escandida, meio seca. Linguagem de carnívoro.

- O Rio Grande do Sul sempre foi um dos Estados mais politizados do Brasil. A que se deve isso?

Nunca tinha pensado nisso. Talvez essa politização se deva a nossa condição de fronteira (influências do Prata) e ao fato de termos sido durante mais de um século o campo de batalha do Brasil. Ocorre-me que temos sido um viveiro de líderes políticos. (nem todos bons) A figura de Castilhos, sobre quem Sérgio da Costa Franco escreveu um magnífico ensaio biográfico, é ímpar. Borges de Medeiros foi a encarnação da política positivista. Castilhos foi pai espiritual de Borges, e Borges pai de Getúlio, de Flores da Cunha, de Oswaldo Aranha e João Neves da Fontoura. Não esqueçamos o vulto interessantíssimo de Pinheiro Machado. E o de Luiz Carlos Prestes. É, parece que vocês têm razão. O Rio Grande é (ou era) um Estado altamente politizado.

- Esta politização está aumentando ou diminuindo?

Creio que está diminuindo.

- Qual a grande epopeia do Brasil atual (o acontecimento grandioso, significativo e de projeção para o futuro)?

Faça esta pergunta ao meu filho daqui a trinta anos. Minha tendência no momento é dizer que o grande herói desta hora é o povo, o homem comum, que, se continua vivo, é de teimoso. 

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