domingo, 18 de novembro de 2012

Arthur Nestrovski (As Três Educações de João Cabral de Melo Neto)


 “Só duas coisas”, dizia ele, conseguiram levá-lo a um poema: “o Pernambuco” e “a Andaluzia”. Sertão e Sevilha são os dois pólos entre os quais vem se estender o arco dessa poesia, vista em retrospecto pelo próprio poeta pernambucano, ex-cônsul brasileiro na Espanha. Sertão e Sevilha tem outro sentido, ali: um sentido que só se aprende com João Cabral, e que é hoje patrimônio da nossa cultura.

 Educação pela pedra, escola das facas: talvez só um escritor nascido e criado num ambiente de português tão rico, como Pernambuco, pudesse se disciplinar para chegar a tamanha magreza da língua. A “elocução horizontal de seus versos” não permite enlevo e desbragamento; nem mesmo a retórica de seu mestre e colega Drummond parece suficientemente “pedra” para as pedras no meio do caminho e por todos os lados da poesia de Cabral.

 À sua voz “inenfática, impessoal”, corresponde uma “lição de moral”, ou “resistência fria”, que pôde se traduzir em resistência enfática nos anos em que isso se impôs. A preocupação social na sua poesia nem sempre está explícita, mas nunca fica longe das “fábulas” de “um arquiteto” diurno e solar, votado ao “ar luz razão certa” – seja nas formas (o que é quase um mandamento dessa geração), seja (o que é mais difícil e mais raro) nos sentidos da literatura.

 O ar e a luz da Espanha, parentes distantes do agreste, fazem brotar nessa poesia outra vivacidade. A associação entre Sevilha e algo que o próprio Cabral chama “existência fêmea” é constante. Não seria preciso escrever estudos sobre uma “bailadora andaluza” para descobrir, em versos, essa energia nova da percepção. Mas a coincidência da vida espanhola da imaginação com a Espanha em si transporta Cabral para uma outra metade da sua poesia. São poucos os que vêm nela um repertório comparável ao primeiro; mas que leitor não habita, hoje, dentro de si, esse outro país que foi João Cabral quem nos mostrou?

 Foi lá, também, que ele pôde enfrentar, de frente, uma terceira educação: depois da pedra e das facas, e depois de Andaluzia, a educação pela (ou para) a morte. Volta aos Agrestes, depois, mas volta com olho viajado. Volta “às mesmas coisas e loisas”, num mesmo “não-verso de oito sílabas”, que “apaga o verso e não soa”. Como em Elisabeth Bishop, ou Paul Valéry, poetas que ele admirava, sua linguagem mais madura “não agranda e nem diminui”. É uma lente que filtra o essencial, “que todos vemos mas não vemos / até o chegar a falar dele”.

 Juntamente com Drummond, Cabral foi, por consenso, o maior poeta da língua brasileira contemporânea. Mas fora do âmbito da nossa literatura sua poesia não é bem conhecida, a despeito de prêmios e traduções. E mesmo para nós não é tão clara a dimensão que atingirá, vista como um todo, agora que se pode falar de Obras Completas. Sua dicção foi muito imitada, e as imitações tendem a perturbar a leitura do original. Mas não se disputa a força de dezenas e dezenas desses poemas; e o cânone do “melhor” Cabral ainda pode se alargar, à medida que formos aprendendo a ler sua poesia.

 A presença de Cabral na cultura brasileira era discreta nos gestos, mas tinha a autoridade modesta de sua grandeza, que ninguém contesta. Sua poesia há muito já se deu para as recriações da leitura e do comentário, que não vão acabar nunca. Sempre respeitoso, o poeta manteve distância de polêmicas, e preferiu a solidão de sua própria literatura. 

 Saiu sem alarde e sem choro, fiel à pedra e às facas, e ao sol a pino de Sevilha. A terceira educação já se anunciava há mais de cinqüenta anos, e pode servir de epígrafe para sua vida e sua obra: “Saio de meu poema / como quem lava as mãos”.

Fonte:
Folha de S.Paulo 10/10/1999

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