quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Fernanda de Castro (Caderno de Poemas)



“Testamento”

Sem lápides, sem chumbo, sem jazigo;
 caixão de tábuas, derradeira casa,
 onde repousarei, frágil abrigo,
 até me libertar num golpe de asa.

Então, quando estiver a sós comigo,
 que ninguém chore porque o choro atrasa,
 mas que alguém, se quiser, num gesto amigo,
 ponha roseiras sobre a campa rasa.

Será medo o que sinto? Não é medo.
 Serei, não serei digna do Segredo?
 Ah, meu Deus, para lá das nebulosas,

Mereça ou não a expiação, a dor,
 entrego-Te a minha alma sem temor.
 O que resta, o que sobrar, é para as rosas.

“Ah, que bela manhã de Primavera”

Ah, que bela manhã de Primavera!
 Abram ao sol as portas, as janelas!
 Cheira a café com leite, a sabonete,
 a goivos, a sol novo, a vida nova!

A Rua canta!… sinos e pregões,
 apitos e buzinas, vozes claras.
 –”Gostas de mim?” — “Gosto de ti” — e o céu
 cobre a Cidade com seu manto azul.

Ah, que bela manhã de Primavera!

Pousam no Tejo barcos e gaivotas,
 com velas novas, belas asas novas.
 Os eléctricos voam, transbordantes,
 a tilintar, a rir nas campainhas,
 e os automóveis, como borboletas,
 circulam, tontos, nas ruas sonoras.

Ah, que bela manhã de primavera!

No Tejo, os vaporzinhos de Cacilhas
 brincam aos barcos grandes, às viagens,
 e o pequeno comboio vai e vem,
 como um brinquedo de menino rico.
 Confundem-se nas árvores, ao sol,
 folhas e asas, pássaros e flores.
 É festa em cada rua. Em cada casa,
 um canário a cantar, uma cortina,
 um craveiro florido na janela.

Despejaram-se armários e gavetas,
 frasquinhos de perfume…Toda a gente
 foi para a rua de vestido novo,
 de fato novo, de gravata nova,
 e tudo canta, a Rua é uma canção.

Ah, que bela manhã de Primavera!

–”Gostas de mim?” — é o tema da canção.
 –”Gostas de mim?” — pergunta-lhe ele a ela.
 –”Gostas de mim?” — pergunta à flor o vento
 e a flor ao rouxinol… — “Gostas de mim?”
 –”Gostas de mim?”, “Gostas de mim?”
 Cheira a goivos, a sol, a vida nova…

Ah, que bela manhã de Primavera!

“A Pedra”

Deus fez a pedra rude, a pedra forte,
 e depois destinou: -Serás eterna.
 Mostrarás a altivez de quem governa,
 Não ousará tocar-te a própria morte.

E a pedra julgou linda a sua sorte.
 Foi palácio, foi templo, foi caverna,
 foi estátua, foi muralha, foi cisterna,
 viveu sem coração, sem fé, sem norte.

Mas viu morrer o infante, o monge, a fera,
 o herói, o artista, a flor, a fonte, a hera,
 e humildemente quis também morrer.

Não grita, não se queixa, não murmura,
 guarda a mesma aparência hostil e dura
 mas sofre o mal de não poder sofrer.

“Asa no espaço”

Asa no espaço, vai, pensamento!
 Na noite azul, minha alma, flutua!
 Quero voar nos braços do vento,
 quero vogar nos braços da Lua!

Vai, minha alma, branco veleiro,
 vai sem destino, a bússola tonta…
 Por oceanos de nevoeiro
 corre o impossível, de ponta a ponta.

Quebra a gaiola, pássaro louco!
 Não mais fronteiras, foge de mim,
 que a terra é curta, que o mar é pouco,
 que tudo é perto, princípio e fim.

Castelos fluidos, jardins de espuma,
 ilhas de gelo, névoas, cristais,
 palácios de ondas, terras de bruma, …
 Asa, mais alto, mais alto, mais!

“Amar”

O segredo é Amar… Amar a Vida
 Com tudo o que há de bom e mau em nós.
 Amar a hora breve e apetecida,
 Ouvir todos os sons em cada voz
 E ver todos os céus em cada olhar..

Amar por mil razões e sem razão…
 Amar, só por amar,
 Com os nervos, o sangue, o coração…
 Viver em cada instante a eternidade
 E ver, na própria sombra, claridade.

O segredo é amar mas amar com prazer,
 Sem limites, sem linha de horizonte…
 Amar a Vida, a Morte, o Amor!
 Beber em cada fonte,
 Florir em cada flor,
 Nascer em cada ninho,
 Sorver a terra inteira como um vinho…

Amar o ramo em flor que há-de nascer
 De cada obscura e tímida raiz…
 Amar em cada pedra, em cada ser,
 S. Francisco de Assis…

Amar o tronco velho, a folha verde,
 Amar cada alegria, cada mágoa,
 Pois um beijo de amor jamais se perde
 E cedo refloresce em pão, em água!

Fonte:

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