segunda-feira, 12 de novembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) 4 de dezembro: O Jornal Demorou-se


O Jornal demorou-se; e portanto assentei de pagar-vos já a dívida em que estou a respeito da representação do Roberto do Diabo, que teve lugar na noite de sábado.

Eram  oito horas quando SS.MM. apareceram na tribuna e receberam as saudações costumadas ao som do hino nacional. Uma chuva de rosas e de versos caiu sobre a platéia; houve algumas pessoas que receberam na cabeça seguramente uma resma de papel.

Os camarotes apresentavam neste instante uma vista encantadora. Cada ordem formava uma espécie de graciosa Coréia de corpinhos sedutores e de lindos rostinhos, entre os quais aparecia a espaços a cabeça calva e a farda bordada de algum novo visconde, ou barão, ou comendador.

Muitas vezes é este o mais belo momento de uma noite de teatro em dia de gala. Com um simples lanço d’olhos corre-se  todo esse painel magnífico, desenhado ao mesmo tempo pela natureza, pela arte e pela moda. Pode ver-se ali um tipo suave, uma bela face sempre pensativa, um pouco melancólica, como dessas almas puras, filhas do céu, que sentem na terra as saudades de sua menção divina. Além o rostinho moreno de uma huri de olhar cintilante e lábio risonho. Deste lado uma imagem de mulher, à qual a natureza deu a mais bela expressão de beleza altiva, e que recebeu de Deus, em vez de coração, a mania dos caprichos.

Depois de alguns recitativos, de dois sonetos, sobre os quais eu me calo, para seguir o exemplo do poeta, cantou-se o novo hino do Imperador; e os espectadores, atentos e cheios de curiosidades, esperavam o momento de ouvir pela primeira vez naquele teatro as harmonias de Meyerbeer.

Onde quer que te aches agora, sublime maestro, estou certo, que sábado à noite, até por volta de duas horas, em que o diabo na figura de Bouché sumiu-se pelo tablado, não pudeste conciliar o sono e levaste a rolar na cama, como se te perseguisse um exército de pulgas e mosquitos. Esses sobressaltos que naturalmente sentiste, esses ardores de orelhas, esses pruridos de pele, tudo isto não era nada menos do que as pancadas da banqueta do Barbiere, a rouquidão do Gentil, a desafinação de não sei quem, e finalmente a tesoura do ensaiador, que dizem cortou à larga pela tua sublime partitura. Consola-te, pois, meu amigo, são os percalços do ofício.

Em tudo isto, porém, só te deves queixar daquele que assegurou à diretoria que era possível meter-se em cena, com os modestos recursos do nosso teatro, uma peça que tu sabes quanto te custou a montar no Grande Ópera de Paris. Sem cantores, sem orquestra, sem maquinismo próprio, era fácil prever o que resultaria de semelhante projeto.

E não pára aí: para que a criatura fosse mais completa, ensaiou-se na véspera até as duas horas da noite, e admitiu-se que o mestre da dança lhe desse a última demão, inventando um dançado no meio de um torneio, e prolongando infinitamente a cena do cemitério, como se ainda não fossem suficientes seis horas de maçada.

Nem o hábil pincel do Bragaldi, nem a expressão original da música, às vezes terrível, às vezes singela e encantadora, puderam destruir a desagradável impressão que produziu nos dilettanti essa vigília lírica, que durou até à madrugada.

O Gentil, rouco como estava, não pôde fazer valer os seus recursos; o Bouché não estava em bom dia. A Charton, porém, foi apesar de tudo, para a cena e para os dilettanti, o bom anjo que protegia Roberto do Diabo; com a diferença, porém, que na cena vence o diabo, e no ânimo dos dilettanti, não pôde vencer o caiporismo fatal que presidiu à execução da partitura. O Duque da Normandia foi para o céu, a representação da ópera de Meyerbeer caiu no inferno.

Talvez muita gente nesta noite estivesse como Roberto na cena, às lutas com  dois sentimentos opostos, tendo à direita o seu bom anjo, à esquerda o seu mau gênio. Queira Deus que a imagem encantadora de alguma Alice lhes tenha aparecido com seu ingênuo sorriso, e os salvasse de uma vez para sempre da tentação, guiando-os como sua boa estrela através dos escolhos da vida, e acenando-lhes de longe com suas asas cor-de-rosa, como o Anjo da Guarda que figura nas poéticas legendas da nossa religião.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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