domingo, 18 de novembro de 2012

Mário de Carvalho (Uma vida toda empatada...)


(Foi mantida a grafia original)

Pelas nove e meia da manhã, a carrinha Ford Transit, de pneus sonolentos em cima do empedrado, rés ao edifício da televisão já estava a dar desgostos. O espelho do lado do condutor não queria fixar-se. Lasso, balouçava numa indecisão frouxa, e, por mais tratos que o motorista lhe aplicasse, acabava-se numa horizontal idade teimosa. Além disso, um polícia, de viso enjoado, viera advertir que não queria a viatura em cima do passeio. Não lhe interessava saber se os transgressores trabalhavam prà televisão, prà banco, ou prà centro comercial. Da próxima vez que voltasse, autuava. E virou decididamente as costas à arenga de Lurdes Barbosa que chefiava a equipa. Apesar do porte argumentador, ela era destituída de competência para mandar em polícias. Provavelmente o homem reconhecera-a do ecrã. Reminiscências. A circunstância demonstrava que ser-se uma personagem pública nem sempre deixa a autoridade bem impressionada.

O que mais atenazava os ocupantes da carrinha era que passava das nove e quarenta, e o operador de som e a assistente ainda não tinham dado sinal. Nem acudiam ao telemóvel. Dois recados no atendedor de chamadas, um de mitigada censura, outro de protesto gritado, serviram apenas para marcar posição e dar conta da impaciência de quem esperava. O motorista, naquela manipulação do espelho descaído, ia rosnando que não tinha saúde para multas logo pela manhã.

Todos olhavam de rijo contra os vidros, na ânsia de que o casalinho chegasse, sabia-se lá donde, enquanto o motorista debatendo-se com o espelho estava já a levar aquilo a título muito pessoal. Praguejava que só lhe aconteciam era destas. A maquilhadora, com um risinho duvidoso, declarava-se «muito enervada». E a autora-produtora dizia que «isto estava mas era a começar mal. O Guedes que desse uma volta pelo quarteirão, não fosse o polícia mal-encarado aparecer outra vez. E se eles, em chegando, não vissem o carro? Que fizesse mas era o que lhe diziam, e deixasse a bodega do vidro cair de vez». Resposta: «Porcaria de material. Há equipas que andam para aí, de rabinho tremido, num monovolume novo. A mim, sempre a sucata. Para a próxima, recuso.»

A autora percebeu a alusão à insignificância do programa e, por interposta viatura, a ela própria, também. Mas conteve-se na resposta, não fosse provocar uma nega reivindicativa do outro, capaz de alegar que o carro não se encontrava em condições e de invocar o contrato colectivo.

Virada a chave de ignição, a carrinha atirou um rolo de gases negros e pôs-se a tremer, com umas estridências de lata, pouco subtis. Ao tremeção, o espelho lateral deu um pinote e desfeiteou o manejo paciente do motorista que alternara a carícia com a palmada, numa técnica secularmente conhecida. O operador de imagem quis desanuviar o ambiente: «Vamos lá, 'tá a começar o dia. Quer-se é energias positivas!

Mas a maquilhadora que espreitava, muito ansiosa, pelo vidro da retaguarda, alertou: «Lá vêm eles, lá vêm eles!» Depois, com a excitação, cerrou os punhos pequenitos junto à boca. Lurdes Barbosa, num rompante, afastou a porta corrediça. Calculou mal o esforço, e a porta deslizou num estrondo, ressaltou e teve de ser novamente empurrada, com entreajudas.

Vinham os dois, muito vagarosos, muito abraçadinhos, muito  enroscadinhos um no outro, muito vestidinhos de preto, de material a tiracolo, distraído e à desbanda. «Íamos já embora. Desta vez ficavam em terra!» «Ah, sim? E eras tu que fazias o som, não?»

Ele deixou passar primeiro a rapariga, aconchegou-a no banco do meio, com muita ternura, fez um gesto tranquilizador de mão horizontal, e trancou a porta. «Isto não volta a acontecer. Operadores de som é o que não falta por aí!» «Andar, andar», interrompeu o da imagem, com voz de grande enfado. «O dia está bonito. Positividade, pá! Prego no fundo, ó Guedes! »

E todos se calaram com o solavanco que a carrinha deu ao descer do passeio.

A equipa era a que se tinha conseguido arranjar. As negociações com a direcção de programas tinham dado em excesso do que interessava menos: o jovem casal, com funções híbridas de som, assistência e anotação e a maquilhadora, de todos conhecida familiarmente por D. Matilde, francamente impingida para não a verem sentada no estúdio, com a revista Maria na mão. Naquele ano havia maquilhadoras a mais, e D. Matilde era sossegada. Mostrava-se sempre disposta a participar num trabalho de exteriores, com a sua caixita de pó-de-arroz.

Ninguém dava nada por aquele programa, a não ser Lurdes Barbosa, a autora, que se batera por ele durante anos. Corria mesmo que, em dada altura, tinha chegado a dormir com as pessoas erradas. De cada vez que mudavam as chefias, lá estava ela a tentar que a recebessem, com a papelada na mão, porque sabia que outros exemplares, já entregues, haviam de andar perdidos pelos cantos da casa.

Ela, em tempos, apresentara uma programação infantil, às quatro da tarde, com concursos de desenho, actores vestidos de coelho e mágicos fraldiqueiros. Os colegas diziam que aquela voz áspera e uns modos bruscos de lidar com as crianças desfavoreciam a popularidade do programa. Os críticos alarmavam-se, semanalmente, com os erros de gramática e as silabadas. Ninguém dava confiança aos críticos por eles serem, consabidamente intelectuais despeitados, fracos nas prestações televisivas, maníacos dos pormenores. Mas o programa acabou por ser suspenso quando o Ministério da Educação deu discreta conta ao Ministério da Tutela de um abaixo-assinado de professores sobre uma matéria algo confusa relacionada com próclises, ênclises e utilização de pronomes. A coisa soube-se. Foi uma indignação. Os colegas, na ocasião, mostraram-se solidários e houve quem sugerisse acções colectivas. A sugestão caiu bem, tão bem que satisfez e esgotou o sentido de justiça de todos, e Lurdes Barbosa foi ficando por uns tempos naquele limbo a que se chama, com subtileza metafórica, «a prateleira» .

Mas era uma lutadora. Tinha tempo para pensar e pensava. Congeminou um «pacote», de programas, que incluía um concurso chamado A Lata, em que se previa um arauto que fosse anunciando números, até que um dos concorrentes o interrompesse, levantando o dedo. O concorrente que se aproximasse mais do número extraído duma tômbola ganhava o que os patrocinadores fornecessem, de preferência um automóvel, mesmo dos baratos. Toda a gente, nos bares da estação, lhe deu sugestões amigáveis de artistas a convidar, e ela chegou a convencer-se de que era autora do melhor concurso do mundo. «Regista-o, não te esqueças de registar o projecto.» «Ela não registou, confiou, afinal toda a gente sabia que A Lata era dela. A Lata foi para o ar uns meses depois, com produção duma empresa externa e aperfeiçoamentos de luxo. Houve desacato. Lurdes Barbosa atirou coisas a um magnata da produção, depois duma espera à porta de certa vivenda da Quinta da Marinha, fez escândalo pelos corredores da estação e deu pontapés na porta sempre cerrada da direcção de programas. Tinham-lhe roubado a ideia. Envolvidas no assunto, a SPA e uma advogada particular nada puderam fazer. Falta de testemunhas, carência de prova. Os profissionais que tão calorosamente haviam contribuído para o aperfeiçoamento d'A Lata, os que tinham propinado bons conselhos, vinham agora dizer que não sabiam de nada, que não se lembravam de nada. Lurdes foi-se abaixo, entrou em depressão, fez compras absurdas, meteu-se em despesas de psicoterapia, recorreu à baixa médica. Quem a curou foi um feiticeiro senegalês, muito anunciado nos jornais, que fazia rezas com missangas e aplicações de óleo de babuíno.

Os anos passaram, Lurdes regressou, superou a mágoa d'A Lata e aperfeiçoou entretanto uma pronúncia nas alada, própria dum sociolecto de ricaços festivos, que se pratica nos arredores de Lisboa. Tinha-lhe sobrado tempo para treinar. Mas não deixou de batalhar pelos seus projectos mais queridos, já antigos. Um chamava-se O Cantinho Predilecto e pretendia desvendar os recantos preferidos das personalidades famosas: o em que o gato pernoita, o em que o bibelô favorito está arrumado, o em que se dorme a sesta, o em que se esconde o cofre-forte. Outro, em que ela apostava menos, teve vários nomes: O Verso e o Reverso, O Verso e o Anverso, O Torto e o Direito, e acabou por se chamar definitivamente O Agradável e o Útil. A ideia era simples e duma originalidade flagrante, de novo muito elogiada pelos colegas, na cantina. Um profissional determinado tinha uma ocupação secundária: por exemplo, um pescador que também era arqueólogo, um advogado que coleccionava bichinhos-de-conta, ou um tratador de cães que desenhava vestidos. Palavras e imagens do convidado numa e noutra das actividades. Vinte e cinco minutos. Segundo canal. Tarde.

Não foi bem o condoerem-se dela nem o ficarem fascinados pela excelência do produto. Foi mais o procurarem preencher uma lacuna com um programa barato, nacional, instrutivo, a piscar o olho ao serviço público e a compatibilizar-se com a maneira de ser de Lurdes Barbosa. Chamaram-na para uma reunião. Ela caiu das nuvens e preparou-se para entrar de novo nas nuvens, suportando-se de papéis e mais papéis.

A discussão foi dura, prolongada e muito argumentiva, quer pela combatividade dos circunstantes quer pelo gosto das reuniões que eles tinham, porque lhes davam, a par duma ilusão de racionalidade prática, a sensação forte do exercício do poder. Ficou claro que o âmbito das entrevistas era apenas o universo das personalidades não mediáticas, já que o outro estava entregue a uma serigaita de formas agradáveis que calhava ser sobrinha dum administrador.

E mais claro ainda ficou que teria de aceitar a equipa disponível e não outra: quiseram lá saber dos nomes que ela levava em carteira. Riram-se-Ihe das ambições. Impuseram-lhe um operador com tendência para os planos esquinados, uma anotadora jovem que tinha feito duas missas, o marido dela que andava a estagiar no som e ainda a D. Matilde, maquilhadora, porque sempre convinha que os convidados não aparecessem com aquele ar azulado que desfeia os ecrãs e a senhora já tinha choramingado que andava muito desaproveitada. Realizador? Realizasse ela, que tinha experiência. Era só zoam para diante e zoam para trás... Quanto a produção, ela própria que tratasse da logística: ao fim e ao cabo, aquilo não havia de ser tão difícil assim. Uns telefonemas, e tal...

Foi tremenda e exaustivamente casuística a discussão destes aspectos, para não falar dos que diziam respeito a verbas. Mas o caso encerrou-se quando um dos adjuntos da direcção lhe disse, com um olhar fixo e uma melíflua e quase desalentada delicadeza: «Querida, minha Lurdes qúeriducha, ou sim ou sopas!» Eram horas do jantar.

O motorista, o Guedes, soube ela depois, já tinha estourado dois carros na estrada, era senhor de rancoroso feitio e delegado sindical, dos activos. E assim, lá iam, pelo Sul afora.

Iam para onde? Para uma terra perdida, no Alentejo profundo, chamada Vale do Alardo, a montante de Mértola, tem-te a roçar a raia. Não vinha no mapa, mas o Guedes garantia que com ele não havia enganos. Quem tem boca vai a Roma e quem tem motor, vai a Ulan-Bator.

E tomaram o caminho de Évora, pela Ponte Vasco da Gama. Aquela ponte, branca garça langorosa estendida de asas ao alto, ou nívea harpa repousada nas águas (a rapariga silenciosa fazia poemas mentais), deu conversação. Mesmo Lurdes Barbosa, que entendia que nestas coisas de obras públicas ficava bem ser-se crítica, não evitou um «escapa!» que suscitou concordâncias cúmplices. Mas o Guedes deixou passar a euforia e replicou: «Eu é que sei!»

Esperou que alguém lhe pedisse explicações, mas como o pedido tardava, adiantou por bel-prazer: «A ponte queria-se era ao lado da outra. Metade do trânsito pra cá, metade pra lá! Assim é que era!»

Lurdes Barbosa deu a modulação mais nasalada que podia ao desprezivo «acha?» que proferiu. Mas o motorista não era sensível às tonalidades de Cascais: «Eu é que sei! Ando nisto todos os dias...»

E a afirmação de ciência calou todas as bocas e desmobilizou todos os comentários. O Guedes, sempre que falava, virava a cara, deixava a estrada por conta do carro, e isso não encorajava as réplicas. Os dezassete quilómetros da ponte foram percorridos em silêncio. Até que, já com o castelo de Palmela à vista, retiniu miudamente um sonzinho. Apalparam-se telemóveis inocentes, mas o operador de imagem exibia ao alto um objecto que parecia vagamente um relógio de colete, dos que havia antes. Era o seu tamagoshi. «Ai, que giro, um ikebana», disse, enternecida, a D. Matilde.

Lurdes pensava que o objecto se chamava um tsunami, mas não quis contrariar ninguém. À ida, convinha ser-se sempre conciliadora. À volta, logo se veria. O operador continuava com a propaganda: «Dá sentido de responsabilidades. Olha agora está com fome. Carrega-se neste botãozinho, assim, assim, e fica alimentado.» D. Matilde: «Deviam distribuir aos drogados da Picheleira, a ver se eles se afeiçoavam a alguma coisa.» A D. Matilde morava no Alto do Pina e tinha sempre uma história de drogados para contar. Achava que, com a Picheleira, o País estava a perder-se. O rapaz do som abriu-se num grande bocejo e a jovem apertou-se mais contra ele. «Ainda outro dia...», começou a maquilhadora...

E só acabou quando o Guedes que tinha vindo a intercalar que eles deviam ser todos lançados ao rio (quilómetro quarenta), todos degolados (quilómetro oitenta e quatro) e todos enforcados nos candeeiros (quilómetro cento e sessenta) proclamou a sagrada hora do almoço. Ar feroz, canto da boca esbordinado, pronto a defender as suas prerrogativas de trabalhador com horário, sentiu-se, no íntimo, desapontado por ninguém protestar. Parou junto de um restaurante que ele lá quis.

Ao almoço, Lurdes Barbosa tentou logo dominar a conversação. Falou-se de «vidas anteriores». D. Matilde também era versada. Que tinha sido sacerdotiza, na velha Jerusalém. Valia mais que a autora, que se tinha ficado por aia na corte de D. Sebastião, e escrava de Cleópatra, uma das mordidas pela áspide nos figos. O casal, muito enjoado, não participou. Voltaram logo para a carrinha, com duas sandes de fiambre. Boa oportunidade para que a conversa sobre «vidas anteriores» acabasse e os três se dedicassem a comentar o que conheciam daquela vida. posterior.

O Guedes palitava os dentes com a unha do polegar. A operação dava-lhe visível prazer. Só interrompeu, de má vontade, quando Lurdes Barbosa, paga e facturada a conta, ordenou: «Vamos embora.»

O lavrador, de camisa de nylon roxa, colarinho às três pancadas e boné de xadrez a deslizar-lhe para o nariz, sombra funda nos olhos, já lá estava à espera, na praça, um bom bocado antes da hora. Veio caminhando para a carrinha, meio curvado, de mãos a bandear, e assegurou-se de que era o «pessoal da televisão». Manápulas apoiadas no tejadilho, a cara, magra e ossuda, de pele encarquilhada da calma, perscrutou, sem pressa, cada um dos recém-chegados. Lurdes Barbosa desatou a fazer perguntas, muito profissional: «Foi o senhor quem telefonou? É o senhor que faz versos?» Mas ele limitou-se a dizer: «Venham andando atrás de mim.» Desandou, lento, e foi meter-se numa camioneta empoeirada, onde estava já um fulano novo, arruivado, a assomar pela janela, muito esgrouviado, com uma maçã-de-adão bicuda, que não parava quieta... «O que é que você está aí pasmado? Arranque, vá!», ordenou Lurdes ao Guedes.

Foi um tormento de socalcos, covas, areias, águas vadeadas, vaiados subidos e descidos até chegarem ao monte, uma fieira de casas velhas, estiradas sobre um cabeço, entre brilhos de romãzeiras. O homem apeou-se e o companheiro também. Era ali.

Não houve grandes conversas. A equipa, derreada, saiu do carro e começou a tirar os aparelhos da bagageira. Lurdes Barbosa quis saber onde é que estava o senhor para o programa. O sol afligia. O moço que vinha com o homem da camisa roxa sorria, de boca torta, e produzia uns sons inarticulados. Era meio atrasado da cabeça. «Já que insiste, venha ver», disse o lavrador.

Dentro do monte, de chão de terra batida, um velho olhava para um televisor, ligado a uma bateria de automóvel por dois cabos. Deitou um olhar vago, à chegada dos estranhos, e continuou a ver o programa. Uma mocita, sentada no solo, com dois alguidares na frente, descascava ervilhas, e não quis saber dos visitantes. O lavrador curvou-se para o velho: «Mê pai, estão aqui os senhores da televisão.» O velho reagiu à voz, abriu uma boca desdentada e começou a chorar, numa lamúria baixa, muito lamentosa. As mãos tremiam-lhe. Babava-se. Lurdes puxou o lavrador para o lado, e quis saber se era aquele o velhote que ainda puxava o arado aos oitenta anos e fazia versos populares e barquinhos de cortiça. E o homem respondeu: «Pois isso era antigamente, mas não interessa.» «Não interessa?» «O que interessa é o que eu lhes vou mostrar.»

Lurdes Barbosa não estava acostumada àqueles tratos. Habitualmente, traziam vinho do Porto, bolinhos, e eram muito efusivos e respeitadores. Quis esclarecer as coisas. Ela vinha peloooarado, pelos versos e pelos barquinhos. Mas o lavrador não se prestava a grandes conversas: «Vamos lá andando...»

De novo serpearam atrás da camioneta, por montados bravios. O Guedes dizia que assim não se responsabilizava pela viatura e Lurdes sentia-se, no íntimo, arrependida de não ter esmiuçado devidamente o ponto da situação. A equipa ia descontente e moída dos rins. Outro monte. Cães a ladrar. Paragem. Imensos, quedos sobreirais retorcidos até ao infinito.

«Agora, aqui o amigo», disse o homem de roxo para o operador de imagem, «põe aí a máquina a funcionar, que eu quero isto tudo contado a preceito.» «o quê?» Lurdes Barbosa a protestar: «Eu peço imeeeeeensa desculpa, mas...» a ruivo que vinha na camioneta chegou-se preguiçosamente. Trazia uma caçadeira apoiada no braço direito. Na mão esquerda, as chaves da carrinha da televisão. o lavrador: «Aqui o mê Zé também tem uma máquina.» Apontou para a caçadeira. «Esta é a que faz marchar as outras todas. Entendido? Filme aí.» o homem fez um largo gesto circular, de mão em concha. «Filme lá!!!» a operador olhou para Lurdes Barbosa, mas recebeu apenas, num aperto de bíceps, um sinal que queria dizer «faz como ele diz». E apontou a câmara para o monte, para o galinheiro, para uma oliveira e, finalmente, fixou-se no homem de roxo, que pigarreou e proferiu, solene e magoado, para a objectiva: «Eu quero dar fé dum grande escândalo!» Repetiu «um grande escândalo», abanou tristemente a cabeça, suspirou, virou as costas e entrou nas casas. A equipa dispunha-se a ficar ali pasmada, no terreiro. Mas o moço ruivo levantou a espingarda e todos seguiram de roldão atrás do homem. Mesmo o Guedes, que não encontrou receptividade para a alegação de que estava ali só para conduzir e não tinha nada a ver com a matéria.

«Tem som? Está a sair bem?», perguntou o homem de roxo. Estavam dispostos em círculo, numa quadra escura, ao fundo dum corredor. Uns raios de Sol refulgiam numa telha de vidro e vinham dar forte no tampo duma arca enfarinhada. Cheirava a azedo. Havia potes em volta, garrafões, uma almotolia de lata e, a um canto, pendiam dos barrotes do tecto as canas duma queijeira. Em duas cadeiras de bunho sentavam-se uma moça assaz grávida e um rapaz moreno de olhos muito negros e muito assustados. Orectângulo da porta, há pouco desaferrolhado, era agora ocupado pelo ruivo Zé, que, meio alheado, balanceava lentamente a caçadeira, com os canos a bater ora num ombro ora noutro.
O operador virou-se para o homem da camisa roxa com um ar quase suplicante: «Ó senhor, veja lá em que é que nos está a meter.» «Não há azar», disse o lavrador e ordenou: «Luz!» Vinham prevenidos com um reflector e uma bateria. O clarão, forte, desfez as sombras e iluminou o aposento até aos recônditos mais ocultos. Impressionava menos, agora. Mas o rapaz quase deu um salto na cadeira, do susto.

Mais uma vez, Lurdes quis arguir. Que aquilo era um programa para o canal dois, que tratava só de ofícios e de hobbies, 'tá á perceber?, que aquele assunto tanto se lhes dava, que os tinham apanhado à má fila, bem vê, com um telefonema falso sobre um velhote que, enfim, se o rapaz estava numa de disparar a caçadeira, pronto, fazia-se o jeito, mas... E a equipa prontificou-se a fazer o jeito. Nem apreciaram muito que Lurdes se pusesse a protestar porque convinha era manter a calma, a caçadeira distraída, porque o mau momento havia de passar. O operador de imagem mostrou-se prestimoso, muito obediente, a maquilhadora avançou, com os seus pés, o jovem do som aprestou os aparelhos e a assistente fez estalar uma claquete junto da cara do homem de roxo, que desconfiou mas deixou andar. «Agora apanhe-me aqui a mim!»

Aquilo, prosseguiu o lavrador, era uma grande escandaleira e ele queria que todo o país (as portuguesas e os portugueses) soubesse que aquele moço que ali estava (desvio da câmara para devido enquadramento, registo da voz em off) lhe havia emprenhado a filha (close da filha) e que quando ele, pai surpreso e desgostoso, o tinha chamado a contas para reparar o feito pelo casamento, o descarado lhe pedira uma avença de 300 contos por mês. Que tinha depois reduzido a 250 contos. Se isto era justo e decente. Se não era, que fosse ali registado para aparecer no telejornal e o país todo ficar a saber! Até para que outros pais ficassem prevenidos. «Já está?» O operador de câmara levantou o polegar esquerdo e pôs a máquina em repouso.

O homem de roxo admoestou o rapaz: «Estás a ver? A vergonha em que tu caíste? Toda a gente vai conhecer as tuas trombas e fica a saber que querias receber um ordenado para toda a vida, por uma prenhez...» A rapariga mexeu-se, reagiu, mas o pai foi imperativo, com um gesto de mão alçada muito alto, quase a rasar a telha-vã. «Tu, caluda, hem?» «Sôr Fradinho, vossemecê não tem razão, e eu vou explicar tudo. Isto é dever de todos os sogros ajudarem os genros e sempre foi assim... O senhor entendeu mal o que eu estava a dizer. Agora, fechar-me aqui é que não está certo.»

«Ah, entendi mal? Então ligue lá essa gaita outra vez.»O lavrador sentou-se num bidão amolgado que arrastou com grande ruído para o pé da filha e do outro e ali começou uma arenga. Desta vez a rapariga interveio para dizer que era maior e vacinada e que ela é que sabia da vida dela. Pelo canto do olho, o lavrador ia confirmando se a luz vermelha da câmara estava acesa. À porta, o matulão da espingarda bocejava. Por não ter nada que fazer, o Guedes motorista, a título rigorosamente excepcional, deu uma ajuda, segurou no tripé do reflector. E nunca mais havia maneira de acabarem a discussão. «Que era um ordenado.» «Que não era.» Lurdes, num rompante, sentou-se na cadeira ao lado da rapariga e resolveu pôr ordem naquilo. «Com licença! Eu modero isto.»

O lavrador e os outros deram-lhe espaço, o lavrador tirou o boné que pôs sobre os joelhos. A toda a largura da testa mostrou um vinco vermelho que se continuava pela nuca num fino rego de cabelos empastados. A maquilhadora distribuiu pinceladas por aquelas caras. «Silêncio!» «Claquete!» «Câmara!» «Acção!» «Estamos num monte alentejano, a poucos quilómetros de Vale do Alardo. Alguma coisa se passou que fez perder a cabeça ao senhor... Desculpe???» «Hilário Fradinho!» «... ao senhor Hilário Fradinho. À minha esquerda encontram-se... Comecemos pelo senhor Hilário Fradinho. Senhor Hilário Fradinho, conte lá...»

Três horas depois, desviava a Ford Transit para a estrada de Montemor e iam todos amuados, a caminho do lanche. Tinham transportado o rapaz do monte até à vila, e o lavrador não se opusera. Também parecia mais conciliado com a filha. O homem ficara tão contente por desabafar em frente das câmaras e convencido de que tinha ganho a discussão com o problemático genro, que já estava por tudo. Ofereceu vinho, ofereceu queijo e chouriços. Queria mostrar-lhes a propriedade, a adega, as vacas. Queria retê-los, num acesso possessivo de hospitalidade. Um castigo. Foi preciso que Lurdes lhe garantisse que tinham de partir depressa para chegarem a tempo de passar o debate no telejornal das oito.

O rapaz era pouco falador. Sentou-se ao lado do casalinho e veio durante todo o percurso a rosnar, de si para si: «Uma vida inteira empatada, ora o cabrão do velho, hã?» Pediu que o deixassem no largo da vila e ala!

Mal ele saiu desataram todos a falar ao mesmo tempo. O jovem casalinho de preto queria fazer queixa à guarda. Sequestro, e tal. D. Matilde não se fartava de dizer o medo que tinha apanhado. O Guedes entendia que o moço tinha razão. Se o queria para genro que lhe pagasse, que os tempos não estão para abébias. O operador de imagem declarou com pena que o seu tamagoshi tinha morrido. Pusera-se a vibrar durante a filmagem, mas ele não tinha querido fazer gestos que pudessem ser mal interpretados pelo da espingarda, que parecia não ser lá muito certo... E Lurdes proclamou o seu enfado. Que não se ia fazer queixa, de forma nenhuma, porque ela não estava para passar a vida a caminho de um tribunal qualquer perdido no Alentejo. Que se estava nas tintas para o tsunami do outro. Que lamentava, sim, era o dia perdido, sem trabalho feito. Que não queria saber das opiniões do Guedes para nada. E que se calassem e a deixassem em paz, porque a responsável pelo programa que ia aparecer em Lisboa de braços a abanar era ela.

Na esplanada de Montemor, o desconforto das almas mantinha-se. Eram seis da tarde. Lurdes perguntou ao empregado se não conhecia alguém que fosse ao mesmo tempo um profissional, sei lá, e tivesse outra actividade interessante. O homem ficou desconfiado. À primeira deve ter pensado que estava a lidar com os das Finanças, ou fiscais de qualquer coisa. Mas Lurdes, paciente, explicou-lhe que eram da televisão, que estavam a fazer um programa... «Bom, o meu tio, que é barbeiro, ensinou um melro a falar... Um melro, assim pequenino, que canta a Aurora.»

Lurdes e o operador de imagem entreolharam-se num relance. Tínhamos homem. O programa estava salvo. «Achas que ainda há luz?» «Dá-se-lhe com o foco.» «Toca a ir buscar os equipamentos, depressa.» «o que é que se faz às imagens do monte?» «Rebobina-se e grava-se por cima.»

Andor! Nem deram gorjeta ao homem.

Fonte:
Mário de Carvalho. Contos Vagabundos. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.

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