O tempo corre, passam-se os dias, e o ano vai rapidamente chegando a seu termo; mais algumas semanas e ele cairá na eternidade como um grão de areia na ampulheta das horas.
A comparação não tem nada de novo, é muito antiga; mas por isso mesmo acho-a excelente para um ano velho e caduco, que está tão próximo a deixar-nos, que os historiadores já se preparam para disseca-lo e fazer-lhe autópsia.
Assim, esse pouco tempo que nos resta é consagrado ao adeus e às despedidas. Tudo se despede, e os dias vão correndo de despedida em despedida até que chegue o momento de dizermos a este ano, como se diz no Barbeiro de Sevilha ao massante D. Basílio: Buona sera, mio signor.
A primeira despedida foi a do Cassino na segunda-feira. Pela última vez o baile aristocrático abriu os seus salões aos convidados. Para o não – se é exato o que nos prometem – em lugar desta casa antiga e desses repartimentos acanhados, veremos elevar-se nesse mesmo lugar algum palácio de fadas, que nos dará uma vez por mês, e sem ser preciso irmos ao Oriente, uma cópia fiel das Mil e uma noites.
Talvez isto faça reviver os belos tempos do Cassino, quando reunia nos seus salões a fina flor da sociedade desta corte. É verdade que então não se tinha ainda introduzido a moda elegante das moças não gostarem de baile, provavelmente porque isto é um prazer comum, e ordinariamente têm quase todas as meninas aos dezoito anos.
Uma mocinha do tom – que se quer distinguir – deve aborrecer o baile, e gostar de alguma coisa que não seja trivial, como, por exemplo, de rezar, de ler anúncios, e sobretudo conversar com os diplomatas sobre questões de alta política internacional.
Por isso, naquele tempo o salão do Cassino foi uma espécie de palácio encantado, que a fada do prazer e da alegria criava por uma noite com um toque de sua varinha mágica; não era a todos que se revelava as palavras mágicas que serviam de chave à porta misteriosa desse recinto: Abre-te, Sésamo!
Apesar disto, porém, o último baile não esteve como era de esperar, à vista dos outros que houve este ano. Assim devia ser: era um baile de despedida, e os antigos freqüentadores não podiam deixar de sentir o desejo de dizer um último adeus a estas salas, a estas paredes, que foram testemunhas de tantos momentos deliciosos, cuja lembrança ainda o tempo apagou.
Outros, que ainda não têm tão remotas reminiscências, despediam-se da sociedade brilhante que se achava reunida aquela noite, e que daqui a alguns dias se irá dispersando como as folhas de uma árvore, que voam à discrição e aos dos ventos.
A força do verão já se vai fazendo sentir; e aqueles que não estão presos a vida da cidade estão já tratando de fugir desse clima ardente, e de procurar algures um refrigério aos calores da estação.
Petrópolis – a alva e graciosa Petrópolis, com suas brumas matinais, com suas casinhas alemãs, com seus jardins, seus canais, suas ruas agrestes – lá nos envia de longe um amável convite aos seus passeios poéticos, à vida folgazã que se passa nos seus hotéis, à missa dos domingos na capelinha da freguesia, e a tantos outros passatempos campestres, que se gozam durante esses dias em que aí vivemos como aves de arribação, prontas a bater as asas ao primeiro sorriso da primavera.
Quanta cabecinha loura ou morena já não se está recordando do verão passado e refazendo na mente os gozos desses dias alegres e descuidosos! Quanta imaginação não começou já a fazer esta pitoresca viagem, e não vai singrando pelas águas límpidas e azuis da nossa linda baía, a contemplar o formoso panorama que desenham as ribeiras do mar sobre a areia da praia e os recortes das montanhas nas fímbrias escarlates do horizonte!
Além de Petrópolis, muito ale, lá estão as serras, as matas ainda virgens, as florestas sombrias de nossa terra, as árvores seculares, os lagos, e as correntes d’água que atravessam os lagos e as planícies.
Aí se eleva a espaços pelas abas das montanhas, ou pelas margens de algum rio, a fazenda do agricultor, onde se vive a verdadeira vida do campo, onde as horas correm isentas de cuidados e de tribulações, no doce remanso de uma existência simples e tranqüila.
Como Petrópolis, como a Tijuca, como todos os arrabaldes da cidade, a serra também nos vai roubar uma a uma as mais belas flores da nossa cidade, as mais preciosas jóias dos nossos salões, as mais lindas estrelas do nosso céu. Uma bela noite, quando levantardes os olhos, tereis de vê-las deslizarem-se no horizonte, como esses astros de que fala Virgílio, deixando apenas nas trevas um longo rasto de luz:
Stellas
Praecipites coelo labi, noctisque per umbram
Flammarum longos a tergo albescere tractus.
No outro dia, quando procurardes por elas, terão completamente desaparecido. Irão caminho de mar ou de terra, buscar longe da cidade os ares puros que dão vida e saúde, que fazem voltar às faces empalidecidas, as cores frescas e rosadas.
Quanto a vós, que ficais curtindo as mágoas da ausência, consolai-vos com essa idéia; e, se durante a ausência encontrardes por acaso nalgum passeio pelos jardins uma linda florzinha azul, que os jardineiros chamam miosótis, e a que os alemães deram um nome de vergiss mein nicht, fazei, como Alfredo de Musset, alguma bela poesia à saudade, e mandai-ma, que eu a publicarei nas Páginas Menores.
Se isto ainda não vos consolar de todo, lede as notícias da guerra do Oriente, que cada vez se vão tornando mais interessantes. O último vapor trouxe-nos a notícia de que em honra de Saint-Arnaud se tinha levantado em Constantinopla uma cruz – a primeira depois de quatrocentos anos. Ora, se é exato que o diabo foge da cruz, como diz um rifão português, é de crer que a esta hora toda caterva de turcos, principiando pelo sultão, tenham abandonado a formosa Estambul.
Quanto à tomada de Sebastopol, não se realizou ainda; mas pelo vapor seguinte teremos por aí infalivelmente esta portentosa notícia, que, a falar a verdade, já vai se parecendo alguma coisa com os anúncios do nosso Teatro Provisório.
De manhã os jornais avisam aos leitores que à noite haverá espetáculo lírico; à tarde aparece uma moléstia qualquer, e o espetáculo fica transferido para o dia seguinte. Novo anúncio de manhã, nova transferência de tarde.
Ora, isto não tem senão uma explicação, e é que os diretores entenderam que, sendo o teatro provisório, apesar do batismo, precisavam de vez em quando, principalmente neste tempos de chuva, publicar um anúncio para fazer constar que o edifício ainda existe, e não veio à terra.
Cumpre, porém, advertir que com isto não me refiro à transferência e ontem, a qual teve um motivo justo. Com aquele tufão que desabou sobre a cidade, arrancando árvores e fazendo estragos, qual seria o dilettante capaz de deixar o seu teto hospitaleiro para arrostar um tempo tão desabrido?
É verdade que a esta mesma hora, quando as rajadas do vento caíam mais forte e com mais violência, alguns atravessavam as ruas da cidade, e a um e um se iam reunir na sala das sessões do Instituto Histórico. Pouco depois chegou Sua Majestade, e a sessão se abriu com sete membros.
Se eu não tivesse lido há tempos que Metternich, ou não sei que outro diplomata, havia dito que a pontualidade é a política dos reis, quando de hoje em diante me sucedesse ouvir semelhante palavra, seria capaz de apostar que tinha sido lembrança de algum dos sete membros do Instituto, que, para fazer honra ao tempo, se entretiveram com a leitura de um trabalho sobre terremotos.
Achava-me muito disposto a terminar aqui, mas lembro-me que estou na obrigação de afirmar aos meus leitores que este artigo é escrito por mim mesmo, e não por um pseudônimo que me descobriram, e que se acha arvorado em redator de um periódico intitulado – O Brasil Ilustrado.
Quando a princípio me contaram semelhante coisa, quando me disseram que eu ia redigir um novo periódico literário, duvidei; porém o fato é exato, e, o que mais é lá se acha a assinatura de um dos nossos literatos, o Sr. Porto alegre, que afirmou não ter assinado semelhante coisa.
Ora o Brasil, sendo tão ilustrado como se intitula, não pode ignorar certa disposição do Código Criminal que fala de assinaturas fingidas; por conseguinte, não há dúvida que os homens que se acham assinados naquela lista a que me refiro são nossos homônimos, os quais até hoje eram completamente desconhecidos.
Em tudo isto, pois, só temos a lamentar uma coisa, e é que o novo tão ignorados e obscuros, deixando de parte os verdadeiros Otavianos, Porto Alegres e Torres Homens.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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