(Crônicas publicadas no “Correio Mercantil”, de 3 de setembro de 1854 a 8 de julho de 1855, e no “Diário do Rio”, de 7 de outubro de 1855 a 25 de novembro do mesmo ano, ambos os jornais do Rio de Janeiro).
Desta vez não há razão de queixa. O paquete de Southampton trouxe-nos uma boa coleção de notícias a respeito da guerra do Oriente. A curiosidade pública, suspensa há muito tempo, pôde finalmente saciar-se com alguns episódios interessantes, como o de uma batalha em campo raso, o da passagem de um rio, o da morte de um general e da fugida de um príncipe à unha de cavalo.
Passada a primeira impressão. Cada um tratou de comentar as notícias a seu modo, de maneira que já ninguém se entende, e não há remédio senão apelar para o vapor seguinte a fim de sabermos a verdadeira solução do negócio.
A tomada do rio Alma sobretudo abriu um campo vasto a essa guerra de ditos espirituosos e de epigramas, em que se acham seriamente empenhados os russos e turcos desta cidade.
Uns entendem que, à vista das notícias, é fora de dúvida que Mesckintoff deixara tomarem-lhe Alma, embora a muito custo escapasse com o corpo salvo das mãos dos franceses e ingleses. Entretanto, as próprias notícias dadas pelos jornais, ninguém pode duvidar que quem perdeu a alma não foi o príncipe russo, mas sim o General Saint-Arnaud.
No dia da chegada do paquete, um espirituoso redator de uma das folhas diárias da corte dizia, ao ler a descrição da batalha, que o êxito da guerra estava conhecido, e que a Rússia nada podia fazer desde que Nicolau perdera Alma. Ao contrário – retrucou-lhe o seu colega – agora é que os ingleses e franceses estão em apuros, porque os russos, depois da batalha, ficaram desalmados e não há nada que lhes resista.
Muita gente, que sabe como os franceses são fortes nos trocadilhos e jogos de palavras, persuade-se que talvez todo este barulho da batalha de Alma não passe de algum calembur, que eles nos querem impingir. Não vou tão longe nas minhas suposições; porém, quando teio as duas participações de Lord Raglan e de Saint-Arnaud, não posso deixar de lembrar-me daquela antiga anedota dos dois compadres da aldeia, que descobriram o modo de se elogiar a si mesmos sem falar à modéstia.
Em toda essa batalha só há a sentir uma coisa; e é que os aliados fizessem poucos prisioneiros, e não pudessem ajuntar uma boa coleção de príncipes russos, que tivessem nomes de oito sílabas com a terminação em off, que é de rigor. Se isto acontecesse, seria uma felicidade para o gênero humano; porque os tais boiardos passariam à França, espalhar-se-iam pela Europa e talvez chegassem ao mercado do Brasil, onde imediatamente se havia de manifestar uma grande procura deles para noivos. Se viessem alguns da Hircânia, e uma meia dúzia de magias da Hungria, também não seria mau, para assim haver mais onde escolher conforme o gosto de cada um..
Enquanto, porém não lhe é possível mandar-nos esse gênero de que tanto necessitamos, a Europa vai nos enviando algumas cantoras exímias (é o termo do rigor), para nos distrair as noites de uma maneira agradável. Chegou ultimamente uma, que, se a reputação corresponder ao nome, terá de apagar de todo no espírito público as recordações que deixou a Stoltz, se não como cantora, ao menos como excelente trágica.
Criar-se á provavelmente um terceiro partido que se intitulará Raquelista, e então o teatro tornar-se-á interessantíssimo. Aplausos de um lado, pateada do outro, bravos, gritos, estalinhos, caixas de rapé a ranger, tudo isto formará uma orquestra magnífica, e realçará a voz das cantoras de uma maneira admirável. Isso pelo que toca ao ouvido; quanto à vista, tomando a diretoria o bom acordo de reduzir a iluminação brilhante do teatro, as nuvens de poeira, que se levantam da platéia, criarão o demi-jour necessário à ilusão ótica.
Que progresso! Possuiremos um Teatro Lírico, no qual não se ouvirá música e quase nada se enxergará! Só quem não tiver uso de freqüentar teatros é que poderá negar as grandes vantagens que resultam de tão engenhosa invenção.
Enquanto os empresários europeus se matam e se esforçam por contratar boas cantoras, ensaiar as melhores óperas, e adquirir pintores cenógrafos para satisfazer o público e dar-lhe espetáculos que agradem, nós descobriremos o meio de poupar todo este trabalho inútil e dispendioso.
Para isto bastam duas ou três cantoras com os seus competentes partidos, e, se houver também uma dançarina como a Baderna, melhor será. Com estes elementos conseguir-se-á por noite umas quatro pateadas e algumas salvas de palmas; a noite tornar-se á animada, e o gosto pela música italiana se irá popularizando cada vez mais.
Decerto, aquelas noites monótonas, em que levávamos a ouvir a Stoltz, comovidos e atentos aos seus menores movimentos, descobrindo um estudo da arte, uma inspiração do talento no seu gesto o mais simples, ou nas entonações graves de sua bela voz; essas noites frias e calmas, em que depois de longas horas de êxtases, a alma afinal transbordava de emoções e arrancava no fim da representação aplausos espontâneos; essas noites não valem os espetáculos animados, como temos agora, cheios de fervor e entusiasmo, e em que nos possuímos tanto do encanto da música, que todo o corpo se agita para dar a mais solene manifestação de amor à arte.
Um dilettante é hoje no Rio de Janeiro o homem que se acha nas melhores condições higiênicas e que deve menos temer a invasão do cólera, porque ninguém o ganha em exercício. A cabeça bate o compasso mais regularmente do que a baqueta do Barbieri; as mãos dão-se reciprocamente uma sova de bolos, como não há exemplo que tenha dado o mais carrasco dos mestres de latim de todo o orbe católico. Dos pés não falemos; são capazes de macadamizar numa noite a rua mais larga da cidade.
Ajunte-se a isto os bravos, os foras, os espirros, os espreguiçamentos (novo gênero de pateada), e de vez em quando um passeio lírico de uma légua fora da cidade, e ver-se-á que dora em diante, quando os médicos quiserem curar alguma moléstia que exija exercício, em vez de mandarem o doente para a serra ou para os arrabaldes, lhe aconselharão que se aliste nalgum dos partidos, chartonista ou casalonista, e vá ao teatro.
Um espírito observador, recorrendo a certos dados estatísticos, conseguiu também descobrir que o homem mais útil desta corte é o dilettante. Cumpre-me, porém, notar que, quando falamos em dilettante, não compreendemos o homem apaixonado de música, que prefere ouvir uma cantora, sem por isso doestar a outra. Dilettante é um sujeito que não tem nenhuma destas condições, que vê a cantora, mas não ouve a música que ela canta; que grita bravo justamente quando a prima-dona desafina, e dá palmas quando todos estão atentos para ouvir uma bela nota.
São muito capazes de levantar alguma questão gramatical sobre a minha definição, tachando-a de paradoxo, ou demonstrando por meio da etimologia da palavra que estou em erro. Mas isto pouco abalo me dá; os gramáticos que discutam, fazem o seu ofício, contanto que não se arvorem em alfaiates ou comecem atalhar carapuças.
Voltando, porém, a nossas observações, é fato provado que o dilettante é o homem que mais concorre para a utilidade pública. Em primeiro lugar, o extraordinário consumo que ele faz de flores não pode deixar de dar grande desenvolvimento à horticultura, e de auxiliar a fundação de um estabelecimento deste gênero, como já se tentou infrutiferamente nesta corte antes do dilettantismo ter chegado ao seu apogeu.
Os sapateiros e luveiros ganham também com o teatro, porque não há calçado nem luvas que resistam ao entusiasmo das palmas e das pateadas. Na ocasião dos benefícios, as floristas e os joalheiros têm muito que fazer; e os jornais enchem-se de artigos que para os leitores têm o título de publicações a pedido, e para o guarda-livros da casa o de publicações a dinheiro.
Além de tudo isto, além dos estalinhos, dos versos avulsos, das fitas para os buquês, é preciso não esquecer a carceragem que de vez em quando algum vai deixar na cadeia, onde se resigna a passar a noite, fazendo um sacrifício louvável pelo seu extremo amor à arte.
Isso sem falar das outras vantagens que já apresentamos, como de fazer que não se ouça a música e não se veja coisa alguma. De maneira que, assim, toda a ópera é boa e bem representada; e, estando o teatro escuro com a poeira, não há risco que as mocinhas troquem olhares malignos para as cadeiras. Só este último fato é de um alcance imenso; é uma garantia de moralidade pública!
Se a diretoria soubesse apreciar esses bons resultados, em vez de transferir constantemente o espetáculo por moléstias deste ou daquele, em vez de nos dar uma só representação por semana, regularizaria os espetáculos, e repetiria o Trovador cinqüenta vezes para que os moleques da rua aprendessem a assobiar de princípio a fim toda esta sublime composição de Verdi, a qual daqui a alguns meses aparecerá correta e aumentada numa porção de valsas, contradanças e modinhas.
Outra coisa, a que a diretoria não tem dado muita atenção, é ao estado do edifício e à decência deste salão, onde se reúne a flor da sociedade desta corte. Agora que se trata com tanta eficácia do asseio público, parece-nos que era ocasião que o asseio chegasse até o interior do teatro, e fizesse desaparecer essa pintura mesquinha, essas paredes sujas, e esse pó que cobre as cadeiras e que reduz as abas de nossas casacas à triste condição de espanador. A julgar pela poeira que se levanta quando aparece a Charton ou a Casaloni, creio que há no soalho do teatro terra para encher algumas carroças.
Se faltam à diretoria meios de remover essa terra, pode requisitá-los da administração da limpeza pública, que por certo não se recusará, à vista da atividade que tem mostrado ultimamente nos trabalhos que lhe foram incumbidos.
Com efeito, embora em começo, o serviço já tem conseguido apresentar bons resultados; e basta percorrer as ruas desta cidade, para reconhecer os sinais de uma vigilância ativa, que vai pouco a pouco substituindo o desleixo e a incúria que ali reinava entre a lama e os charcos.
O Sr. Ministro do Império tomou, nesta questão da limpeza, o verdadeiro partido de um bom administrador e o expediente de um homem de ação. Enquanto a discussão se ateava, tratou de realizar a sua idéia, e criar com os fatos argumentos irresistíveis, argumentos que calam imediatamente no espírito público. Os escrúpulos cessaram, apenas as nossas ruas começaram a mostrar o zelo da autoridade; e creio que, removendo a lama e o cisco das ruas, se removerá igualmente qualquer oposição extemporânea a uma medida de tanta utilidade.
Já podemos ter esperanças de ver nossa bela cidade reivindicar o seu nome poético de princesa do vale, e despertar de manhã com toda a louçania para aspirar as brisas do mar e sorrir ao sol que transmonta o cimo das serras. Talvez daqui a alguns meses seja possível gozar a desoras o prazer de passar à la belle étoile, durante uma dessas lindas noites de luar como só as há na nossa terra; ou percorrer sem os dissabores dagora a rua aristocrática, a rua do Ouvidor, admirando as novidades chegadas da Europa, e as mimosas galantarias francesas, que são o encanto dos olhos e o desencanto de certas algibeiras.
Esses passeios, que hoje já vão caindo um pouco em desuso, ainda se tornarão mais agradáveis com algumas novidades interessantes que se preparam naquela rua, e que lhe darão muito mais realce, excitando as senhoras elegantes e os gentlemen da moda a concorrer a esse rendez-vous da boa companhia.
O Desmarais está acabando de preparar a sua antiga casa com uma elegância e um apuro, que corresponde às antigas tradições que lhe ficaram dos tempos em que aí se reunia a boa roda dos moços desta corte, e os deputados que depois da sessão vinham decidir dos futuros destinos do país. Ali tinham eles ocasião de estudar os grandes progressos da agricultura, fumando o seu charuto Regalia, e de apreciar os melhoramentos da indústria pelo efeito dos cosméticos, pela preparação das diversas águas de tirar rugas, e pela perfeição das cabeleiras e chinós.
Como o Desmarais, a Notre-Dame de Paris abrirá brevemente as portas do seu novo salão, ornado com luxo e um bom gosto admirável. As moirées, os veludos e as casimiras, todos os estofos finos e luxuosos, e destinados aos corpinhos sedutores das nossas lindezas, terão uma moldura digna deles, entre magníficas armações de pau-cetim; e o pezinho mignon que transpuser os umbrais desse templo da moda pousará sobre macios tapetes, que não lhe deixarão nem sequer sentir que pisam sobre o chão.
Assim, pois, quando os pais e os maridos passarem de longe, e virem este belo salão com toda a sua elegância, resplandecendo com o reflexo dos espelhos, com o brilho das luzes, apressarão o passo, e, se tiverem lido o Dante, lembrar-se-ão imediatamente da célebre inscrição:
Lasciate ogni esperanza, voi che entrate;
Ma guarda, e passa!
De todos esses progressos da Rua do Ouvidor o mais interessante, porém, pelo lado da novidade, é a Galeria Geolas, que deve nos dar uma idéia das célebres passagens envidraçadas de Paris. A Galeria Geolas vai da Rua do Ouvidor à Rua dos Ourives; tem uma extensão suficiente; apesar de um pouco estreita, está bem arranjada.
Os repartimentos formam um pequeno quadrado envidraçado, e já estão quase todos tomados. Na locação desses armazéns seria muito conveniente, não só aos seus interesses, como aos do público, que o proprietário procurasse a maior variedade possível de indústrias, a fim de que a passagem oferecesse aos compradores toda a comodidade.
Os moços de boa companhia que se reúnem ordinariamente num ponto qualquer da Rua do Ouvidor deviam tomar um daqueles repartimentos e formar como que um pequeno salão, que se tornaria o rendez-vous habitual do círculo dos flâneurs. Enquanto não pudéssemos ter um Clube, a passagem iria satisfazendo esta necessidade tão geralmente sentida.
Se ainda não estais satisfeito, meu amável leitor, com todas estas novidades, vou dar-vos uma, que suponho vos causará tanto prazer como me causa a mim; e é que estou fatigado de escrever, e por conseguinte termino aqui.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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