quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – IV – A zanga de Emília

Narizinho foi espiar o que Emília estava fazendo. Encontrou-a no cantinho da sala onde era o seu “quarto”, muito atarefada em botar os seus vestidos e brinquedos nas caixas de papelão que lhe serviam de mala. Mas notou que Emília só botava os vestidos e brinquedos que ela, Narizinho, lhe havia dado. Os outros, dados pela negra, jaziam no chão, amarrotados e pisados aos pés. Emília estava seriamente ofendida e sem dúvida nenhuma preparava-se para alguma viagem. Ia arrumando as malas, ao mesmo tempo que dialogava com o cavalinho.

— Não é à-toa que ela é preta como carvão.

— ?

— Mentira de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca. Nasceu preta e ainda mais preta há de morrer.

— ?

— Boa? Está muito enganado. Mais malvada que ela só o Barba Azul. Você é porque é novo nesta casa e não a conhece. Tia Nastácia não tem dó de nada. Pega aqueles frangos tão lindos e — zás! torce-lhes o pescoço. Mata patos, mata perus, mata camundongos — não há o que não mate. Outro dia, no Natal, a diaba assassinou um irmão de Rabicó, tão bonitinho! Pegou naquela faca de ponta que mora na cozinha e — fugt! enfiou dentro dele, até no fundo. E pensa que foi só isso? Está enganado! Depois pelou o coitadinho numa água fervendo e assou o coitadinho num forno tão quente que nem se podia chegar perto.

— ?

— Como não? Você não é melhor do que os frangos, perus e leitões. Essa é uma das razões porque quero ir-me embora: para tira-lo daqui antes que a malvada o mate e asse no forno. Que pena não ser você grande como o cavalo de Tróia!...

— ?

— Para quê? É boa. Para dar um coice de Tróia no nariz dela.

Nesse ponto Narizinho, que estava escondida a escutar o diálogo, apareceu.

— Que é isso, Emília? Parece louca!...

— É que estou arrumando minhas malas para me mudar desta casa. Não gosto de velhas, nem brancas nem pretas.

— Ir para onde, boba? Pensa que é só ir saindo?

— Vou para a casa do Pequeno Polegar. Quando lhe dei de presente o pito de barro, ele me disse: “Muito obrigado. Dona Emília. Tenho lá uma casa às suas ordens. Apareça.” Chegou o dia. Vou aparecer e ficar morando lá.

— E você pensa que cabe na casinha do Pequeno Polegar? Já se esqueceu, boba, de que ele é deste tamanhinho?

Emília pôs o dedo na testa, refletindo. Afinal caiu em si e viu que realmente seria uma grande asneira. se mudasse para a casa do Pequeno Polegar, teria, sem dúvida, de ficar no terreiro e dormir ao relento, com perigo de ser atacada por quanta coruja e morcego existirem no mundo. E como tinha medo horrível de morcegos e corujas, resolveu ficar.

— Nesse caso fico, mas você há de me dar um vestido novo, de seda, com um laço de fita aqui e um babado. Dá?

— Dou, diabinha, dou. Mas com uma condição!...

— Qual é?

— Fazer as pazes com tia Nastácia. A coitada está lá na cozinha chorando de arrependimento de haver ameaçado você com palmadas.

A cólera de Emília já havia passado, cedendo lugar a sentimento muito mais rendoso. Por isso tratou imediatamente de tirar vantagem da situação, pedindo uma coisa que era o seu encanto.

— Só se ela me der aquele alfinete de pombinha que você sabe.

— Dá, sim. Eu digo a ela que dê e ela dá.

— Neste caso, fico de bem com ela outra vez. Aquele alfinete andava deixando Emilia doente. Era um alfinete do tempo de dantes, que já não se encontra em loja nenhuma de hoje. De aço azul, tendo em vez de cabeça uma pombinha de vidro colorido. Tia Nastácia possuía três, um de pombinha azul, outro de pombinha verde, outro de pombinha carijó. Era este o que Emília queria — mas queria desesperadamente, como nunca neste mundo uma boneca quis qualquer coisa.
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Continua… V – João Faz-de-Conta

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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